O julgamento de Dilma, parte 3: a gastança sumiu
Por Lia Imanishi e Raimundo Rodrigues Pereira
Rio de Janeiro, Ilha do Fundão, perto do aeroporto do Galeão e do Complexo de Favelas da Maré. São onze horas, 12 de julho, e estamos na reitoria da UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Cartazes colados nos pilares do prédio modernista lembram o luto pelo assassinato de Diego Machado. O estudante foi encontrado morto há dez dias, próximo ao alojamento do campus, onde morava, com sinais de violência. Seus amigos suspeitam de crime de homofobia e racismo. Na sua página na internet, o Diretório Central dos Estudantes da universidade reclama da falta de segurança e policiamento. E esse não parece ser o único problema: num cartaz se lê: “Falta Papel Higiênico”.
O objetivo da repórter, no entanto, não é analisar as carências da UFRJ, mas um possível excesso, ela diz ao pro-reitor de Planejamento, Desenvolvimento e Finanças, Roberto Gambini. E explica: no acompanhamento dos trabalhos da Comissão Especial de Impeachment do Senado, que analisou as provas de a presidente Dilma Rousseff ter cometido “crimes de responsabilidade”, a serem julgados em breve no plenário do Senado da República, foram achados pelo menos três decretos de crédito considerados ilegais. E, num deles, de 27 de julho de 2015, entre outros beneficiados, está a UFRJ, para a qual foi feita a abertura de um crédito suplementar de 19,3 milhões de reais. Isso é verdade? Há alguma ilegalidade nisso? Gambini diz que o melhor indicado para responder é George Gama Júnior, que trata da gestão orçamentária. Antes de levar a repórter até ele, pergunta e responde: “Essa matéria vai dizer que a Dilma gastou demais com a universidade? Porque não é verdade!”
A verdade, como diz o poeta, mora num poço. Mas Gama Júnior esclarece a situação: ele mostra que, sim, é verdade que o decreto de crédito suplementar tido como ilegal e que pode contribuir para derrubar a presidente Dilma, destinou 19,3 milhões para a UFRJ; e, sim, também é verdade: a UFRJ vive uma situação de penúria extrema. Gama Júnior abre, para a repórter ver, a página na internet do Sistema Integrado de Monitoramento do Ministério da Educação (SIMEC). E mostra o formulário padrão que ele, e muitas pessoas como ele, cadastrados no vasto sistema de gestão do orçamento federal – com 40 órgãos superiores, 460 órgãos subordinados e 22 mil unidades orçamentárias – têm de preencher para solicitar os tais créditos. É um sistema integrado gerido pela Subsecretaria de Contabilidade Pública da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), do Ministério da Fazenda.
Esse órgão contabiliza, regularmente, na chamada Conta Única do Tesouro, a entrada e saída de recursos em cada uma de suas cerca de suas unidades. No final de março de cada ano, publica uma portaria com os montantes de créditos suplementares acumulados para cada uma delas. Faz essa acumulação em duas rubricas. Uma, é a do superavit financeiro. Esta se refere a recursos arrecadados no ano anterior, não gastos naquele ano orçamentário, mas também não carimbados pela unidade para qualquer finalidade específica do órgão no qual ela se situa. “Digamos que eu tenha recebido uma doação em novembro de 2014. Ela já não pode mais ser gasta naquele exercício. Porque o MEC já não tinha mais limite de empenho”, diz Gama Júnior referindo-se ao compromisso assinado pelo órgão público de que aquele serviço será pago. “A gente já não pode mais se comprometer a pagar nada. Nem tem mais prazo para fazer a solicitação de empenho. Esse dinheiro entra então na nossa conta como superávit financeiropara o próximo ano. E os recursos ficam lá, no Tesouro”, explica. A outra conta é a do excesso de arrecadação – observado no ano corrente, por ocasião da solicitação do crédito suplementar – na qual se contabiliza a arrecadação de impostos, taxas e contribuições obtida além do previsto para o período.
