Por Fernando Nogueira da Costa
Durante o carnaval, completei a leitura da trilogia de Yuval Noah Harari. O historiador, com apoio na biologia evolucionária darwinista, nos descreve com clareza o passado (Sapiens), o presente (Homo Deus) e o futuro (21 Lições do Século 21) da humanidade.
Um modelo linear supõe as espécies da raça humana como dispostas em uma linha reta de descendência e dá a impressão equivocada de sempre apenas um tipo de animal humano ter habitado a Terra. Todas as espécies anteriores foram/teriam sido meros modelos mais antigos de nós mesmos. Sem modéstia alguma, nos autodenominamos Homo sapiens (“homem sábio”). Não parecemos ser tão sábios assim…
Porém, entre 2 milhões de anos e 10 mil anos atrás, a ciência comprova o mundo ter sido habitado por várias espécies humanas ao mesmo tempo. Há 100 mil anos foi habitado por pelo menos seis espécies humanas diferentes. A peculiaridade é nossa exclusividade atual e não a multiplicidade de espécies em nosso passado.
Há 150 mil anos a África Oriental era povoada por Sapiens já com nosso tamanho de cérebros. A Teoria da Miscigenação conta uma história de atração, sexo e miscigenação. Quando os imigrantes africanos se espalharam pelo mundo, eles procriaram com outras populações humanas. As pessoas, hoje, seriam o resultado dessa miscigenação.
Uma visão oposta, chamada de Teoria da Substituição, conta uma história de incompatibilidade, repulsa e até mesmo genocídio. Sapiens e Neandertais, entre outras espécies humanas tinham pouco interesse sexual uns pelos outros. Se cruzassem, não poderiam produzir descendentes férteis. Segundo essa teoria, Sapiens substituíram todas as populações humanas anteriores sem se misturar com nenhuma delas.
Pela pesquisa de DNAs, os neandertais e os denisovanos contribuíram apenas com uma pequena proporção de DNA para nosso genoma atual. É impossível falar de uma “fusão” entre os sapiens e outras espécies humanas. Mas houve algum cruzamento.
Os sapiens já eram bem diferentes dos neandertais e dos denisovanos não só em seu código genético e em seus traços físicos, como também sua capacidade cognitiva e habilidades sociais. Se outras espécies humanas não se miscigenaram com os sapiens, elas teriam desaparecido porque o Homo sapiens as levou à extinção, explorando excessivamente a base alimentar dos demais e degradando seu meio ambiente.
Os sapiens eram melhores caçadores e coletores – graças à superioridade de sua tecnologia e de suas habilidades sociais. A competição por recursos teria irrompido em violência e genocídio. A tolerância não é uma marca registrada dos sapiens. Nos tempos modernos, uma pequena diferença em cor de pele, dialeto ou religião tem sido suficiente para levar um grupo de sapiens a tentar exterminar outro grupo.
O Homo sapiens conquistou o mundo, acima de tudo, graças à sua linguagem única. O surgimento de novas formas de pensar e se comunicar, entre 70 mil anos atrás a 30 mil anos atrás, constitui a Revolução Cognitiva. Provavelmente, mutações genéticas acidentais mudaram as conexões internas do cérebro dos sapiens, possibilitando eles pensarem e se comunicarem, usando um tipo de linguagem totalmente novo.
Podemos conectar uma série limitada de sons e sinais para produzir um número infinito de frases, cada uma delas com um significado diferente. Podemos, assim, consumir, armazenar e comunicar uma quantidade extraordinária de informação sobre o mundo à nossa volta. O Homo sapiens é antes de mais nada um animal social. A cooperação social foi (e é) essencial para a sobrevivência e a reprodução.
Graças fundamentalmente às capacidades cognitivas – aprendizado, memória, comunicação –, no alvorecer do terceiro milênio a humanidade está tendo a capacidade de controlar a fome, as pestes e a guerra. Hoje, a grande questão é: o que vamos fazer com todos os poderes propiciados pela biotecnologia e pela tecnologia da informação?
As armas nucleares tornaram uma guerra entre superpotências um ato louco de suicídio coletivo. Racionalizou-se um consenso de encontrar meios alternativos e pacíficos para resolver conflitos. Paralelamente, a economia global abandonou as bases materiais para se assentar no conhecimento. Antes, as principais fontes de riqueza eram os recursos naturais, disponíveis em territórios alheios a serem conquistados ou negociadas suas extrações. Hoje, a principal fonte de riqueza passou a ser o conhecimento.
Quais são os projetos substitutos da fome, das pestes e da guerra no topo da agenda humana no século XXI? Um projeto central consiste em proteger a humanidade e o planeta como um todo dos perigos inerentes ao nosso poder. Conseguimos controlar a fome, as pestes e a guerra graças, enormemente, a um fenomenal crescimento econômico. Ele nos provê de alimento, medicina, energia e matérias-primas abundantes. Mas esse tipo de crescimento poluente desestabiliza o equilíbrio ecológico do planeta de maneiras ainda a serem mais investigadas.
