sábado, 30 de julho de 2016

LAMPEDUSA, O LEOPARDO


A única doença incurável é a velhice

Por Sebastião Nunes

Em agosto de 1954, depois de forte crise de tosse, Giuseppe Tomasi di Lampedusa, nobre italiano, sentiu aguda pontada no peito. Não era a primeira vez. Fazia algum tempo que essas pontadas se repetiam a cada vez que tossia. Lampedusa estava ficando velho: havia completado 57 anos e não realizara o sonho da juventude: escrever um livro. Sempre fora bom leitor em várias línguas, mas escrevera pouco: alguns artigos e dois ou três contos. De vez em quando, frequentava eventos literários e conhecia autores importantes. Apesar disso, seu primeiro livro não tomava forma, pois jamais era iniciado.
(Parêntese: todo escritor sabe como é difícil produzir as primeiras linhas. Às vezes uma boa ideia se fixa na cabeça durante anos – e nada acontece. Depois que se pega o jeito, ou que se começa, é fácil, ou pelo menos se escreve sem grandes traumas. Como em quase tudo, também em literatura o mais difícil é o começo. E não é raro o caso de “falsos” escritores, os que passam a vida inteira prometendo um livro, que nunca escrevem, ou nunca terminam, ou nunca se atrevem a publicar.)
AS PORTAS DA PERCEPÇÃO
            Em julho de 1957 Giuseppe Tomasi morreu. Em menos de três anos começara e concluíra seu único romance: “O Leopardo”. Sonhara esse livro metade da vida. A partir dos 35 anos fixara o projeto da história, que deveria retratar a situação política da Sicília na época de seu bisavô, o príncipe Fabrizio, e do revolucionário e unificador da Itália, Giuseppe Garibaldi.
            É um livro fascinante. Guardadas as proporções, é tão importante quanto “Em Busca do Tempo Perdido”, a monumental obra-prima de Marcel Proust, sem par entre os pares. Como Lampedusa, Proust começou tardiamente a escrever seu romance, uma das obras capitais do século XX. Afastado da intensa vida social parisiense e recolhido a um quarto revestido de cortiça, o sofisticado e erudito francês, homossexual e asmático, começou a espantosa (e cruel) rememoração, envolvendo centenas de nobres e burgueses, empenhados na luta pelo poder social e econômico, matriz e gênese de todos os outros poderes. Mas, acima de tudo, o livro de Proust é o retrato impiedoso da odisseia do ser humano, da juventude à velhice.

TEMPO E TEMPERAMENTO
            “O Leopardo” também vai fundo nos conflitos sociais, psicológicos, éticos e econômicos de um longo período, tanto da história italiana quando da própria humanidade. Dom Fabrizio, o príncipe, representa velhos valores: desprezo pelo dinheiro, amor à terra, dignidade pessoal, fidelidade aos padrões aristocráticos. Intelectual refinado e cientista culto, tem consciência de que sua estirpe está no fim, de que é o último representante de certa visão de mundo, ao mesmo tempo rigorosa e desencantada.

DIGNIDADE X INUTILIDADE
            Dom Fabrizio acreditava que o mais importante é viver com dignidade. Mas certa noite, em um dos bailes da nobreza, o príncipe mergulha em tédio. Não suporta a conversa vazia dos velhos amigos, muito menos a presença das velhas senhoras, muitas das quais, como ele mesmo percebe, perplexo e confuso, haviam sido belas e amantes suas. E se pergunta: “Mas o que era que havia nelas, de belo ou de espirituoso, para que eu perdesse meu tempo cortejando, adulando, traindo, possuindo e me orgulhando?” E o próprio Dom Fabrizio se responde, do fundo da poltrona na qual caíra deprimido: “Era a juventude, meu caro, a mais bela e deliciosa das amantes, a que enche os olhos de brilho e de claridade o cérebro. Contra ela e seu poder de nada vale a dignidade humana”.
            Pressionado pela responsabilidade de escrever o único livro de sua vida, Lampedusa protelou ao máximo. Quando os quatro primeiros capítulos estavam prontos foram submetidos a um primeiro editor, que os recusou. Não há tragédia nisso, todo escritor tem livros recusados, uns mais, outros menos. Trágica foi a segunda recusa. Livro acabado e submetido a um segundo editor, novamente é devolvido, no dia 2 de julho. Três semanas depois Lampedusa morre, com os originais, trabalho a que dedicara a vida, abandonados na mesinha de cabeceira, entre remédios inúteis. “Para que servem todas essas inutilidades, livros e remédios?”, tentava entender, ecoando o bisavô, mas agora na hora da morte, e não apenas no fim de um baile.

VELHICE SOB ENCOMENDA
            Em outro livro importante, “Morte em Veneza”, Thomas Mann põe frente a frente, em pungente confronto homossexual e estético, juventude (beleza) e velhice (feiura). O que discute não é tanto o envelhecimento quanto a impossibilidade do artista de evitar a própria decadência física e mental. Talvez não seja bem isso, mas apenas a incapacidade de paralisar o tempo, de forçar a permanência, de congelar o instante, o momento que passa – e não deveria passar, mas permanecer e durar para sempre, imutável, como só acontece (mas nem nelas acontece!) nas pedras. Como só acontece (mas nem nelas, pois esmaecem com o tempo!) nas fotografias. Como não acontece em coisa alguma, em lugar nenhum.
            Na barca que o leva a Veneza (onde morrerá de peste), Gustav von Aschenbach, escritor brilhante e famoso, embora em crise, vê uma turma de rapazes se divertindo e, entre eles, um velho bêbado, maquiado e pintado de maneira escandalosa, rindo e se divertindo como se também ele, graças à pintura e à maquiagem, fosse jovem outra vez. Von Aschenbach se afasta, com um gesto de repulsa. No entanto, na última parte do livro, é ele que se “fantasia” de jovem, pintado e maquiado, para tentar a conquista do garoto Tadzio, adolescente belíssimo, em patética imitação do outro velho.
            Vale lembrar que os livros de Lampedusa e Mann resultaram em excelentes filmes de Luchino Visconti, outro incansável (e fracassado) perseguidor da beleza e da juventude eternas. (Fonte: aqui).

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