As solicitações de crédito suplementar da UFRJ, como se viu, são feitas através do SIMEC, para o Ministério da Educação, órgão ao qual a unidade orçamentária da universidade está subordinada. Elas são feitas três vezes no ano, nos meses de maio, agosto e outubro. “A UFRJ há muito tempo não tem excesso de arrecadação”, diz Gama Júnior em tom de lamento. Mas teve, sim, diz ele, o superavit financeiro de 19,3 milhões ao qual a repórter se refere. E a solicitação do crédito suplementar com base nesse superavit foi feita através da Secretaria de Orçamento Federal, logo após esse número aparecer na portaria publicada pela subsecretaria de Contabilidade Pública, da Secretaria do Tesouro Nacional, no final de março de 2015.
Aprovado na cúpula do Ministério da Educação, o pedido de crédito suplementar foi encaminhado à Secretaria do Orçamento Federal. Daí chegou ao comando do Ministério do Planejamento. De lá, subiu para Casa Civil da presidência da Republica. Em todas essas paradas, o pedido foi examinado e aprovado do ponto de vista da justeza da reivindicação e de sua legalidade. Posto tudo isso, em 27 de julho ele foi incluído num decreto assinado pela presidente Dilma Rousseff e publicado no dia seguinte no Diário Oficial. Para quem quiser ler os termos da apresentação do decreto da presidente e a íntegra da parte relativa aos 19,3 milhões de UFRJ, a seguir vão os seus facsímiles publicados nas páginas 49 e 51 do Diário Oficial da União do dia seguinte, 28 de julho de 2015.
Para quem bastar apenas um resumo, antes, aqui vai ele: 1) a presidente diz que o decreto de créditos suplementares é “em favor dos Ministérios da Educação, da Previdência Social, do Trabalho e Emprego e da Cultura”; diz que, em números arredondados como se diz, o total de créditos é de mais de 1,7 bilhão de reais; que esse total veio de um superavit financeiro de 666 milhões, um excesso de arrecadação de 594 milhões e da anulação parcial de dotações orçamentárias já existentes de 441 milhões; e que, desse bolo, saem os 19,3 milhões de reais suplementados para a Ação Programática 2032, já existente, que trata da Educação Superior – Graduação, Pós Graduação, Ensino, Pesquisa e Extensão, na linha específica Funcionamento de Instituições Federais de Ensino Superior, no estado do Rio de Janeiro. Nessa Ação 2032 também aparecem 2,5 milhões de reais para o programa Assistência ao Estudante do Ensino Superior, no estado do Rio de Janeiro e mais 3,0 milhões de reais para o programa Reestruturação e Expansão das Instituições Federais, no estado do Rio de Janeiro.
(Fac-símile de decreto de 27.07.2015, publicado no Diário Oficial da União, edição de 28.07.2015 - clique na 'fonte', ao final deste post, para ver o original).
Gama Junior trabalha há onze anos com o orçamento da UFRJ. Diz que, em 2015, a universidade solicitou os créditos suplementares como fez sempre. E que, mesmo com a autorização de crédito dada pelo decreto, a universidade não viu a cor do dinheiro: “A gente recebeu o crédito suplementar de 19,3 milhões de reais, mas não recebeu nada em autorização para mais empenho. E o que conta é o limite de empenho, a autorização para gastar. E depois, o pagamento efetivo do gasto. Em 2014 ocorreu o mesmo: houve a abertura do crédito, mas não do limite de empenho. Com certeza, se tivéssemos recebido esses recursos, eles seriam direcionados para a manutenção da universidade.”
Gama Junior trabalha há onze anos com o orçamento da UFRJ. Diz que, em 2015, a universidade solicitou os créditos suplementares como fez sempre. E que, mesmo com a autorização de crédito dada pelo decreto, a universidade não viu a cor do dinheiro: “A gente recebeu o crédito suplementar de 19,3 milhões de reais, mas não recebeu nada em autorização para mais empenho. E o que conta é o limite de empenho, a autorização para gastar. E depois, o pagamento efetivo do gasto. Em 2014 ocorreu o mesmo: houve a abertura do crédito, mas não do limite de empenho. Com certeza, se tivéssemos recebido esses recursos, eles seriam direcionados para a manutenção da universidade.”
