O julgamento de Dilma Rousseff: a lição de Esther Dweck
No dia 23 de junho, por cerca de três horas, Esther Dweck, secretária do orçamento do último mandato de Dilma Rousseff, depôs na Comissão Especial do Impeachment do senado da República. Esther pode ser chamada de a principal responsável, na área técnica do governo, pelo encaminhamento dos três decretos apontados agora como a causa básica para o processo que visa encerrar o mandato de Dilma Rousseff no final do próximo mês de agosto. Seu depoimento teve escassa repercussão, no entanto, como, de resto, a sequência de depoimentos das 38 testemunhas de defesa da presidente na CEI, como já destacamos (ver artigo 1 desta série, O Cheiro de Golpe). Agora, no entanto, quando se aproxima o momento decisivo do julgamento da presidente, quando os 81 senadores serão chamados a dizer se ela cometeu ou não “crime de responsabilidade”, vale a pena ouvir uma espécie de lição dada por Esther aos senadores, embora a maioria deles, como se verá, se comportasse como se ela não tivesse dito o que disse.
Esther, 39 anos, é doutora em economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nelson Barbosa, 46, o último ministro da Fazenda de Dilma, que também é da UFRJ, a indicou para a assessoria do Ministério do Planejamento, para onde ela foi, em 2011, trabalhar com Míriam Belchior, ministra dessa pasta no primeiro ano do primeiro governo da presidente petista. O doutoramento de Esther era em teoria econômica. Quando Dilma se reelegeu e colocou o liberal Joaquim Levy no Ministério da Fazenda, no início de seu segundo mandato, Esther foi para a SOF. Não poderia ter escolhido um período pior: o orçamento teve os maiores cortes de sua história recente, inaugurada em 2001 com a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Esther foi duas vezes à CEI para depor. Na primeira, a 13 de junho, não passou da sala de espera. A maioria da comissão, favorável ao impeachment, votou pelo cancelamento de seu testemunho e de mais três outros. Todos tinham sido convocados por essa maioria, os acusadores, que alegaram, de última hora, já ter provas suficientes dos crimes supostamente praticados pela presidente. Poucos dias antes, na primeira sessão dessas oitivas, da tarde do dia 8 à madrugada do dia 9, duas das quatro pessoas também convocadas por eles, tinham dado depoimentos considerados favoráveis à defesa de Dilma. De algum modo, eles descobriram que Esther não falaria como imaginavam. E tinham razão: ao ouvir Esther, como testemunha da defesa, no dia 23, os senadores pro-impechment reconheceram ser ela uma das figuras centrais para a reconstituição dos fatos básicos do processo, mas não contra Dilma, como eles queriam.
Como dissemos no capítulo 1 de nossa história, esse processo – hoje, perto do final de julho, depois do relatório oficial de peritos do Senado sobre toda a documentação envolvida –, poderia ser resumido à assinatura pela presidente de três decretos considerados ilegais. No final do ano passado, na acusação inicial assinada pelos advogados Hélio Bicudo, Reale Júnior e Janaína Paschoal, eram sete crimes. O primeiro e o maior deles, o das chamadas “pedaladas fiscais”, atrasos de pagamentos generalizados somando cerca de 50 bilhões de reais ao longo de 2013, 2014 e 2015, em programas de governo tocados pelo Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco de Desenvolvimento Econômico Social e alguns fundos. E mais seis decretos de créditos suplementares aos orçamentos de 2015, considerados ilegais e assinados pela presidente.
Na aceitação da denúncia pelo plenário da Câmara, os supostos crimes ficaram restritos aos referentes a 2015. Isso reduziu as “pedaladas” a débitos de cerca de 1,5 bilhão de reais com o Banco do Brasil. E derrubou dois dos seis decretos. Com os peritos, os “crimes” podem ter se reduzido ainda mais, de cinco para três. O das pedaladas pode ter ficado de fora: os peritos reconheceram a não existência, no caso, de ato da presidente na sua formalização, como exige a lei. E um dos quatro decretos também caiu: os peritos disseram que ele não cumpre um dos requisitos apresentados pelos próprios denunciantes para a caracterização do crime, ou seja, o de prejudicar a meta do superavit primário. Grifamos podem, porque a acusação, nas suas alegações finais – já apresentadas à CEI, no dia 12 de julho –, reafirmou todas as suas acusações iniciais, todos os sete crimes. E porque os senadores, como se verá, não parecem estar levando em conta os esclarecimentos apresentados à CEI, mas suas opiniões formadas antes. De qualquer modo, as respostas de Esther às perguntas feitas pelos senadores no dia 23, já como testemunha da defesa, são essenciais para se tomar partido, a partir dos fatos concretos, na história do julgamento da presidente.
