quarta-feira, 15 de agosto de 2018

PERMITAM-ME DISCORDAR

Com a palavra, o historiador Fernando Horta, graduado pela UFRGS e mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, para emitir suas impressões acerca da conjuntura política com foco nas eleições que se aproximam, presentes os processos econômicos que vêm 'pautando' o mundo:

Permitam-me discordar
Por Fernando Horta
Grassa entre colegas historiadores, cientistas políticos, sociais, antropólogos e etc. a ideia de que o “verdadeiro inimigo” da esquerda, nas eleições de 2018, é a chapa Geraldo Alckmin e Ana Amélia. É certo que os colegas que pensam assim têm sondados motivos para tanto. A dolorosa experiência neoliberal ainda está “recente” nas mentes dos latino-americanos. A experiência da financeirização das dívidas, do empobrecimento dos países, do carreamento de recursos em escala imensa para o centro do sistema (EUA e Europa Ocidental). Os efeitos colaterais das políticas da austeridade e subserviência ao capital evocam péssimas memórias. O povo empobrecido e desempregado, famílias à beira do desespero que, por pura necessidade, se submetem a sistemas de trabalho degradantes, mal remunerados e assim aumentam a extração de mais-valia e a concentração de renda. Destruição das indústrias que faziam alguma concorrência às estrangeiras. No governo Collor, por exemplo, o Brasil tinha uma nascente indústria elétrica-eletrônica que simplesmente foi dilacerada com as políticas de “abertura de mercado”. Era mais fácil se comprar uma camiseta do “Los Angeles Lakers” ou do “Chicago Bulls” do que do Flamengo, naquele tempo.
Além do trauma do neoliberalismo, a esquerda materialista se sustenta no ferramental de análise, robusto, do marxismo. Assim, “em última instância” os sujeitos são racionais, tomam decisões auto-interessadas e a questão econômica é definidora. Não há dúvida que os mesmos empresários que apoiaram o golpe de 2016 apoiam Alckmin. É o poder do capital fazendo pender a “democracia” para o lado dos seus interesses. O ferramental explicativo do marxismo é claro em apontar uma relação entre os limites do processo democrático e os interesses de classe. Muita gente boa aponta – com certa razão – estas questões para dar a Alckmin a vantagem sobre Bolsonaro. Ainda, as alianças construídas pelo tucano nos últimos 45 dias deram a ele mais de cinco minutos de televisão, contra apenas oito segundos do candidato fascista.
Não é, assim, sem fortes razões que muitos têm indicado a chapa do PSDB como a grande opositora dos candidatos de esquerda. Há uma “previsão” pelo retorno da bipolaridade PT-PSDB no Brasil e muitos defendem que mesmo esta bipolaridade seria a solução para os nossos problemas políticos. Emulando os sistemas ingleses e norte-americanos, ambos com dois fortes partidos a concentrarem virtualmente todo o conjunto de votos em seus respectivos sistemas, muitos defendem que a estabilidade gerada por um arranjo bipartidário seria uma espécie de “bons ventos” para o combalido, fisiológico e mesmo vil sistema “presidencialista de coalizão” brasileiro. A título de informação, o Brasil tem hoje, registrados, 35 partidos e 28 deles estão no congresso.
Permitam-me, contudo, discordar desta análise.
O que vivemos no Brasil (e no mundo) hoje é o resultado de dois grandes processos agudos, ambos econômicos. Em primeiro lugar a crise de 2008 (e 2010 na Europa) geraram não apenas um prejuízo gigantesco, em termos financeiros e econômicos, como – e mais importante – a percepção por parte significativa da população mundial dos limites do projeto capitalista-liberal e neoliberal. Não apenas o crescimento infinito não é possível num ecossistema finito (e isto leva à destruição do planeta) como, desde a queda da URSS, o capitalismo têm entrado em ciclos cada vez mais agressivos de acumulação de renda. Sem retorno. Não por acaso, universidades em todos os lugares do mundo vêm denunciando esta concentração, seus males e tentando propor soluções.
