O Direito do lado de fora do debate: o diferimento da argumentação jurídica
Por Eliseu Raphael Venturi
O que significa construir um Estado Social e Democrático de Direito, modelo constitucional, na contemporaneidade? Ainda é possível pensar nestas formas tradicionais da política e soberania, ou apenas o recurso a novas formas e modos de existir, ainda não inventados, seria a solução suficiente dos impasses atuais?
Todo o investimento e patrimônio histórico, econômico e social das nações em torno de suas instituições estaria fadado às ruínas, ou reparos e reconstruções seriam possíveis para se assegurar a esfera do político? É possível estabelecer interfaces entre a herança cultural e buscar novos espaços de vivência e convivência?
Parece que uma solução, no mínimo mediadora, precisaria perpassar tais questionamentos de modo não peremptório, e se não assumisse um compromisso de preservação democrática, estaria igualmente fadada ao insucesso.
As democracias atuais parecem constantemente lidar com os desafios de se produzir, manter e reiterar as formas ditas tradicionais de práticas institucionais, em uma dinâmica social que não sobrevive sem que os debates públicos e as relações privadas sejam cosidos, ou ao menos, em algum grau, perpassados, por argumentos jurídicos.
Porém, estes argumentos são adiados constantemente, sendo vencidos por outras dinâmicas questionáveis, que vão desde a ignorância até à ironização da ausência de sanções.
Qual a juridicidade (substancial, vale dizer) em pauta, parece ser mais um questionamento inevitável. Quais fontes se considera moldáveis, o quanto de aberturas se tolera, o quanto de movimentação se aceita no retroceder em críticas a pressupostos, fundamentação e encadeamentos? Todas estas possibilidades marcam decisivamente a identificação deste espaço de reflexão e enunciação.
Limitar demais a esfera do jurídico parece assegurar apenas interesses elitistas, ao mesmo tempo em que lhe conferir amplitude demasiada permite a inserção de práticas, costumes e crenças que poderiam condenar todo o sistema e, ademais, colocá-lo na contramão do estado da arte de várias questões vivenciadas e elaboradas. O risco é constante, assim como que a necessidade do manejo desta proporção é uma imposição para se manter feições determinadas de uma organização.
Afinal, a quem o Direito obriga enquanto manutenção de uma sociedade democrática que, conforme consabido, depende de muitos recortes e qualificações, em que uma liberdade de expressão depende de uma educação e uma visão de mundo efetivamente democráticas, senão abertas ao diálogo e mudança?
O quanto se pode suportar na traição constante de valores, qual o espírito constante de concessão e negociação em prol da convivência possível, da não imposição de agendas ou estilos de vida, mas na garantia da coexistência não excludente das diferenças?
A profusão de partidos, candidatos, políticos, grupos, agentes públicos e cidadãos declaradamente de posturas fascistas, antipolíticas, apolíticas, de ideologias democraticamente perversas, parece indicar um questionamento profundo das estruturas representativas e dos valores vigentes, o que não se pode dissociar de populismos diversos que redundam em proposições punitivistas e de retrocesso evidente e intolerável, sem qualquer validade transvalorante na medida em que são destrutivas.
Contudo, mais uma vez: onde está o Direito nestas posturas? E, mais: qual Direito, Direito em qual momento histórico? As fraturas parecem inevitáveis, ao mesmo tempo em que não é possível evitar tal questionamento, posto que sem o conflito constante da liberdade e do dever não há democracia.
Se cada falha na ética da comunicação e cada ruptura com um horizonte de juridicidade colaboram com a naturalização de uma cultura não-democrática, não parece ser menos preciso que prescindir a todos os momentos do recurso ao Direito na mediação social degrada igualmente a viabilidade de um modelo em que a solução de controvérsias e a realização de acordos não se reduza a vetores de força unidirecionais e impossibilitação, de plano, de maiores estratégias de resistência.
Quando os debates públicos prescindem absolutamente (e, no mais das vezes, propositadamente) do Direito – não este Direito aparente, esclerosado em fórmulas levianas e em linguagem de bordões, mas um Direito como potencial e como atualização –, investe-se no perigoso repositório totalizante de tudo confiar ao Poder Judiciário (hiperjudicialização).
Judiciário este que, como qualquer instituição humana, se apresenta repleto de brechas, falhas e susceptibilidades, em uma sociedade que, com uma boa dose de descaso e ironia, ao admirar o autoritarismo, também prescindiu de sua missão interpretativa, fechando-se um jogo perverso de corroboração mútua.
Aposta-se, portanto, em soluções que poderão recair desde em anacronismos convenientes até em distorções discriminatórias, preconceituosas e estigmatizantes, quando não na frontal violação de direitos fundamentais, lawfare, punitivismo, antigarantismo, tendências totalizantes; ou seja, tudo aquilo que a cultura democrática ensina a rechaçar.
Quanto mais quando o referido poder não tem o menor pudor de exaltar seu corporativismo, classismo e indiferença... ao próprio Direito. É quando as coisas se complicam ainda mais e as expectativas interpretativas são completamente implodidas pelos próprios guardiões da constitucionalidade, eles mesmos distorcendo sentidos dos direitos humanos, do Direito e do processo de forma evidentemente deliberada e vencida pelos interesses pessoais, políticos e corporativos.
Investe-se, deste modo, em um diferimento de interpretação e de argumentação, que é uma perda do exercício cidadão na gestão dos próprios interesses, da ética e do Direito. Nada pior à democracia: delega-se sem reserva a construção interpretativa do Direito e agiganta-se um poder na detenção dos sentidos e significados das normas e, assim, dos próprios pleitos sociais.
Uma sociedade aberta dos intérpretes (para retomar a teoria de Peter Häberle), que não se simplifique apenas em fórmulas populistas, ainda parece ser o espaço mais democrático possível, de não reducionismo à representatividade, pelo qual se possam estimar vozes sociais, demandas, interesses, necessidades específicas, políticas aplicáveis e, sobretudo, construções argumentativas.
A aproximação, assim, a um pluralismo que, conforme as setorizações temáticas dos debates, seja apta a capturar alguma nuance da multiplicidade de populações que demandam reconhecimento de direitos é imprescindível.
Construir percepções e argumentações jurídicas enriquecias por vários horizontes, considerando que a construção normativa nunca é simples, mas ato complexo em que se reúnem diferentes fontes e momentos da historicidade lançados em um plano de relação: talvez a missão democrática mais urgente seja a de retomar a posse da interpretação. - (Aqui).
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(Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado).
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