2.
A argumentação dos que querem o impedimento definitivo da presidente Dilma é em grande parte apoiada na enorme crise econômica e social deflagrada a partir de 2015. Mas não era só a presidente, evidentemente empenhada em ganhar as eleições de 2014, que não via o abismo à sua frente. Em abril de 2014, quando o governo Dilma apresentou o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2015, a ser enviado ao Congresso, havia um clima geral de relativo otimismo com a economia, mundial e brasileira. A grande crise, que levara as economias capitalistas desenvolvidas a um crescimento de menos 4% em 2009 e a economia global a uma taxa em torno de zero, parecia superada. O Fundo Monetário Internacional previa para aquele ano e os seguintes, um retorno à normalidade, com as economias avançadas voltando a um crescimento médio em torno de 2,5% e as economias emergentes chegando perto de uma taxa de 6,0% anuais. E o PLDO da presidente previa explicitamente “o fim da crise desencadeada em 2008”, “um crescimento gradual da economia brasileira”, a “reversão dos estímulos econômicos” e uma “consolidação fiscal”. A economia brasileira, nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), crescera em média a 2,3% ao ano e a 4,0% em média nos dois governos do presidente Lula (2003-2010). A previsão do PLDO era a de que o crescimento no País iria se acelerando, dos 2,3% de 2013, para 2,5% no ano em curso de 2014, para chegar a um crescimento médio de 4,0% em 2015 e 2016, os dois primeiros anos do mandato que a presidente iria conseguir nas eleições de outubro. Quanto à meta do chamado resultado primário, o número crítico, da economia de receitas para pagar parte do custo de rolagem da dívida e impedir o seu crescimento descontrolado, se esperava para 2015, 143 bilhões de reais.
Nas suas previsões, como se veria pouco tempo depois, o governo errou, como muita gente é fato, mas errou feio: o crescimento em 2014 foi quase zero, 0,1%; o de 2015 foi de -3,8%; e o deste ano de 2016 deve ser apenas um pouco menos pior. E não se obteve resultado primário positivo algum em 2015; ao contrário, houve um deficit primário de 112 bilhões de reais e a dívida pública, que vinha sendo contida ao longo dos governos do PT, voltou a disparar.
Dilma ganhou as eleições de 2014 mas não ganhou o apoio do Congresso para seus projetos de contenção dos “estímulos econômicos” e de “consolidação fiscal” constantes do PLDO de abril. No final do ano, tanto o governo, como o mercado, já previam um crescimento econômico menor, entre 0,8% e 1,0% apenas, do PIB para 2015, e o resultado primário foi reduzido a menos da metade, para 53,3 bilhões de reais, quando a LDO foi aprovada no Congresso, no final de 2014. E a composição da nova Câmara dos Deputados, considerada uma das mais conservadores dos últimos tempos, ampliaria os problemas governistas.
A aprovação da Lei Orçamentária de 2015 demorou. Seu relator foi o senador Romero Jucá, do PMDB de Roraima, que posteriormente, por doze dias, seria o ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão do governo de Michel Temer (O vice tomou posse em 12 de maio, com o afastamento de Dilma para o julgamento do impeachment pelo Senado. Jucá foi um dos principais articuladores do novo governo. Pediu demissão no dia 24, depois da divulgação de gravação de conversa dele com um delator da Lava Jato, o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, na qual apresentava a fórmula para afastar Dilma, levar Temer ao poder e delimitar a Lava Jato: "Tem que ser um boi de piranha, pegar um cara, e a gente passar e resolver, chegar do outro lado da margem").
Jucá, desde o final de 2014, buscou um acordo com a bancada de 240 novos deputados saídos das eleições. Para garantir que eles pudessem apresentar emendas à LOA 2015 conseguiu comandar o arrastamento do prazo de aprovação da lei orçamentária para março de 2015, depois que os recém eleitos apresentaram emendas no valor de 2,4 bilhões de reais, elevando o valor dessas dotações ao orçamento de 9,6 bilhões para 12,0 bilhões de reais.
