quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

EUA: A IMPLOSÃO DO DEPARTAMENTO DE ESTADO AMERICANO E A INSIGNIFICÂNCIA DO BRASIL

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Enquanto o nosso País segue, lamentavelmente, descendo a ladeira, convém tomar ciência dos humores da Metrópole. Com a palavra André Araújo, consultor e analista, colaborador emérito do site Jornal GGN, coordenado pelo jornalista Luis Nassif.


A implosão do Departamento de Estado

Por André Araújo

O Departamento de Estado é o mais antigo ministério do governo americano, criado em 1789.
O Secretário de Estado é o terceiro na linha de sucessão do Presidente dos EUA e chefia um enorme organismo com seis Subsecretários para Armas, Direitos Humanos, Assuntos Econômicos, Administração, Assuntos Políticos e Assuntos Diplomáticos, tem 17 Enviados Especiais para temas estratégicos, 17 Representantes Especiais para temas específicos, 6 Embaixadores Extraordinários para assuntos de situação, 14 Coordenadores de questões de crises permanentes e conflitos localizados, 7 Conselheiros Políticos e 63 chefes de Birôs de seis  áreas geográficas do planeta como a do Hemisfério Ocidental, zona contínua que vai do Canadá à Argentina, englobando o Brasil.
A Administração Trump nunca teve  uma agenda para relações internacionais e portanto não dá importância alguma ao Departamento de Estado, hoje chefiado pelo ex-CEO da Exxon, Rex Tillerson. Sem agenda para essa área crucial, Trump também não tinha nomes para a vasta máquina diplomática. A partir desse vácuo poucos nomes foram indicados porque Trump e seu grupo conhecem poucos nomes de especialistas. Sem indicar nomes os cargos passaram a ser chefiados por interinos, como o que cuida do Brasil, o Bureau do Hemisfério Ocidental, antigo Assuntos Latino Americanos, chefiado desde o primeiro dia do governo Trump por um Francisco Palmieri, funcionário permanente do Departamento. O nosso conhecido Thomas Shannon, que foi Embaixador dos EUA em Brasília até o governo Dilma e era o nº 3  na hierarquia do Departamento (Subsecretario de Assuntos Políticos) no segundo mandato do governo Obama, acaba de se aposentar (...).
Por trás desse descaso com o Departamento de Estado está a visão de mundo de Trump, ou melhor, a falta de qualquer visão de mundo, Trump desconhece rudimentos de geopolítica e da História que lhe dá embasamento.
Diplomacia é em larga medida memória e acumulação de ações que vêm de um longo passado, para dominar a área é preciso ter o registro da História antiga e recente, Trump simplesmente não conhece e não registra esse enorme campo de ação do Governo dos EUA.
Outros Presidentes também tinham escasso capital intelectual diplomático, como Truman e Reagan, mas partiam da plena consciência disso e se aconselhavam com os grandes nomes da área e com os especialistas do Departamento de Estado. Já o Presidente Trump simplesmente não opera desse modo, age no completo improviso em relações internacionais, uma área da politica onde não há o menor espaço para improvisar porque cada ato gera reação de outros atores da arena internacional cuja repercussão é preciso prever com antecedência, cada ação gera uma contrarreação.
Há um outro importante organismo em Washington que também opera na área de planejamento estratégico em relações internacionais, o Conselho Nacional de Segurança da Casa Branca (NSC), organismo de assessoramento direto do Presidente; seu chefe tem o título de Assessor de Segurança Nacional do Presidente.
O espaço do NSC em relação ao Departamento de Estado é cambiante, depende do Presidente. Às vezes o NSC tem voz mais forte que o State em áreas de conflito, como por exemplo a guerra da Síria e as ameaças da Coreia do Norte, temas macro estratégicos de crises perigosas que exigem uma visão mais geopolítica e militar do que a diplomacia regular de relações normais entre Estados.
BRASIL E MÉXICO, POTÊNCIAS REGIONAIS
Dos anos 30 até os anos 80 a América Latina teve dois interlocutores de peso em Washington, por razões diversas. O México moderno nasceu de uma Revolução em 1910 e tornou-se o farol da esquerda latino-americana. O México estatizou seu petróleo em 1938 e tornou-se desde então uma fortaleza da esquerda continental: na Guerra Civil Espanhola era o refúgio dos Republicanos, recebeu mais de 300 mil refugiados da derrota contra o General Franco e nunca reconheceu o governo franquista, só restabeleceu relações com a Espanha após a morte de Franco. Foi no México que nasceu a Revolução Cubana de Fidel Castro e por décadas o México teve uma política exterior confrontacionista com Washington e disso se orgulhava.
Mas a partir dos anos 80 esgotou-se o ciclo revolucionário e o México tornou-se uma das principais plataformas neoliberais americanizadas, deixou de ser potência ideologicamente forte para ser uma zona franca dos EUA, hoje colhe as consequências do desprezo trumpista que cuspiu na cara desse Pais icônico ao propor um muro, como a separar leprosos de puríssimos americanos.