Neste ponto, a avaliação ambientalista de incriminar o crescimento em geral, pregando “crescimento zero”, se choca com o diagnóstico desenvolvimentista, em especial nos países subdesenvolvidos imbuídos de tirarem seus atrasos em termos de etapas históricas em relação aos avançados. Estes se deparam com a grande contradição da Era Capitalista: os investimentos da casta dos mercadores-negociantes propiciariam a ocupação de toda a força do trabalho. Este era o pacto social do liberalismo.
Em uma economia de livre-mercado, prometia-se as diversas decisões a partir de livre-iniciativas individuais, de forma descentralizada e descoordenada, isto é, sem planejamento central, se interagiriam entre si de modo dessa auto-organização emergir o pleno-emprego de todos os demandantes de ocupação e renda. No entanto, em uma economia global ainda com hierarquia de poderes geopolíticos e geoeconômicos nacionais díspares, aprofundar-se-á com a 4ª Revolução Industrial a concentração de riqueza em acionistas de países centrais e a desocupação em países periféricos.
Com a globalização, instalou-se o livre fluxo de capitais entre os países centrais e os periféricos sem a contrapartida de livre fluxo de humanos emigrantes para os Estados Unidos e a Europa, devido à esperança de maior bem-estar social. Com a Grande Crise Pós 2008, a evolução da mecanização no campo, a automação e robotização na indústria, a esperança de encontrar ocupações em serviços urbanos em metrópoles do Terceiro Mundo não está sendo satisfeita.
Norte-americanos e europeus comemoraram derrubar o Muro de Berlim em 1989, mas hoje buscam edificar “muros da vergonha” na fronteira com o México e no litoral norte da África, fora “o cordão sanitário” imposto com afogamentos no Mediterrâneo e barreiras étnicas no leste europeu. Somente imigrantes ricos e bem qualificados são aceitos nos centros da revolução tecnológica contemporânea.
A elevação dos humanos à condição de deuses segue os caminhos da engenharia biológica, engenharia cibernética e engenharia de seres não orgânicos. Face à elevação da longevidade humana e o desemprego tecnológico provocado pela automação, robotização e digitalização, desde o comércio eletrônico até à autonomia dos veículos, as reações equivocadas têm sido nacionalistas, quando os problemas são globais.
Com o salto na expectativa de vida humana, pressupõe-se, em períodos de austeridade fiscal recessiva, “não haver dinheiro suficiente para pagar a aposentadoria e os tratamentos médicos necessários para pessoais sobreviventes por mais tempo”. Especialistas em finanças públicas, adotando um individualismo metodológico e não uma visão holística, só defendem a elevação da idade de aposentadoria (reforma da Previdência Social) e a reestruturação do mercado de trabalho, a chamada “flexibilização neoliberal de direitos trabalhistas”, isto é, CPF virar CNPJ.
Ao contrário, em vez de cortar gastos públicos (e reverter as expectativas para gastos privados), o holismo metodológico sugere a prioridade ser a retomada do crescimento econômico por meio de investimentos em infraestrutura e logística digital, educação, ciência e tecnologia, saúde e segurança pública. Assim, crescerão as ocupações e a renda – e com ela a arrecadação tributária e previdenciária para o ajuste fiscal na retomada.
Salário não é só custo para cortar, implica também em demanda por bens produzidos pela agricultura mecanizada e a indústria robótica. Sem demanda, por que produzir mais? Por que investir se há capacidade produtiva ociosa? Permaneceremos eternamente estagnados – e desocupados?!
Para Yuval Harari, “seria loucura bloquear a automação em campos como o do transporte e o da saúde só para proteger empregos humanos. Afinal, o que deveríamos proteger são os humanos — não os empregos. Motoristas e médicos obsoletos simplesmente terão de achar outra coisa para fazer”. Porém, as atividades de cuidado — de enfermos, crianças e idosos — continuarão a ser um bastião humano por muito tempo. Os empreendimentos com esses cuidadores serão os mais promissores.
A solução global transitória para esse novo mundo é a redução da jornada semanal de trabalho com a manutenção dos salários. Diminuirá a concentração de renda nos acionistas e elevará a qualidade de vida em geral. Os trabalhadores terão três dias livres para a necessária qualificação digital. A reciclagem da Universidade exigirá preparar potenciais empreendedores – não mais apenas assalariados. Um auxílio básico universal incentivará os potenciais emigrantes se estabelecerem em seus países. - (Aqui).
(Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica”, Editora Contexto; 2018).
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Iniciei, meses atrás, a leitura de 'Homo Deus, uma breve história do amanhã', de Harari, mas, ao contrário do professor Fernando Nogueira da Costa, nem sequer faço ideia de quando irei concluir. Só posso dizer que Harari é um mestre, bem ao estilo das escolhas feitas pela Companhia das Letras.
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Iniciei, meses atrás, a leitura de 'Homo Deus, uma breve história do amanhã', de Harari, mas, ao contrário do professor Fernando Nogueira da Costa, nem sequer faço ideia de quando irei concluir. Só posso dizer que Harari é um mestre, bem ao estilo das escolhas feitas pela Companhia das Letras.
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