Enquanto meditamos sobre o fortalecimento da impressão de que é vão o empenho da defesa do ex-presidente Lula no sentido de alcançar a sua liberdade e o direito de concorrer à presidência da República, independentemente dos argumentos apresentados - especialmente o espelhado no inciso LVII do artigo 5º da Constituição da República -, cumpre abrir alas para a crueldade no âmbito da ficção, com o filme 'Experimentos'.
(Mas, antes, um lembrete: No próximo dia 5 de outubro, a Constituição da República, referida como Lei Maior, erga omnes, estará completando 30 anos de vigência...
E uma nota adicional: clique AQUI para conferir o que diz o jurista e ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo sobre a Constituição e o momento atual do Brasil).
O Mal está na crueldade cotidiana no filme "Experimentos"
Por Wilson Ferreira
A velha questão permanece: como são possíveis holocaustos e genocídios, sistemática e profissionalmente organizados seja na guerra ou em sistemas metódicos cotidianos? Quem são essas pessoas que executam as ordens? Burocratas que apenas obedecem superiores ou monstros frios e maus? No filme “Experimentos” (“Experimenter”, 2016), sobre os célebres experimentos relativos a autoridade e obediência realizados pelo psicólogo social Stanley Milgram em 1961, a resposta é paradoxal: nem uma coisa e nem outra, intuiu Milgram. Para entender o jogo da autoridade que cria ilusões, somente criando uma outra ilusão: uma experiência de simulação na qual o voluntário era colocado em um dilema moral – é possível obedecer ordens mesmo que confrontem convicções íntimas? “Experimentos” mostra como o insight gnóstico muitas vezes está presente na Ciência: a ilusão pode definir um cenário no qual a verdade pode ser revelada – a “banalidade do mal”, que é mais cotidiana do que podemos imaginar.
Um homem responde a um anúncio de jornal buscando voluntários para um experimento em Psicologia sobre o efeito das punições nos processos de aprendizagem. Os US$ 4,50 levam esse homem a um laboratório da Universidade de Yale. Ele se depara com um pesquisador sério vestindo um imponente jaleco cinza. Pacientemente ele explica para o homem e um outro participante o procedimento.
Um sorteio definirá quem é o Professor e o Aluno. O Aluno ficará isolado em uma sala, enquanto o Professor fará uma série de perguntas pré-definidas e, a cada erro, apertará um botão que aplicará um choque elétrico inicial de 15 volts no Aluno. A cada erro, a voltagem vai aumentando até o limite de 450 volts – carga extremamente perigosa e potencialmente fatal.
Da sala anexa, o homem começa a ouvir os gritos do “Aluno” a cada eletrocução. Os gritos ficam mais altos, e o homem diz ao pesquisador que não se sente confortável em aplicar mais castigos. “É necessário que você continue o experimento”, diz secamente o pesquisador, com uma fisionomia grave.
Após 405 volts o “Aluno” deixa de responder. “Será que aconteceu alguma coisa com ele?”, o homem pergunta seriamente preocupado. Mas o pesquisador assegura de forma dúbia: “Asseguro-lhe que os choques não causam nenhum dano tecidual...”.
A máquina indica que o próximo choque será “extremamente severo”. Mas o homem pensa: “Poderia ser eu no lugar dele... um simples sorteio me livrou de estar preso em uma cadeira elétrica”. O compenetrado pesquisador assume a responsabilidade, e o “Professor” aciona os últimos choques potencialmente fatais.
Essa macabra experiência abre o filme Experimentos (Experimenter, 2015), sobre o famoso e controvertido “Experimento de Milgram” relativo a autoridade e obediência feita pelo psicólogo da Universidade de Yale Stanley Milgram em 1961.
Apesar da dramaticidade e da angústia real dos “Professores” que deveriam aplicar as cargas elétricas como castigo, o voluntário ignorava que tudo não passava uma simulação. Nem os choques eram de verdade e muito menos o “Aluno” era outra cobaia remunerada pelo experimento: era um ator que acionava um gravador que disparava gritos no interior da sala onde supostamente estaria amarrado a uma cadeira.