A outra e muito mais importante potência regional foi o Brasil, único Aliado dos EUA a enviar tropas na Segunda Guerra em boa escala, infantaria mais artilharia e mais aviação, ÚNICO pais latino-americano a ter essa participação REAL que não foi pequena. Como Pais aliado foi convidado a ser a potência ocupante da Áustria no fim do conflito, o governo Dutra não aceitou para assim confirmar sua mediocridade estratégica.
Desde então o Brasil teve em três fases uma politica externa independente de potência regional, no Governo JK, no governo militar de 1954 e no governo Lula. O Brasil nesses três períodos teve fases de protagonismo importante, JK por sua iniciativa criou a Aliança para o Progresso e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Governo Militar de 64 operou forte presença na África portuguesa e no Oriente Médio, enfrentou os EUA na questão nuclear e no reconhecimento de Angola.
No governo Lula o Brasil se projetou por toda a América Latina e África, com presença importante econômica e geopolítica, havia um projeto de áreas de influência concreto, depois liquidado pela cruzada moralista.
Hoje o Brasil se encolheu a um nível desprezível de presença estratégica internacional, está na escala do Paraguai ou pouco mais que isso, não se afirma, não age, se esconde para não ter que atuar em questões chaves.
O BRASIL NO GOVERNO TRUMP
O Secretário de Estado Rex Tillerson iniciou em 1º de fevereiro sua primeira viagem pela América Latina, México, Jamaica, Colômbia, Peru e Argentina. Assim como no ano passado fez o Vice Presidente dos EUA, Tillerson evitou o Brasil, maior pais da América Latina, o que soa algo bastante estranho, pouco usual, chocante.
Perguntei a um amigo, com mais de 30 anos no Departamento de Estado e que lá é considerado um “expert” em Brasil o porquê dessa posição de evitar o maior Pais do continente.
A resposta veio rápida, a situação política do Brasil é considerada por demais confusa e imprevisível, sem interlocutores representativos. É impressionante a perda de capital geopolítico da maior potência regional, o Brasil caiu rapidamente de uma estrela ascendente na cena internacional em 2010 para um pária a ser evitado em 2018, isso em se tratando do País chave para vários temas, como o do clima e da capacidade de intervenção através das forças de paz da ONU, função na qual o Brasil é o maior protagonista entre todos os países desde há décadas, com 9 Missões simultâneas em 2015 e na chefia da maior delas, a do Congo (General Santos Cruz).
Em cima da falta de presença há mais um fator que prejudica no momento o Brasil, a chefia do Itamaraty em mãos não profissionais; o atual chanceler não é diplomata, como foram todos os chanceleres desde o início do governo Lula, uma política externa profissional.
Nas piores situações de crises políticas domésticas em países, um diplomata de grande peso na chefia do Ministério do Exterior traz consigo um acúmulo de capital político de relações construídas com outras chancelarias  que permite operar por confiança pessoal: o “networking” diplomático é uma reserva fechada, os diplomatas se reconhecem; regimes fracos precisam de diplomacia forte, é uma lição da História; a França napoleônica derrotada usou o Príncipe de Talleyrand como chanceler, o maior dos diplomatas para um País vencido em Waterloo, e com isso saiu por cima no Congresso de Viena de 2015.
O regime militar de 1964 tinha o lastro de um Roberto Campos, diplomata de primeira linha, que dava um aval político ao regime; o atual governo deveria ter colocado no Iramaraty um diplomata de primeira linha no nível de um Botafogo Gonçalves, um Roberto Abdenur, um Marcos Azambuja,  lastros para qualquer governo que tem pouco tempo e capital  para operar na área internacional onde se avalia se um governo é fraco ou forte, e daí partem as relações de poder.
A mesma crítica serve para o Governo Trump: colocar Rex Tillerson, um executivo sem experiência prévia na área diplomática, é um risco e um erro, por mais qualificado que seja o executivo, da mesma forma que seria um erro a Exxon nomear como CEO um diplomata aposentado.
Como consequência dessa insignificância do Brasil nas relações internacionais, fomos dispensados de dar opinião em temas ultra críticos onde normalmente o Brasil seria um dos primeiros a opinar, como o tema Venezuela; o Brasil tem as maiores fronteiras com a Venezuela no continente, e quanto ao conflito na Síria o Brasil tem a maior diáspora sírio-libanesa do mundo.
Por uma dessas ironias da História entramos nessa zona de insignificância ao mesmo tempo que um governo de amadores em Washington também joga os EUA numa diminuição de seu papel internacional.