O individualismo atávico – que ressuscita figuras medíocres como Ayn Rand – é uma resposta à crise econômica. “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, diria a sabedoria brasileira, em uma síntese quase total da argumentação de Rand. Este individualismo que se joga contra toda e qualquer forma de proteção coletiva, somado a um sistema econômico em cujo “lucro” se transforma na razão mesma da existência e do tempo das pessoas, provoca uma crise moral sem precedentes. Desde o “Carpe Diem”, como moto do final do século XX e início do XXI, os indivíduos passaram não apenas a se preocuparem em suprir seus prazeres e necessidades imediatas, como passaram também a não se preocupar com as gerações futuras. O resultado destas linhas comportamentais e ideológicas é uma pressão social imensa pela acumulação econômica presente, combinada com um gasto imediato de todos os aprovisionamentos (sejam econômicos ou mesmo financeiros), afinal “a vida é curta” e “o que importa é você”.
Esta dupla pressão, individualista e capitalista, criou um sistema que se expande através do consumo e da corrupção. Alguém poderia argumentar que, desde que o “mundo é mundo”, há consumo e corrupção e onde estaria, afinal, a diferença dos tempos atuais. Não é difícil mostrar que a diferença está na potência. É a primeira vez que chegamos ao ponto de inutilizar o planeta. A concentração de renda já sobrepassou, em termos percentuais, o auge que se encontrava antes da primeira guerra mundial. E nunca os governos estiveram tão submetidos a interesses de uma plutocracia mundial e tão distantes da sua função inicial: de oferecer segurança (material, legal, biológica e etc.) a TODOS os cidadãos.
Se, nas palavras de João Cabral de Melo Neto, em meados do século XX, no Brasil, se morria “de velhice antes do trinta, de emboscada antes dos vinte e de fome um pouco por dia”, no Brasil do XXI se morre de bala antes dos vinte e do coração ou de câncer até os cincoenta. E a fome, para regorzijo dos monstros, voltou.
Neste contexto, para calar as vozes críticas ao capitalismo, para deslegitimar os discursos científicos que apontavam as engrenagens mesmas do sistema como incapazes de trazer um resultado minimamente aceitável para a população, os liberais e o capital liberaram o velho animal aprisionado à sangue, durante a segunda guerra. Primeiro romperam-se com as amarras morais positivadas em todo e cada país do mundo desde 1945: os direitos humanos. Aquilo que garantia que as bestas fossem contidas e seus comportamentos combatidos, foi deslegitimado através de uma junção de anti-intelectualismo e individualismo que nos colocaram em posição de aceitar comportamentos que na década de 60 ou 70 seriam repudiados socialmente em quase todo o mundo.
Em segundo lugar, para assegurar que as bestas-feras tivessem liberdade social para suas manifestações e ações, lançou-se sobre a sociedade medos anacrônicos e imaginários. Na mentalidade do século XXI, o “comunismo” reapareceu, e muitos juram que ele já está instalado no nosso país. Mesmo que se mostre o imenso lucro dos bancos, a defesa peremptória que nossos códigos jurídicos fazem da propriedade privada (mais resolutos do que defendem a vida), e o aumento cada vez mais evidente da extração de mais valia e acumulação privada, uma parte significativa da nossa sociedade segue em dissonância cognitiva e nega a própria realidade: “o Brasil é comunista”.
Nos anos 20 e 30 do século passado, também o mundo se encontrava em situação de crise econômica, crise moral (advinda dos absurdos da primeira guerra) e uma profunda desesperança na capacidade da raça humana de sobreviver a ela mesma. A primeira guerra, é chamada pelo historiador Marc Ferro como “La grande guerre”, e este argumenta que ela foi muito mais importante ao imaginário do século XX do que fora a segunda. Florescia, com todos os acertos, erros e contradições, a experiência socialista da União Soviética. Esta que transformou camponeses crédulos em magias, espíritos e maldições em 1917, na primeira sociedade da História a colocar um objeto em órbita da terra em 1957.
