terça-feira, 26 de junho de 2018

O FASCÍNIO LITERÁRIO DE MACHADO DE ASSIS


Um certo Joaquim

Por Jean Pierre Chauvin

Hoje completam-se cento e dez anos do nascimento de Joaquim Maria Machado de Assis, escritor de que muito ouvira falar, durante o ensino fundamental e médio. Afora o nome do autor e o título de seus romances, dezenas dentre as falas de seus narradores e personagens apareciam nas gramáticas de Hidebrando Affonso de André e de Francisco Platão Savioli. A exemplo do que sucedeu com a maioria dos escritores e obras, anteriores à segunda metade do século XX, tivemos praticamente nenhum contato com a ficção machadiana -- com exceção de algum conto mais curto, como "Um apólogo".

Em meados de 1990, quando pensava qual carreira seguir (Música, Direito, Administração etc), topei com a Professora Maria da Graça -- responsável pelas aulas de Gramática, no Colégio da Companhia de Maria. Estávamos no terceiro bimestre: era a época dos famigerados "testes vocacionais", aos quais nunca me submeti. Eis que, no meio do corredor, de passagem mesmo, perguntou: "Jean Pierre, o que você vai fazer?". Eu, que vivia em meio a colegas cuja maior preocupação era ser bem-sucedido, respondi: "Administração", ao que ela replicou. "Administração? Seu pai tem empresa?". E, sem dar maior tempo para eu pensar em outra carreira, sugeriu: "Por que não faz Letras?". Foi assim que me decidi. Ora, ora, por que não?

