Reduzindo as Mentes
Por Márcia Denser
A crescente mediocrização da sociedade contemporânea, que suscita um aprofundamento da questão, coincidiu com a leitura dum texto que vai de encontro a este objetivo: trata-se da obra do filósofo francês Dany-Robert Dufour, professor da Universidade de Paris-VIII, L’art de réduire les têtes, editora Denoël, Paris, 2005 (já tem tradução brasileira, A Arte de Reduzir as Cabeças, Companhia de Freud, 2009) que, confirmando as teses de Paulo Arantes e Chico de Oliveira, aponta a extinção do pensamento como ponto de chegada da ideologia neoliberal.
Pensando bem, não podia ser diferente: para manter a agenda destrutiva do capitalismo e manter-se no poder só mesmo imbecilizando o resto da humanidade.
Para Dufour (e para qualquer pessoa que raciocine com relativo bom senso) estamos vivendo um tempo novo, o do capitalismo total, que não se interessa mais só pelos bens e sua capitalização, que não se contenta mais com um controle social dos corpos, mas visa também, sob a aparência de liberdade, a uma profunda reestruturação das mentes.
Tudo deve agora entrar no mundo da mercadoria, todas as regiões e todas as atividades do mundo, inclusive os mecanismos de subjetivação. É por isso que, diante desse perigo absoluto, a hora é de resistência, de todas as formas de resistência que defendam a cultura - em sua diversidade - e a civilização - em suas conquistas.
O pleno desenvolvimento da razão instrumental (a técnica), inerente ao capitalismo, resulta num déficit da razão pura (a faculdade de julgar a priori o que é verdadeiro ou falso, o bem ou o mal). É precisamente este traço que caracteriza a virada pós-moderna: o momento em que o capitalismo, depois de ter subjugado tudo, empenha-se na “redução das cabeças”.
Assistimos atualmente à destruição do duplo sujeito que teve origem na modernidade, o sujeito crítico (kantiano) e o sujeito neurótico (freudiano) – a que se deve acrescentar o sujeito marxista - e vemos instalar-se um novo, o “sujeito pós-moderno”.
O processo simultâneo de quebra do sujeito moderno e produção do pós-moderno foi extremamente rápido. O sujeito crítico kantiano, que surgiu em 1800, e o sujeito neurótico de Freud, nascido em 1900, estão em vias de desaparecer.
Ambos pareciam protegidos das vicissitudes da história, bem instalados numa posição transcendental, constituindo referência para pensar o ser-no-mundo, tanto que muitos continuam a refletir com essas formas, contudo a potência da forma filosófica que os constituía parece evaporar-se na história, e eles se tornam fluídos, diluem-se.
Mas essa morte programada do sujeito da modernidade é paralela à transformação do capitalismo nos últimos vinte anos em neoliberalismo, o qual se ocupa essencialmente em desfazer todas as formas que anteriormente prevaleciam, deixando de se referir a qualquer valor transcendental para se dedicar às trocas.
E as trocas não valem mais enquanto garantidas por uma potência superior (de ordem transcendental ou moral) mas, sim, pelo que colocam diretamente em relação enquanto mercadorias. Hoje, a troca comercial colocada como valor supremo, des-simboliza o mundo.
Toda figura transcendente que venha a fundar o valor será, a partir de agora, recusada; só existem mercadorias que são trocadas por seu estrito valor de mercado. Hoje, pede-se às pessoas que se livrem de todo estoque simbólico que garantia suas trocas. O valor simbólico é assim desmantelado em proveito do mero valor monetário da mercadoria para que nenhuma outra coisa, nenhuma consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental) possa constituir um obstáculo à sua livre circulação.
As pessoas não devem mais se conciliar com os valores simbólicos transcendentes, mas simplesmente se submeter ao jogo da circulação infinita e ampliada da mercadoria. A esfera de aplicação do modelo [de mercado] está destinada a se estender muito além do domínio da troca comercial e, nesse caso, o preço a pagar por essa ampliação é a alteração da função simbólica. Mais: é a adaptação do indivíduo à mercadoria (e não o contrário).
O neoliberalismo está empenhado em desfazer todas as formas de trocas que prevaleciam, substituindo-as por um absoluto ou metassocial das trocas.
Essa mudança radical no jogo das trocas leva a uma verdadeira mutação antropológica: a partir do momento em que qualquer garantia simbólica das trocas entre os homens é liquidada, é a própria condição humana que se liquida.
Nosso ser-no-mundo não pode mais ser o mesmo a partir do momento em que o que se empenha de uma vida humana deixa de depender da busca da conciliação com esses valores simbólicos transcendentais desempenhando o papel de fiadores, mas fica vinculado à capacidade de se adaptar aos fluxos sempre instáveis da circulação da mercadoria. Em suma, não é mais o mesmo sujeito que se exige aqui e ali.
Começamos, dessa forma, a descobrir que o neoliberalismo - como todas as ideologias do século XX (o comunismo, o nazismo) – também almeja a construção dum “homem novo”. Mas a vantagem dessa ideologia em relação às anteriores decorre do fato de não ter começado visando diretamente o homem através de programas de reeducação e de coerção.
Ela conferiu um novo estatuto ao objeto, definido como simples mercadoria, esperando que o resto viesse na seqüência, ou seja, que os homens se transformassem no momento de sua adaptação à mercadoria, promovida desde então como a única coisa real.