A verdade através da ilusão
Pelos resultados, Milgram comprovaria o quão facilmente pessoas comuns seriam capazes de cometer as maiores atrocidades. Como numa situação de submissão à autoridade, pessoas comuns seriam capazes de abandonarem seus princípios morais passando toda a responsabilidade por atos bárbaros a alguém hierarquicamente superior. Essa pessoa veria a si própria como um mero instrumento neutro das ordens de uma autoridade.
Esse experimento mostrado diversas vezes no filme Experimentos até hoje sofre uma série de críticas éticas – seriam procedimentos que submeteriam os voluntários a situações constrangedoras, opressoras, nas quais os violentos dilemas morais poderiam resultar em experiências traumáticas. Segundo os parâmetros de comitês reguladores atuais, jamais essa experiência (e a sua repetição em décadas posteriores) seria realizada.
Mas o argumento de Milgram em sua defesa era surpreendentemente gnóstico, assim como todo o enfoque da questão da obediência à autoridade.
A certa altura do filme, Milgram (Peter Sarsgaard) se confronta com críticas de que seu experimento era apenas uma trapaça: uma situação artificialmente criada, muito longe de uma situação real. Não era uma prova científica.
“Eu gosto de pensar nisso como uma ilusão, e não uma trapaça”, dispara Milgram. “A ilusão tem uma função reveladora, como em um jogo. A ilusão pode definir o cenário para a revelação, para revelar as dificuldades para se chegar à verdade”, conclui o pesquisador.
Se o poder ideológico da autoridade é uma ilusão, nada melhor do que combater a ilusão com uma simulação. Se o mundo é uma ilusão, a única forma de encontrar a verdade por trás desse véu é através de um jogo de ilusões: a simulação.
O Filme e o contexto
Experimentos é mais do que uma biografia do psicólogo social Stanley Milgram: o filme inicia com os famosos experimentos cujos resultados Milgram acreditava que explicariam tragédias como a barbárie nazista – como compreender atos tão cruéis sob o álibi do “estou apenas obedecendo ordens”?
A narrativa deixa claro o contexto no qual os experimentos aconteceram. Em 1961 estavam em andamento os tribunais de Jerusalém, e estava sendo julgado Otto Adolf Eichmann, oficial nazista capturado pelo Mossad (agência de inteligência de Israel) em Buenos Aires. Ele era considerado “o arquiteto do Holocausto”. Suas declarações impressionaram pela frieza e pelo modo como seus subordinados seguiam cegamente suas ordens.
A virtude de Experimentos é mostrar como a pesquisa de Milgram se diferenciava da até então visão corrente sobre o tema da obediência: rígidas cadeias hierárquicas, lavagem cerebral militar etc. Mas para Milgram, qualquer situação persuasiva poderia levar alguém a abandonar seus preceitos morais.
O que é mais incrível nas situações apresentadas pelo filme é que não parecia haver qualquer causa aparente para os voluntários começarem a obedecer cegamente às ordens do pesquisador – nenhuma relação hierárquica, familiar, forma de poder, autoridade etc. Não, apenas um homem de jaleco cinza com uma voz asséptica dizendo “por favor, continue... é necessário dar continuidade para que possamos concluir o experimento...”.
Ficam explícitas as angústias e conflitos internos dos voluntários (morder os lábios, suar, tremer, cravar as unhas na pele etc.), mas seguiam em frente até a eletrocução fatal.
Onde está o Mal?
Didaticamente, a narrativa detalha a descoberta de Milgram que o diferenciava do senso comum corrente: o que ele chamou de “estado de agente” – é a própria “política do trabalho”: numa sociedade ou cadeia de trabalho na qual o indivíduo perde a noção do propósito do Todo. O indivíduo passa a se definir como instrumento de realização dos desejos do outro. “Apenas faço o meu trabalho”, é o mantra de organizações burocráticas, de trabalho superespecializado.