Como todas, a sessão começou com as perguntas do senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), relator da CEI. Anastasia é educado, cortês. Mas defende o impeachment, sem dúvida: fez o relatórios já aprovado na comissão e no plenário do Senado pela aceitação da denúncia contra a presidente e pelo seu afastamento provisório do cargo para julgamento. No interrogatório de Esther, Anastasia foi direto ao centro dos argumentos pelo impeachment. Essencialmente, hoje eles se resumem ao seguinte: os pedidos de crédito suplementar, encaminhados pela presidente por decreto no segundo semestre de 2015, dois em julho e dois em agosto, quando já estava clara a impossibilidade de o governo cumprir a meta de resultado primário – saldo entre receitas e despesas necessário para pagar juros e impedir o descontrole da dívida do País – são ilegais. A Constituição autoriza a emissão de decretos de créditos suplementares para o orçamento mas a Lei de Responsabilidade Fiscal só permite a abertura desses créditos com a garantia de eles não prejudicarem o cumprimento dessa meta. Anastasia sugeria com suas perguntas que a emissão dos decretos no segundo semestre de 2015 refletia o descontrole da gestão da petista e desrespeito às leis suficiente para motivar o impeachment. Queria saber se a secretaria do Orçamento Federal, dirigida por Esther, tinha controle dos gastos implícitos nessas suplementações de verbas por decreto e se o órgão advertiu a presidente que os autorizou sobre os impactos desses atos no sentido de prejudicarem o cumprimento da meta do superavit primário exigido pela LRF. Queria saber também o nome de outras pessoas, além dela, participantes das decisões sobre os créditos.
Esther foi sucinta e contundente na resposta a essas dúvidas. “Nenhum desses decretos de crédito suplementar tinha impacto no resultado primário. Isso está muito claro na própria exposição de motivos de todos eles e nos controles que a gente faz para que não tenham impacto sobre a meta”. A seguir, explicou: são três os tipos de despesas que os créditos suplementares ajudam a pagar: 1) financeiras; 2) primárias discricionárias – ou seja, sujeitas a corte em caso de necessidade, e: 3) obrigatórias, não sujeitas a corte, como seu próprio nome diz. Nenhuma dessas três possibilidades de suplementação de despesa têm reflexos sobre o superavit primário, explicou. As despesas financeiras não contam, porque, pagá-las é justamente ajudar a reduzir despesas como juros, objetivo máximo do superavit primário. As discricionárias são impedidas de ultrapassar os limites necessários para garantir o resultado primário pelos decretos de contingenciamento, de limitação do gasto, ao qual todas estão sujeitas. E, no caso das despesas obrigatórias, a SOF faz um controle de todas as suplementações solicitadas, através de relatórios de avaliação de receitas e despesas, de modo a garantir, no caso de a soma das despesas obrigatórias suplementadas ameaçar o resultado primário, sejam feitas, em outras despesas, cortes equivalentes.
Esther explicou aos senadores: seu trabalho de supervisão na SOF não era, nem poderia ser, disse, o de supervisionar cada pedido de crédito suplementar. O Ministério da Educação, por exemplo, do qual partiu o maior dos pedidos de crédito suplementar – de cerca de 70% do total de 1,8 bilhão de reais dos três decretos em discussão – recebeu pedidos de mais de cem universidades, institutos, hospitais universitários e outros órgãos. “A gente jamais teria capacidade de avaliar cada ação orçamentária em cada unidade orçamentária”, disse. “Cada órgão, cada unidade orçamentária faz o seu controle dentro dos limites que tenha disponíveis”. Por último, Anastasia perguntou sobre a meta de resultado primário levada em consideração na ocasião da edição dos decretos: teria sido a meta vigente ou a proposta, mas ainda não aprovada pelo Congresso? E qual seria o fundamento dessa opção. No caso, queria o depoimento de Esther em outro dos argumentos centrais dos pro-impeachment: eles dizem que a aprovação, pelo Congresso Nacional, de uma nova meta para o resultado primário no final de 2015, não apaga o crime cometido por Dilma com os decretos assinados em meados do ano, em desrespeito à meta aprovada na LOA 2015 no início do ano.
A resposta de Esther foi surpreendente para muitos senadores, mas coerente. “Não é levada em consideração a meta. O que a gente faz? A gente garante que todas as aberturas de crédito não impactem na meta, que sejam neutras em relação à meta. Essa é a coisa mais importante desses créditos suplementares: eles são abertos com impacto neutro. É essa justificativa que a gente utiliza; ela está nas exposições de motivos de todos esses decretos. Ela é exatamente a mesma quando a gente encaminha não um decreto, mas um projeto de lei de crédito suplementar ou de crédito especial. Para eles terem efeitos neutros, ou estão sujeitos ao contingenciamento e, portanto, não aumentam a despesa, ou necessariamente vão constar dos relatórios de avaliação de receitas e despesas e, consequentemente, gerar um contingenciamento no mesmo montante para garantir justamente o impacto neutro”. Essa parte final da resposta de Esther igualando os decretos aos projetos de lei, se deve ao fato de o Tribunal de Contas da União ter, como mostraremos em outro dos capítulos de nossa série, criado a tese de que o superávit primário poderia ser garantido desde que a presidente não assinasse os decretos mas os encaminhasse na forma de PLs, projetos de leis, a serem aprovados pelo Congresso.