O novo governo Dilma já chegou para seu segundo mandato, ao contrário do que dizem os interessados em provar os seus gastos mirabolantes e ilegais, com o freio do gasto puxado. A primeira ação da presidente no sentido de conter as despesas foi chamar Joaquim Levy, um liberal notório, para Ministro da Fazenda. É nesse ministério, onde se localiza a secretaria do Tesouro, no qual havia um bloco de técnicos há tempos incomodados com o atraso nos pagamentos pelo governo de compromissos assumidos com a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, fundos importantes como o FGTS, que Levy dispara o movimento de liquidação desses passivos. Essa ação será descrita detalhadamente no próximo capítulo desta série, ao se tratar do Plano Safra, causa de uma das principais acusações contra Dilma. Outras duas ações também comandadas pela Fazenda dirigida por Levy a partir de janeiro de 2015 e igualmente constantes do rol de “crimes de responsabilidade” imputados à presidente, são dois dos seis decretos de créditos suplementares apresentados como ilegais pelos denunciantes do processo de impeachment em curso quando de sua aceitação pelo presidente da Câmara, em dezembro do ano passado. O valor de créditos concedidos nos seis decretos é de aproximadamente 95 bilhões de reais. As duas suplementações pedidas pela Fazenda somam perto de 93 bilhões de reais, mais de 95% do total, portanto. Mas foram descartadas do processo de impeachment: uma, ainda na Câmara, pelo deputado Jovair Arantes (PTB-GO), relator do parecer sobre o caso, aprovado pelo plenário daquela casa; e a outra, pelos peritos nomeados pela Comissão Especial de Impeachment do Senado ao examinar a documentação do caso na fase de produção de provas para o julgamento. Sobre estes dois pedidos de suplementação, falaremos mais no último capítulo desta série, que tratará da origem dos problemas financeiros do governo. Por ora, no entanto, nestes dois decretos – aceitos pelo presidente da Câmara como indícios de “crime de responsabilidade”, vale lembrar -, destacaremos o fato de eles se basearem, como os outros quatro, em superavit financeiro e excesso de arrecadação. Mas, também, em cancelamento de despesas. Os dois, aliás, na soma de tudo, acrescentam dinheiro ao orçamento, não de gasto: o primeiro, um dos quatro assinado pela presidente em 27 de julho de 2015, tem 36,7 bilhões de reais de suplementações e se apoia em superavit financeiro de 1,4 bilhão e cancelamento de dotações de 36,0 bilhões, ou seja, uma quantia maior, de 37,4 bilhões; e o segundo, assinado cerca de um mês depois, a 20 de agosto, para abrir créditos suplementares num total de 55,2 bilhões de reais, tem como lastro dois cancelamentos de dotações, um de 1,4 bilhão e outro de 55,2 bilhões, num total de 56,6 bilhões, também maior que o gasto, portanto.
De qualquer forma, mesmo antes de a lei orçamentária (LOA 2015) do ano ser publicada no diário oficial da União no dia 22 de abril, as dotações passaram a ser cortadas pesadamente. Sem a LOA com aprovação do Congresso e sanção presidencial, manda a legislação fiscal, as despesas do governo só podem ser liberadas mensalmente no início do ano em um doze avos (1/12) do total. Mas a liberação passou a ser feita com um teto menor: um dezoito avos (1/18), que corresponde a 30% menos, em relação ao legalmente permitido.
Com o orçamento aprovado, em 22 de abril Levy e Barbosa apresentaram a programação orçamentária para o o ano (veja a foto na abertura desse artigo): ficava decretado um contingenciamento de 69,9 bilhões de reais nas dotações orçamentárias, em função de uma queda estimada de 65,1 bilhões nas receitas e um crescimento de 4,8 bilhões nas despesas obrigatórias. O ministro Barbosa anunciou que todos os ministérios contribuiriam, economizando o máximo possível, inclusive nos gastos de segurança e limpeza (para lembrar, a UFRJ, como vimos no início deste capítulo, teve de entrar nessa…).