“Quando cheguei já estava assim!” é uma outra variável. Em outras palavras: a conclusão de Milgram ao final de Experimentos é que o problema não está na autoridade em si. E muito menos em uma natureza humana comportamental. Mas nas estruturas da própria sociedade moderna industrial de trabalhos pequenos e especializados nos quais não podemos agir sem um tipo de comando.
Os experimentos foram repetidos por décadas, sempre apresentando os mesmos resultados. Mesmo na sociedade pós-industrial em que vivemos – de serviços terceirizados e precarizados.
Ou será que os resultados de Milgram apenas pioraram em uma organização econômica atual baseada na terceirização generalizada dos serviços e a “uberização” do chamado “capitalismo cognitivo”? – aplicativos passam a ser o intermediário entre prestação de serviço e consumidor, sem vínculos trabalhistas.
Ou será que os resultados de Milgram apenas pioraram em uma organização econômica atual baseada na terceirização generalizada dos serviços e a “uberização” do chamado “capitalismo cognitivo”? – aplicativos passam a ser o intermediário entre prestação de serviço e consumidor, sem vínculos trabalhistas.
Organizações flexíveis nas quais jogamos a responsabilidade em organizações, aplicativos, sociedades anônimas ou em um sistema sem rosto.
A chave da ilusão
O que torna Experimentos interessante é como articula a noção de “ilusão” como a chave do insight de Milgram. Em gigantescos sistemas burocráticos sem rosto com relações mediadas por formas de comunicação vertical (do velho memorando aos aplicativos atuais), a autoridade se diluiu em uma máquina totalitária incompreensível. Em uma ilusão, na qual jogamos a responsabilidade como forma de sobrevivência.
Os dilemas morais nos quais eram jogados os voluntários eram tão reais na simulação criada por Milgram como na vida real de organizações. A chamada “vida real” é tão ilusória como o experimento de Milgram. Se a consciência de um Todo não existe para o indivíduo que obedece “as ordens”, de forma análoga também a consciência da simulação não existe para o voluntário.
Ilusão e simulação são os conceitos-chave do filme. Tanto que o próprio filme faz em muitos momentos um exercício metalinguístico de mostrar a si próprio como uma ilusão: em muitas cenas, propositalmente o filme tem um aspecto teatral, no qual percebemos o fundo das cenas como cenários ou projeção de imagens em movimento para criar a ilusão de movimentação do carro que Milgram dirige com sua esposa Alexandra (Winona Ryder).
Aliás, nem o próprio Milgram, tanto no filme como na vida real, negaram sua inspiração no incipiente gênero reality show que surgia na TV norte-americana naquele momento, como o programa precursor iniciado em 1948 chamado “Candid Camera” – câmeras escondidas flagravam reações engraçadas de anônimos em situações incomuns, algumas delas envolvendo “pegadinhas”.
Portanto, o filme Experimentos nos mostra um bom exemplo de como o viés da filosofia gnóstica pode perpassar em muitos momentos a Ciência: primeiro, no insight de Milgram procurar a verdade através da ilusão, partindo do princípio de que o que chamamos de “realidade” (no caso de Milgram, a “autoridade”) nada mais é do que um jogo de ilusões.
E segundo, a premissa de que a questão da obediência não é comportamental (individual), mas estrutural: na própria estrutura de trabalho (o “estado de agente”) burocrática, hierárquica, baseada na super-especialização (e hoje na radical terceirização e flexibilização do trabalho) e a alienação do indivíduo em relação aos objetivos ou sentido.
Em essência, a origem da “banalidade do mal” (Hanna Arendt) está no próprio estranhamento do homem (alienação) nesse mundo. É a condição gnóstica humana: a banalidade do Mal não está no homem, mas no mundo que o aprisiona.
Ficha Técnica
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Título: Experimentos
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Diretor: Michael Almereyda
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Roteiro: Michael Almereyda
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Elenco: Peter Sarsgaard, Winona Ryder, Jim Gaffigan, John Palladino
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Produção: BB Films Production, FJ Productions
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Distribuição: Magnolia Pictures
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Ano: 2016
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País: EUA
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