Anastasia ainda apresentou uma última questão: “Eu queria ouvir a opinião de V. Sª sobre uma questão que nos intriga muito. Pela exposição que V. Sª fez, parece-me que o art. 4º da LOA [lei orçamentária anual, artigo que cobra a verificação do cumprimento da meta de resultado primário) perdeu muito do seu valor. Na realidade, não digo que [o artigo] seja letra morta, mas eu não vejo como que a SOF verifica, então, a compatibilidade que lá é determinada. Qual seria, então, o valor desse art. 4º da LOA, na visão da SOF?” Com toda a sua delicadeza aparente, percebam os leitores, Anastasia está sugerindo que a resposta de Esther tinha sido a de que a SOF, de fato, desprezava a necessidade de garantir a compatibilidade do decreto de crédito suplementar com a meta de obtenção do superavit primário, constante do tal artigo 4 da Lei Orçamentária Anual.
Mas Esther não deixou de dar uma resposta precisa à insinuação. “Perfeitamente, obrigada, Relator. Eu acho o contrário. O art. 4º da LOA, principalmente a parte mais discutida, a da compatibilidade com a meta, condiciona todas as nossas ações”. E repetiu: a SOF submete todos os créditos suplementares aos decretos de contingenciamento – tanto quando são créditos sujeitos a esses decretos, como quando não estão. No caso de serem pedidos de suplementação para despesas obrigatórias e as fontes dos recursos apontadas para suplementá-las serem vinculadas necessariamente a essas despesas, a SOF faz, no conjunto dos gastos, um contingenciamento no mesmo montante do excesso de gasto específico do decreto, para poder garantir a ausência de impacto na meta do resultado primário do conjunto. “O respeito à meta do gasto condiciona todas as nossas ações. Inclusive, fez com que a própria legislação e todos os normativos relacionados aos créditos suplementares fossem sendo aperfeiçoados para garantir que eles fossem compatíveis com a meta e não a afetassem. E, como eu disse, isso se aplica também aos projetos de lei e à reabertura de crédito de anos anteriores”, disse Esther.
Os repórteres dessas linhas compreendem que o entendimento das sutilezas do orçamento não é fácil. Conversaram com Esther recentemente para poder redigir esse texto. Fizeram um grande arquivo, com as excelentes notas taquigráficas de todas as sessões de oitivas da CEI e dos documentos apresentados a essa comissão pelas partes envolvidas. Separaram os trechos específicos dos depoimentos das testemunhas dos vastos e frequentes bate-bocas entre os senadores. Separaram, uma por uma, as 96 respostas dos peritos, convocados pelo comando da comissão, aos 23 quesitos específicos submetidos a eles pela acusação e aos 73 apresentados pela defesa. Mas, no que mais a ex-secretária da SOF lhes ajudou foi ao mostrar uma espécie de caminho das pedras para chegar a uma conclusão: informações que levou a seu depoimento na CEI, mas não destacadas nos debates lá ocorridos, nas quais estão dados essenciais para a compreensão da história. As duas tabelas seguintes sintetizam essas informações. A primeira mostra, por órgão do governo, nas quatro primeiras colunas, a programação orçamentária: a original – as dotações autorizadas pela lei, a LOA 2015 - e a alterada pelas suplementações fornecidas pelos decretos, graças a superávit financeiro e excesso de arrecadação dos órgãos demandantes. E mostra ainda: no final, na penúltima coluna, o que chegou a ser empenhado, o compromisso assinado pelo governo de que a despesa seria paga: e, na última, o que foi efetivamente gasto, ou seja, pago de fato no ano orçamentário de 2015.
Os números da tabela são em milhões de reais. Como se pode ver, com os decretos, as autorizações orçamentárias cresceram, de fato: foram de 52.201 milhões para 55.295 milhões. No entanto, o total empenhado – ou seja, com autorização final para gastar – foi bem menor, de 48.496 milhões; e o total efetivamente gasto, ou seja, que foi pago no ano, menor ainda, de 41.393 milhões. Note-se que em nenhum órgão se gastou mais do que o definido pela LOA inicialmente. E note-se, finalmente, para se ver como é complexa a gestão do conjunto, que certos órgãos tiveram sua autorização de gasto reduzida, mesmo após a incorporação das receitas suplementares, devido ao cancelamento de ações orçamentárias. (CONTINUA).
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(Clique AQUI para ler, na íntegra, "O julgamento de Dilma, parte 2: a lição de Esther", por Raimundo Rodrigues Pereira).
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