O novo adestramento do indivíduo efetua-se, pois, em nome de um “real” simplesmente porque é mais fácil aceitá-lo do que a ele se opor, uma vez que parece agradável, desejado, como se não passasse de entretenimento (televisão, publicidade, cinema), não permitindo discernir a incrível violência que se dissimula por detrás dessas máscaras.
Voltando: a filosofia kantiana nasceu baseada nos progressos da física desde Galileu e Newton, constituindo uma síntese magistral da experiência e do entendimento. A virada kantiana terá sido necessária para estabelecer que o pensamento necessitava tanto da intuição quanto do conceito.
Na realidade, para Kant, a intuição sem conceito é cega, mas o conceito sem intuição é vazio.Mas o que ainda poderá valer esse sujeito crítico a partir do momento em que se trata apenas de vender e de comprar mercadorias?
Para Kant, nem tudo é vendável: “Tudo tem um preço, ou uma dignidade. Pode-se substituir o que tem um preço por seu equivalente; em contrapartida, o que não tem preço, portanto não tem equivalente, é o que possui uma dignidade”. Quer dizer, a dignidade - que não pode ser substituída, “não tem preço” e “não tem equivalente” - refere-se à autonomia da vontade e se opõe a tudo o que tem um preço.
É por isso que o sujeito crítico não convém à troca comercial, pois é exatamente o contrário que se exige na venda, no marketing e na promoção deliberadamente mentirosa da mercadoria. Portanto, nesses tempos neoliberais, o sujeito kantiano vai mal. Mas isto não é tudo, o outro sujeito da modernidade, o sujeito freudiano, não está em melhor situação. A neurose, com suas fixações compulsivas e suas tendências à repetição, não é a melhor garantia para a flexibilidade necessária às múltiplas conexões nos fluxos comerciais.
De fato, é necessário que os fluxos circulem, e circularão ainda melhor se o velho sujeito freudiano, com suas neuroses e suas frustrações nas identificações que não param de se cristalizar em formas rígidas antiprodutivas, for substituído por um ser aberto a todas as conexões. Em resumo, esse novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito “esquizóide”, o da pós-modernidade.
O novo adestramento do ser humano efetua-se, pois, em nome de um “real” (a mercadoria) que é melhor acatar com resignação do que se opor. Como Foucault profetizara há vinte anos, o mundo tornou-se deleuziano. Deleuze queria simplesmente ultrapassar o capitalismo desterritorializando mais depressa que este, mas hoje tudo indica que ele subestimou a fabulosa velocidade de absorção do capitalismo e sua fantástica capacidade de recuperação da crítica mais radical. O que coloca mais uma vez na ordem do dia o ditado segundo o qual os sonhos políticos do filósofo freqüentemente se realizam como pesadelos.
Na des-simbolização, que vivemos atualmente, o que convém não é mais o sujeito crítico, nem tampouco o sujeito neurótico; o que se exige agora é um sujeito precário, acrítico e psicótico, um sujeito aberto a todas as conexões comerciais e a todas as flutuações da própria identidade, um “sujeito flexível”, ou seja, medíocre. - (Aqui).
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O comentário selecionado é de Wilton Cardoso Moreira, titular do blog...
"O sujeito precário ainda é um sujeito moderno/capitalista
Realmente podemos detectar, a partir dos anos 80 (ou até antes, nos anos 70), a formação de um sujeito pós-moderno, flexível, narcisista, subordinado ao fluxo do capital (ganhar e gastar). E o surgimento deste sujeito coincide com o neoliberalismo, com certeza.
Mas se o neoliberalismo é uma ruptura com o capitalismo fordista (social-democrata), ele nada mais é do que o capitalismo sob um novo regime, mais abrangente e total, para não dizer totalitário.
Da mesma forma, o sujeito 'precário' (líquido, esquizo, narcisista, pós-moderno, os nomes variam ao gosto do freguês) rompe com o sujeito crítico-neurótico, mas tanto um quanto outro são apenas desenvolvimentos históricos do sujeito moderno, ou seja, o "homo economicus" anunciado em potência, ainda no alvorecer do capitalismo, por Descartes, os filósofos iluministas e o cristianismo protestante.
A novidade do sujeito precário da pós-modernidade é que ele desvela o que nos tornamos nós, humanos, em face da vitória total do capital e sua expansão a todas as dimensões da vida, inclusive a vida psíquica dos indivíduos e das massas.
E o que nos tornamos? Eu prefiro deixar a resposta para a ficção científica popular. Vejam os filmes sobre zumbis e Matrix, por exemplo. são filmes que falam sobre o controle, de como a humanidade perde o controle sobre si para uma potência inumana, amoral, expansiva e implacável. Nos filmes sobre zumbis esta potência é uma praga viral, em Matrix são as máquinas.
Na verdade estes filmes nada mais são do que um deslocamento psíquico, que projeta o domínio do Capital como domínio do vírus zumbi ou das máquinas. O seres humanos tornam-se, então, imaqem e semelhança de seus dominadores, passam a viver por eles e perdem qualquer possibilidade de tomarem sua vida de volta para si mesmos. Em suma, desumanizam-se. A imagem horrível dos zumbis se decompondo sem dor e sem compaixão, sua fome insaciável e amoral, sua servidão ao vírus, que compromete sua própria vida, tudo isto nada mais é que a projeção inconsciente do domínio do capital sobre nós e em que tipo de "sujeito" esta dominação nos transformou."
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