Nossa última grande referência no Departamento de Estado, o Subsecretário de Assuntos Políticos e ex-Embaixador no Brasil Tom Shannon, que fala português fluentemente, um grande conhecedor e amigo do Brasil, acaba de deixar o Departamento.  Na plataforma geográfica de uma das cinco Subsecretarias Adjuntas o Brasil está sob o guarda chuva da Subsecretaria do Hemisfério Ocidental, novo nome da antiga e muito mais prestigiosa Subsecretaria de Assuntos Latino Americanos, que já teve ocupantes de grande peso político como Otto Reich e o próprio Tom Shannon.
No Governo Bush Jr. Otto Reich, amigo íntimo dos Bush pai e filho, foi, além de Subsecretário para a América Latina, Embaixador Extraordinário do Presidente para a região. Como Subsecretário foi Reich, assessorado por William Perry, conselheiro político do Departamento e especialista em Brasil, quem costurou em dezembro de 2002 os acordos de apoio do Governo Bush ao recém eleito Presidente Lula, apoio esse crucial para deslanchar o Governo do PT nos primeiros meses de 2003, abrindo as portas de Washington e de Wall Street para apoiar um governo até então visto com desconfiança. Foram esses acordos entre Reich e Jose Dirceu que deram o lastro fundamental junto ao Governo Bush no primeiro mandato, uma obra de engenharia política de primeira, costurada por gente competente.
Fico imaginando se um Palmieri, que hoje ocupa o posto de Otto Reich, poderia tecer tal arranjo com o País mais importante do continente. Nunca iria funcionar, falta-lhe lastro político essencial além de conhecimento da região, que Reich, cubano de nascimento e ex-Embaixador em Caracas durante o primeiro governo Chavez, tinha de sobra; Reich estava sempre no Brasil, conhecia fazendas do interior e os restaurantes de São Paulo, circulava bem nos ambientes do poder em S.Paulo e Brasília.
O Governo Trump não tem operadores diplomáticos e políticos de alto nível para tarefas internacionais. Diplomacia não é território para amadores, nunca foi, mas hoje temos em Washington um governo de amadores que vem da Casa Branca e se espalha pelos Ministérios.
O método Trump de governar NÃO combina com profissionais porque ele mesmo é um amador em política, o profissional de peso e caráter não fará o que Trump mandar, porque quase sempre Trump está errado.
Tome-se o caso do Acordo Transpacifico. Sua negociação pelo Departamento de Estado levou 11 anos, duras e complexas tratativas para tentar conter a expansão econômica e geopolítica da China - o Tratado era CONTRA a China -, mas Trump entendeu na sua abismal ignorância que o Tratado era a FAVOR da China e mandou os EUA saírem do pacto, que já estava pronto.
Parece piada, mas é a realidade. A saída dos EUA do Transpacífico foi recebida pela China com grande alívio, Trump ajudou a China quando pensava que a estava combatendo.
O Departamento de Estado sentiu-se completamente desmoralizado e é por isso que os mais de cem postos importantes estão vagos, ninguém quer trabalhar nesse ambiente de caos e de falta de qualquer estratégia.
Soube pelos corredores do State de outro caso simbólico da Era Trump. O Presidente pediu vinte currículos para selecionar um Embaixador para um País asiático. O State mandou os vinte currículos, ao receber os currículos Trump os devolveu na hora dizendo “Não preciso mais. Ontem estive numa festa e encontrei uma moça inteligente que conhece  esse País, vou  nomeá-la Embaixadora”, e assim fez.
OS BENEFICIÁRIOS DA DIPLOMACIA TRUMP
O desmonte da diplomacia americana abre espaço para a expansão geopolítica da China e da Rússia,  com um papel renascido da França de Macron; elas agradecem a estupidez do conceito America First, que na sua versão real é America Alone; bordões não dão certo na área; a Doutrina America First resulta no ISOLAMENTO dos EUA, o que é incompatível com sua História e seu projeto de liderança global, que  traz mega benefícios econômicos e estratégicos. Se esses benefícios são mal distribuídos DENTRO dos EUA a culpa não é do mundo e sim dos defeitos do sistema econômico americano, que permite a super concentração de capital, que  beneficia os bancos e os ricos e prejudica a distribuição de renda e dos empregos; quem conduz o espetáculo são as multinacionais americanas que transferem produção para fora dos EUA, e não a China ou o México.
O mundo espera com a respiração suspensa para ver o que resultará dos quatro anos de um governo imprevisível e sem estratégia global, um governo errático, de surpresas contínuas e que não aprende com os erros.
Há uma única área onde o Governo Trump não tem maior interferência e se mantém blindada, o comando militar.
A cadeia de comando no Pentágono se mantém íntegra e nela Trump não faz bobagens, ao contrário, deu maior poder aos militares, que hoje comandam também áreas tradicionalmente de civis, como a chefia da Casa Civil (Chief of Staff) e o Conselho Nacional de Segurança.
Essa banda militar no Governo Trump é a única área de estabilidade que segura esse governo aventuroso, gerador da maior instabilidade geopolítica desde o fim da Segunda Guerra. 
Tempos interessantes, como diria Eric Hobsbawn.  -  (Aqui).

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