A lei manda a administração federal prestar contas publicamente a cada dois meses. Assim, em julho, o governo anunciou que a arrecadação tinha passado de mal para pior. E disparou duas coisas: um novo contingenciamento, da ordem de 8,6 bilhões de reais; e, pelo fato de considerar que o resultado primário não poderia ser atingido de forma razoável – ou seja, sem cortes de gastos brutais que causariam graves problemas – enviou ao Congresso proposta para mudança da meta, de um saldo 66,3 bilhões, para 8,7 bilhões de reais.
O governo agiu também nas despesas obrigatórias, nas quais cortou 25,7 bilhões, fazendo, na área social, por exemplo, ajustes nos benefícios associados ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Na outra ponta, na tentativa de ampliar a arrecadação, algumas desonerações fiscais foram revistas, como as das folhas de pagamentos, as do Imposto sobre Produtos Industriais (IPI) sobre veículos, moveis e cosméticos. E se procurou pegar algum dinheiro também com o restabelecimento do chamado PIS/COFINS sobre receitas financeiras e a correção do seu valor nos produtos importados. Estes são recursos definidos há décadas. Deveriam ser destinados às funções das quais derivam os seus nomes. E que, há tempos, tem, como se diz, sido garfados, com o propósito de garantir o superavit primário: o PIS, Programa de Integração Social para os trabalhadores é do final de 1970, do Regime Militar, portanto; e o COFINS é do final de 1991, governo Collor, significa Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social, ou seja, da previdência pública. E, desde o Plano Real, há mais de vinte anos, portanto, tem sido jogado no esforço de tentar impedir o crescimento acelerado da dívida pública. Também houve a elevação do imposto sobre algumas obrigações financeiras, da tributação sobre combustíveis, sobre bebidas e sobre o lucro líquido das instituições financeiras. Foram também majoradas tarifas, como as de apostas em loterias e na expedição de passaportes.
Nada disso bastou. A queda da receita líquida efetivamente observada ao final do ano foi de 180 bilhões de reais em relação ao previsto na LOA de abril e de 115 bilhões de reais em relação ao previsto no primeiro relatório de programação financeira de fins de maio de 2015. Mas o governo controlou a despesa. O previsto no orçamento era um gasto de 1,225 trilhão de reais; mas foram gastos apenas 1,162 trilhão. Se a receita tivesse vindo como o previsto, 1,223 trilhão, teriam sido pagas todas as despesas e ainda sobrado o superavit de 63 bilhões que se queria no início do ano.
No segundo semestre de 2015, a situação do governo Dilma piorou muito com a repercussão política das ações do Tribunal de Contas da União, a serem detalhadas no capítulo 5 de nossa história. Nesse período houve até um curto período de “apagão” no governo, com o corte de todas as despesas não obrigatórias.
3.
Para provar que os decretos de créditos que suplementaram centenas de ações orçamentárias são ilegais, como mostramos no capítulo 2 desta série (A lição de Esther), os pro-impeachment dizem agora que bastava achar, em cada um deles, uma das ações com impacto negativo sobre o superavit primário, coisa que os peritos do Senado teriam feito. Na ocasião, perguntamos: por que eles não somam o conjunto dos impactos para todas as ações de cada decreto? Porque veriam que sua posição ficaria ridicularizada: para cada um dos decretos e para qualquer um dos órgãos com suplementações, o conjunto dos gastos é sempre menor que o previsto inicialmente na lei orçamentária!