Como o curso já acolhia elevada quantidade de alunos, àquela altura, inscrevi-me em Letras, com habilitação em Português. Primeira fase, segunda fase. Ingressei. Mas, como havia me enganchado com uma gaúcha, entre o natal e o ano-novo, não tive paciência (nem segurança) para acumular créditos suficientes que me permitissem transmitir o curso para alguma universidade do Rio Grande do Sul. Cursei algumas aulas (fiquei particularmente impressionado com a aula de um professor que falava sobre o chamado "Descobrimento do Brasil", em que questionava o não-lugar da literatura dita "brasileira", João Adolfo Hansen), mas deixei a graduação no primeiro semestre. Quatro anos depois, de volta a São Paulo, inscrevi-me para a mesma carreira e período (noturno). Estudei por conta, tudo outra vez -- primeira fase, segunda fase -- e reingressei no meio do pelotão.
Desta vez as coisas foram bem diferentes. Minha esposa e filha estavam comigo e, apesar dos apertos financeiros, íamos nos virando na Pauliceia, com a ajuda de meus pais. Eis que, no primeiro semestre de 1995, numa das aulas de Introdução aos Estudos Literários - I (que abreviávamos como IEL), conheci outro Professor que muito admirava: Joaquim Alves de Aguiar. Havia, enfim, lido a novela O Alienista, de Machado de Assis, para o vestibular de 1994, que me marcou de imediato. Quanto o Juca passou a falar de Dom Casmurro, a literatura machadiana passou de encantamento a "ideia fixa". 
No início de de 1998, procurei João Adolfo Hansen (que chegou a me emprestar dois livros -- O Tempo no Romance Machadiano, de Dirce Côrtes Riedel; e Machado de Assis e a Análise da Expressão, de Maria Nazaré Lins Soares). Por alguma razão, outro professor me viu aguardando pelo colega João e me convidou para ser seu orientando. Achei que seria uma oportunidade incrível...Passaram-se algumas semanas e fiquei sem graça de falar novamente com Hansen. Durante o segundo semestre, comecei a me incomodar com a feição canônica do curso de Letras (antes mesmo de ler o excelente ensaio "Cânon", de Roberto Reis). Como persistia o maior interesse por Machado, pensei: por que não discutir uma obra menos trilhada de sua autoria? Era uma tentativa de síntese: o cânon oitocentista e uma obra menos conhecida.
O internauta terá adivinhado: retomei as notas sobre O Alienista, assisti a uma penca de palestras sobre o escritor e fui conversar com Joaquim Alves de Aguiar, aquele, de 1995, com o intuito de começar o Mestrado em torno de Machado. O professor Juca coordenava o programa de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada e, não podendo me assumir como orientando, recomendou-me a dois colegas que haviam ingressado há menos tempo, no curso de Letras. No semestre seguinte, sob a orientação de Marcus Vinícius Mazzari, teve início o projeto de Mestrado em torno de contos e da novela machadiana. Em 8 de março de 2002, a dissertação intitulada Construção e Implicações dos Contrastes em "O Alienista", de Joaquim Maria Machado de Assis foi arguida por Alcides Villaça e Osvaldo Ceschin. Três anos depois, virou livro, publicado pela Reis Editorial.
Entre 2003 e 2006, dei continuidade aos estudos em torno de literatura brasileira. Desta vez, retomando uma sugestão do crítico Astrojildo Pereira, tentei estabelecer paralelos entre Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto. Em 27 de novembro de 2006, no intimidador salão nobre do prédio da Administração da FFLCH, a tese foi arguida por José Antônio Pasta Júnior, Hélio de Seixas Guimarães, Lúcia Granja e Márcia Lígia Guidin. Seis anos depois, o trabalho foi transformado em livro (O poder pelo avesso na literatura brasileira) pela Annablume. Meses antes do lançamento em março de 2013, voltara a conversar com Hélio Guimarães, que aceitou supersivionar um novo projeto machadiano, desta vez em torno do Quincas Borba -- talvez o romance de Machado por que nutro maior predileção.
Certo dia, em meados de 2013, Hélio contou-me que o pré-projeto estava com Hansen, que emitiu parecer generoso sobre a sua consecução no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Desse modo, entre 2012 e 2014, revisitei a fortuna crítica machadiana -- especialmente o que se disse sobre o romance (QB), desde o final do século XIX -- como projeto de pós-doutorado. A exemplo do que aconteceu durante o Mestrado e Doutorado, o projeto foi conciliado com atividades profissionais. Desde 2009, lecionava na Fatec São Caetano do Sul.
Em abril de 2014, ingressei no curso de Editoração da ECA (USP), para lecionar Cultura e Literatura Brasileira. Concluí o projeto sobre QB em setembro. Dois anos depois, sabendo que a Ateliê Editorial pretendia lançar a sua primeira edição do romance protagonizado por Rubião, propus-me a cotejar o texto com o da terceira edição (última em vida, revisada pelo autor). Então, transformei parte do projeto realizado sob a supervisão de Hélio Guimarães, no "Texto de Apresentação" ao romane, que contou com a leitura e contribuições de Ieda Lebensztayn e José de Paula Ramos Júnior (com quem dividi as notas e estabelecimento do texto).
Chega a ser ironia tremenda o fato de eu ter dito, em diversas ocasiões mais ou menos informais, que tentava me "livrar" de Machado. O fato de ter me voltado ao período colonial luso-brasileiro, concentrando-me em particular no século XVIII, não impedia -- como vim a perceber mais recentemente -- que eu persistisse nas releituras do autor que conheci em 1994. Um sinal disso é que, no primeiro semestre de 2017, ofereci uma disciplina para o programa Estudos Comparados (na FFLCH) em que propus relacionar os séculos XVIII e XIX. Ela voltará a ser oferecida no segundo semestre de 2018... 
Hoje, parece-me ser esta disciplina uma forma de justificar, para mim mesmo, o lugar de relevo que Machado de Assis ocupa nas pesquisas, aulas (e mesmo em conversas de corredor) sobre sua obra. Ao mesmo tempo, uma espécie de "acerto de contas" com os mestres que me incentivaram a seguir os seus passos -- sem a pretensão de alcançá-los em sabedoria, rigor e habilidade. É sintomático: a última machadianice que fiz foi sugerir alguns paralelos entre as Memórias Póstumas de Brás Cubas e Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo Castelo Branco.
Porventura Joaquim (Aguiar) ou Joaquim (Maria) estejam a soprar, da dimensão onde vivem: "Não queria te livrar de Machado? Decifra-o ou te devoraremos".  -  (Aqui).

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