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Sebastião Nunes, autor da série, é natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta. É também titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine.
O país dos canalhas - Capítulo 10 - A cama em que Tiradentes morreu
Por Sebastião Nunes
Correu em Brasília, à boca pequena, que fora encontrada em Ouro Preto uma das mais controversas relíquias do Brasil Colonial: a cama em que Tiradentes morreu.
– Como? – perguntará você. – Mas Tiradentes não morreu enforcado, com todos os privilégios e em plena luz do dia?
– Besteira – respondo eu, Philip Marlowe, detetive particular de Los Angeles, criação imortal de Raymond Chandler, trabalhando atualmente no país dos canalhas.
– Besteira grossa – repito. – Num país de mentira como o Brasil, em que um advogado chinfrim pula de galho em galho que nem macaco, puxando sacos de todos os tamanhos até ser entronado por um congresso de mentira num trono de golpista como presidente da república, só me resta gargalhar. E gargalhei:
– Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah!
NO CAMINHO DA CAMA
Voei de Brasília para Belo Horizonte, então peguei um táxi com destino a Ouro Preto, antiga pátria do ouro e de pilantras portucalenses, origem de parte dos milhões de ladrões que proliferaram pelo Brasil nos séculos futuros.
Cheguei e fui direto ao Museu da Inconfidência. Lá estava ela, modelada em legítimo jacarandá-cabiúna: macia, confortável, linda de morrer.
Já me preparava para tirar um cochilo naquela maciez e certificar-me de que era a legítima cama do Tiradentes moribundo quando fui atravessado por um senhor gordo, de óculos e gravata borboleta, que me advertiu:
– Viver é muito perigoso. Mas viver no Brasil dos canalhas, não sendo canalha, é perigosíssimo!
Pulei da cama de um salto.
– Puxa, Guimarães Rosa, quanto prazer!
– A cama é falsa – disse Rosa, me piscando um olho.
– Falsa? – repeti espantado.
– Falsa como a República dos Canalhas que se estabeleceu no Brasil. Ou você quer coisa mais falsa que um presidente fake chamado Miguel Temeroso? Um senador fajuto apelidado Amnésio Naves? Um eterno golpista tipo Joseph Serrote? Um ladrão do tamanho do Sérgio Cobreiro? Outro ladrão da espessura de Ednardo Cunha? Além do congresso vendido e do STF de ministros pilantras que só legislam em causa própria?
– De fato – concordei. – O Brasil está mergulhado na República dos Farsantes.
– Bom título para um romance. Pensarei nisso.
E assim, sem mais nem menos, Rosa desapareceu. Fiquei sozinho até que...
NO MEIO DO CAMINHO
... preparando-me para um cochilo de verdade na cama de mentira, vejo surgir um senhor magricela, também de óculos, careca e de queixo quadrado.
– E como eu palmilhasse vagamente/ uma estrada de Minas... – começou ele, pigarreando com voz cavernosa.
– Ora, quem diria! – espantei-me novamente. – Carlos Drummond de Andrade em carne e osso!
– Nem carne nem osso, meu filho – respondeu ele tristemente. – Tudo o que você vê não passa de sombra, difusão e confusão de quem foi e não é mais.
– O que pensa do Brasil atual, caro mestre? – indaguei sem perda de tempo, tentando tirar ouro daquele nariz de poeta. E arrematei: – Se permite a um falante de língua inglesa chamá-lo de mestre...
Com voz mais cavernosa, assim me respondeu:
– O poeta/ declina de toda responsabilidade/ na marcha do mundo capitalista/ e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas/ promete ajudar/ a destruí-lo...
Fez uma pausa, pigarreou e concluiu, miseravelmente soturno:
...como um verme.
Olhei para ele, que também me encarou, triste como sempre.
– Mas não adianta, não é? – disse ele. – Com palavras, intuições e símbolos não conseguiremos nada.
Balancei a cabeça concordando. Mas não seria melhor dar um pouco de esperança ao descarnado fantasma do grande poeta? “Não”, pensei, “a esperança cabe aos vivos”.
O FIM DA PICADA
O fantasma desapareceu e voltei a ficar sozinho no país de mentira com a cama de mentira. Tiradentes foi realmente enforcado e estamos sendo enforcados lentamente em nossas vãs tentativas de construir um país de verdade.
Não havia mais ninguém no museu. Nas paredes e no chão, quadros, móveis e objetos diversos lembravam – quase distraidamente – o passado de um país que não deu certo.
E então, muito lentamente, a cama começou a sumir. Depois sumiu o museu. Depois a cidade de Ouro Preto. Depois o estado de Minas Gerais. Depois um enorme país chamado Brasil.
“Melhor assim”, pensei. “Melhor o nada do que o pesadelo”.
(Fonte: Aqui - Continua)
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