Vejam os prezados leitores: além do gasto ser limitado de fato pelo empenho e pelo pagamento efetivo, ou seja de muitas dotações não terem sido empenhadas ou, se empenhadas, não serem pagas, todos os decretos de suplementação para dotações já existentes tem uma parte para cancelamento de ações orçamentárias, ou seja, para canelamento de dotações já existentes. A lista de programas cortados dá pena. Fiquemos no exemplo do decreto que beneficiou, entre outros, com 19,3 milhões de reais a UFRJ, na forma já descrita. Esse mesmo decreto cancelou 215,8 milhões para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, sendo cancelados, nesta rubrica, por exemplo, 18,4 milhões para a implantação de escolas infantis; 5,5 milhões para a implantação e adequação de estruturas esportivas escolares; e 192,0 milhões do programa “dinheiro direto nas escolas de educação básica”. Também foram cancelados programas de reestruturação e expansão de quase todas as universidades federais, verbas de assistência para o estudante de ensino superior, para fomento às ações de graduação, pós-graduação, ensino e pesquisa; e de apoio à capacitação continuada de professores. Nesse mesmo decreto, o INSS também perdeu 40,8 milhões, para a instalação de unidades de atendimento e capacitação de servidores. O Ministério da Cultura perdeu 7,4 milhões que eram destinados ao Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural; e 1,2 milhão da Agência Nacional de Cinema.
Ocorreram diversos debates sobre os gastos do Ministério da Educação na Comissão Especial do Impeachment do Senado, na fase de produção de provas para o julgamento final da presidente, Esses gastos respondem, em valor, por cerca de 70% das ações orçamentárias contidas nos decretos ainda considerados ilegais. E os debates foram também muito esclarecedores. Mostram a debilidade dos argumentos dos pro-impeachment que falam da gastança que teria havido no governo Dilma.
No dia 16 de junho, por exemplo, depôs Luiz Cláudio Costa, secretario executivo do ministério em 2015. Ele mostrou de forma simples: os cerca de 1, 6 bilhão de reais de créditos suplementares recebidos, quando somados aos cancelamentos de dotações no orçamento do ministério, correspondem a um corte de 11,0 bilhões de reais! A dotação da LOA para o ministério, em abril de 2015 era de 48,5 bilhões; após três decretos de contingenciamento, de limites no empenho e em autorizações para gastar, o órgão gastou 37,5 bilhões!
Costa também esclareceu que o procedimento de abertura de créditos suplementares a partir de decretos era normatizado, desde 2008, por acordo decidido e implementado em conjunto pelo TCU e a Associação Nacional dos Dirigentes do Ensino Superior para resolver, sobretudo, o problema dos convênios e doações às universidades. Antes desse acordo, esses recursos eram direcionados para as Fundações de Apoio. Os reitores reclamavam que o não direcionamento direto para o orçamento das instituições comprometia a nitidez da gestão. A partir deste acordo, que foi sendo aprimorado até 2011, houve decretos de créditos suplementares todos os anos. Agora o TCU tem uma nova interpretação, disse ele. Agora, só com projeto de lei.“Se esse entendimento prevalecer, vamos ter que sentar com os reitores, com os administradores das universidades, dos hospitais universitários e verificar como vamos fazer com o superavit dos exercícios anteriores e mesmo com o excesso de arrecadação no ano. Que metodologia vamos utilizar para que haja uma gestão efetiva dos recursos?”
Se depender de projetos de lei para universidades, hospitais e instituições federais alocarem recursos próprios em seus orçamentos, o assunto será decidido por deputados e senadores, numa disputa de vaga com outros projetos na agenda do Congresso. Isso, claramente, não é razoável é a conclusão que se pode tirar. E muito mais especialmente, quando se quer transformar essa mudança na razão para o impeachment de uma presidente eleita.
Na CEI falou também, no dia 20 de junho, o ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro. Janine lembrou que uma parte substancial a que se referem os decretos é de receitas próprias dos 150 órgãos ordenadores de despesas do MEC, entre eles as 101 universidades e institutos federais de pesquisa. E defendeu a legalidade e a a forma como isso foi feito. “Um instituto produz café, como é o caso, e vende café. Para ele gastar o dinheiro arrecadado é preciso um decreto presidencial que o autorize. Se uma universidade produz doce de leite – o melhor doce de leite do Brasil o senhor sabe qual é, da Universidade Federal de Viçosa, seu Estado”, disse dirigindo-se ao relator da CEI, o senador Antônio Anastasia, mineiro, “esse dinheiro é arrecadado para ser gasto pela universidade no seu próprio interesse. Em outras palavras, não se trata de dinheiro do contribuinte. Trata-se de dinheiro obtido no mercado, por uma ligação que tem o ensino superior federal com o mercado, algo que todos queremos: que a universidade seja capaz de gerar receitas próprias, sem prejuízo de sua missão. Então, nesse caso, o que se trata é simplesmente de validar esse dinheiro. Não há um acréscimo que o contribuinte vá pagar”.