As bestas, afinal, precisavam ser liberadas.
Criou-se um sistema de pensamento social e político de massas, cujo cerne era a ideia de pureza moral de seus membros. O fascismo se tornava auto-referente, esquecendo a realidade. Todo judeu era comunista, segundo Hitler, e Mussolini atualizava a Bíblia para dizer “dois olhos por um olho e dois dentes por um dente”.
Embora seja evidente que o capitalismo é a base do sistema fascista, o fascismo atacou violentamente o liberalismo político. Obedecer, amar, disciplinar-se, sacrificar-se são verbos todos alinhados com o discurso fascista e que apontavam ao ente escolhido para o referente social. Não mais a pessoa humana, não mais o dinheiro ou o valor econômico, mas uma visão pouco definida de “pátria” que encerrava a ideia de Estado e de Nação. Neste sentido, o fascismo poderia se opor ao socialismo e ao capitalismo financeiro transnacional. Internamente, havia a escolha de quem poderia ou não poderia participar da “pátria”. Este processo de retirada de direitos civis, econômicos e políticos de determinados grupos (entendidos como inferiores ou “traidores”) é característica da montagem da ideia de nação fascista. O fascismo se consolidava como fenômeno de massas enquanto subsumia parte da população aos verbos aceitar e obedecer e matava a parte que disto discordava.
A sensação dos que aceitavam era de um pertencimento a um organismo limpo e virtuoso. Sem corrupção, seja ela moral, política, econômica ou qualquer outra.
Pouco importa se os estudos mostrem que o fascismo era extremamente corrupto, e desvelem hoje as incongruências morais dos líderes que, à época, se apresentavam como fiadores da sociedade limpa. O fascismo não é racional e cria discursivamente a sua realidade, afastando, atacando e matando quem nela não acredita.
No Brasil, Bolsonaro vai desmontar Alckmin e seus cinco minutos de programa. O fascismo brasileiro tem como via de apoio o neopentecostalismo da prosperidade (que se diz evangélico) e estes grupos são bastante mais agressivos do que era a Igreja Católica do entre-guerras. Além disto, o anticomunismo, usado e fomentado pelos liberais para apearem o projeto progressista vitorioso em quatro eleições, é suficientemente elástico para servir-lhes de mortalha. Já pululam nas ruas e nas redes a ideia de que a Globo é comunista, Alckmin é comunista e nem a escolha da proto-fascista Ana Amélia para vice terá a condição de frear isto.
Bolsonaro estará no segundo turno e, sem o carisma de Lula, temo que a democracia não seja suficiente para solucionar os problemas políticos do nosso país. O fascismo, por gênese, não responde aos apelos do capital. Se expande e se fortalece nas disputas diárias entre a racionalidade e o anti-intelectualismo. Se alimenta da mesma violência que exala, num moto contínuo que vimos não ser possível abortar a partir de um determinado ponto. Os liberais soltaram os monstros e aprisionaram o único brasileiro capaz de vencê-los. Por ignorância e pedantismo morrerão comidos pelas feras com as chaves da solução em suas mãos. Ao enfraquecerem a esquerda, os liberais criaram o mesmo arranjo terminou em uma guerra mundial.
O Brasil terminará na violência. O ano de 2018 será longo e penoso. Não vejo a democracia ou as instituições com qualquer força para recolocarem o país nos trilhos. No fim, a direita liberal brasileira, ao dar um golpe em Dilma, condenou-se, e ao Brasil, a enfrentar a violência crua daqueles que se acreditam portadores da pureza e que tomam como inimigos mortais todo o resto da população. O capital deverá ser subserviente ao fascismo ou será atacado e dizimado. Bolsonaro e sua ignorância são um farol alto e claro que une semelhantes pelo Brasil todo. E ele tem 8 segundos de televisão. É muito mais do que jamais teve, já chegou até aqui ...   -  (Aqui).

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