Janine falou também dos cortes de 2015 no Ministério, de quase R$11 bilhões nas despesas discricionárias. “É bom deixar claro: o discricionário, apesar da palavra, não é rigorosamente, a bem da verdade, discricionário. Inclui bolsas, por exemplo. Nós tínhamos dezenas de milhares de bolsas em mestrado e doutorado, o que forma nossos doutores e mestres. Houve uma perda de quase um quarto do valor para esses cursos. Qual o custo para o Pais? Os recursos de gasto obrigatório são os salários, são recursos em que não se pode tocar, mas os recursos que realmente fazem uma grande diferença são os discricionários. É aí que se equipa uma universidade; é aí que se dão bolsas; é aí que se faz, no caso do ensino da pós-graduação, o convite a professores para participarem de bancas, etc”.
Janine também falou sobre o acordo Ministério da Educação-TCU desenvolvido entre 2008 e 2011. “A administração universitária tem peculiaridades muito diferentes de outras. Ela deve ser a menos burocrática possível, deve ser a mais finalística possível. Ela deve atender o máximo possível ao mérito na escolha dos docentes, dos pesquisadores, dos servidores. Tudo isso é muito importante, e o nosso sistema habitual não favorece esse tipo de encaminhamento. Historicamente, houve muitos choques entre as reitorias das universidades e o TCU, até que, em 2008, se não me engano, houve [esse] grande encontro, um seminário de todas as universidades federais com o TCU, do qual saíram várias recomendações. Tanto o TCU tomou conhecimento melhor das peculiaridades das universidades, quanto as orientou para não tomarem medidas que fossem equivocadas. É preciso haver uma fórmula jurídica que leve em conta a realidade universitária. A presteza na edição dos atos autorizativos, evidentemente, é absolutamente necessário para a vida acadêmica, senão ela perece. Da primeira vez que soube que um advogado ilustre – que quis manter o nome em segredo – queria fazer uma doação à faculdade de Direito onde se ilustrou o nosso Miguel Reale Júnior”, disse Janine, referindo-se a um dos assinantes do pedido de impeachment da presidente, “não havia como fazer. A reitoria não tinha a menor ideia de como fazer isso, de como interiorizar essa doação. Nós não temos uma tradição forte disso. Agora, uma vez efetuada a doação, um decreto presidencial tem que autorizar o gasto pela universidade. Poderia haver uma forma mais automática, ainda?”
Janine falou, finalmente, na gastança.“Do ponto de vista do Ministério da Educação, para me ater ao que ouvi diretamente, mas tendo obviamente informações sobre o que acontecia nas outras áreas ministeriais, impossível dizer que tenha havido gastança. O que houve, ao contrário, foi uma contenção tão severa que foi a fonte de inúmeros descontentamentos. Tive o desprazer, é óbvio, de praticamente, a cada dois dias, ter manifestações diante do prédio do ministério”, disse Janine. “Não houve nada de gastança. Ao contrário, lutamos, com extraordinária dificuldade para manter o que estava lá. E quando a gente tem que escolher se corta 10% das bolsas ou se dá um aumento de 10% nas bolsas, é a típica escolha de Sofia: É muito duro”. Pior ainda, se esses acontecimentos forem interpretados de forma facciosa e oportunística para derrubar uma presidente democraticamente eleita. (Fonte: AQUI).
*Lia e Raimundo são repórteres, trabalharam nas revistas Retrato do Brasil e Reportagem, da Editora Manifesto. Raimundo foi editor de política de Veja e editor geral dos semanários Opinião e Movimento, durante o Regime Militar. Atualmente, planeja, pela Editora Manifesto, um semanário de informações, a ser lançado em 2018.
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