No próximo 5 de outubro, nossa Constituição estará completando 30 anos de vigência. A Constituição Cidadã, conforme a qualificou Ulysses Guimarães, foi e vem sendo tratada como Carta Magna? A Carta Magna vem sendo adequadamente zelada pelo STF, à vista do que ela mesma impôs em seu artigo 102? Até que ponto as chamadas interpretações extensivas (que por vezes resultam, na prática, em agressão) vêm impactando o escopo da Constituição Federal?
Onze soberanos? Existem limites ao poder de interpretação dos ministros do STF?
Por João Marcos Amaral
Às vésperas do aniversário de 30 anos da Constituição Federal em vigor, o país confronta-se com uma situação de crise institucional sem precedentes, que, no limite, anima vozes que pretendem romper com os valores que conformam a espinha dorsal do constitucionalismo brasileiro pós-88, notadamente com o princípio democrático, conquista maior da Assembleia Nacional Constituinte desenvolvida em resposta ao período autoritário que lhe antecedera.
A citada crise, por óbvio, encontra a sua raiz e o seu combustível (ou a falta dele, permitindo-me a ironia) para muito além do debate jurídico, sendo alimentada por graves problemas de ordem econômica e social. Entretanto, parece-nos hoje indiscutível que a crise, inicialmente econômica, com posterior e forte repercussão social e política, terminou por conformar uma crescente crise de institucionalidade, nuançada pela subversão, ou ao menos pela perturbação, no desempenho das funções classicamente confiadas aos diversos atores do Estado – mormente na dimensão procedimental, salvaguarda última dos direitos fundamentais. A propósito, não sem ressalvas, confira-se nesse sentido o ruidoso artigo do professor Conrado Hubner Mendes, publicado na Folha de São Paulo.
Do citado artigo, colhe-se para os propósitos deste ensaio, o seguinte excerto, editado a propósito do papel institucional do Supremo Tribunal Federal, verbis:
“o poder moderador converteu-se em poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos. O ator que deveria apagar incêndios fez-se incendiário”.
Dentre outras facetas, a análise enfoca a ausência de coerência interna dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, numa lógica de predileção por decisões monocráticas, em detrimento da colegialidade. E é este o ponto que se pretende enfocar nessa breve análise, sob uma ótica de estrutura institucional do modelo vigente de controle jurisdicional de constitucionalidade.
Em artigo publicado no dia 4 de junho último, Marilda de Paula Silveira demonstra a pluralidade de interpretações possíveis a propósito do alcance do artigo 224, §3º, do Código Eleitoral. No ensaio, Silveira observa que “a reinterpretação do entendimento, em agravo no TSE, leva a uma primeira perplexidade relacionada à segurança e estabilidade das decisões tomadas em controle concentrado pelo plenário do STF”.
Fala-se do julgamento do AI 28177, julgado pelo TSE em 29.05.2018, no qual alterou-se o entendimento firmado na ADI 5525, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 08.03.2018.
No julgamento da ADI, cujo acórdão ainda não foi publicado, entendeu a Suprema Corte que o condicionamento da realização de novas eleições ao trânsito em julgado, retirava efetividade à imperatividade da solução legislativa; nessa ordem de ideias, sem reduzir-lhe o texto, o pleno do Supremo Tribunal Federal deliberou por interpretar a lei – com força vinculante – no sentido de que a realização de novas eleições condicionava-se não ao trânsito em julgado da decisão de cassação, mas tão somente ao esgotamento das instâncias próprias da Justiça Eleitoral.
O entendimento plasmado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal por ocasião do exercício do controle concentrado de constitucionalidade, como seria de se esperar, encontrou ressonância prática, tendo sido reafirmado em julgamento no Tribunal Superior Eleitoral.
Entretanto, conforme anota Marilda Silveira, o que parecia – e deveria segundo o modelo institucional vigente – ser a solução definitiva a respeito do tema, terminou por ser infirmado em decisão monocrática proferida no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Nova baliza sobre o alcance da interpretação do dispositivo sobreveio no julgamento do Agravo de Instrumento 281-77, perante o Tribunal Superior Eleitoral; na ocasião, o ministro relator advertiu expressamente que com a decisão, revia posicionamento vitorioso que verbalizara no julgamento da ADI 5525 pelo Supremo Tribunal Federal.
Pois bem, para além das indagações bem lançadas por Marilda de Paula Silveira no artigo em enfoque, questiona-se: poderia, a pretexto do exercício de uma faculdade interpretativa subjacente ao modelo de controle difuso de constitucionalidade que, como sabemos, convive com o modelo do controle abstrato e direto, um ministro do Tribunal Superior Eleitoral, simultaneamente integrante da Suprema Corte, superar monocraticamente uma deliberação do pleno do Supremo Tribunal Federal lavrada em controle concentrado de constitucionalidade? Tensionando ainda mais a hipótese: poderia o Tribunal Superior Eleitoral, presente o quadro institucional constitucionalmente consagrado, contrariar as balizas de decisão vinculante do Supremo Tribunal Federal?
A resposta nos parece ser negativa. Pretendendo enfrentar o problema lançado no título do ensaio, recorre-se novamente à ideia lançada preambularmente: o exercício da interpretação constitucional, mesmo por parte dos atores constitucionalmente mais autorizados, no caso os ministros do Supremo Tribunal Federal, para além de outras barreiras imanentes que não vêm ao caso nesse momento, encontra limites, ao menos, no procedimento.
A propósito do controle jurisdicional de constitucionalidade, especialmente a respeito da hoje rotineira prática de modulação de efeitos das decisões tomadas no exercício de tal controle, valiosa a incursão nas reflexões lançadas por José Levi Mello do Amaral Júnior. Invocando o conceito de soberania de Carl Schmitt, Amaral Júnior observa que a declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica, tem por pressuposto a incompatibilidade desta com a norma suprema do ordenamento jurídico, a saber a Constituição, de modo que, recorrendo ao modelo kelseniano, a declaração de inconstitucionalidade equivale à decretação de uma nulidade. Nenhum efeito advindo de uma norma inconstitucional deveria prosperar em confronto com a Constituição, portanto.
A propósito, observa José Levi Mello do Amaral Júnior, verbis:
“A manutenção em vigor de lei inconstitucional, ainda que transitoriamente, cria espaço de tolerância em favor de uma inconstitucionalidade. Há, nisso, exceção à própria Constituição. O Supremo Tribunal Federal, com isso, abre exceção à legalidade constitucional. É conhecido o conceito que CARL SCHMITT dá para soberano: ‘É soberano quem decide o Estado de exceção’. Em outras palavras: ao modular os efeitos de uma inconstitucionalidade no tempo, o Supremo Tribunal Federal torna-se o soberano”.
Entretanto, no desenvolvimento jurisprudencial da jurisdição constitucional, valendo-se de princípios caros à própria Constituição, como a segurança jurídica e a equidade, dentre outros, passou-se a conferir ao controlador a faculdade de modular os efeitos advindos da aplicação da norma inconstitucional. Em outras palavras, o constitucionalismo passou a admitir a produção de efeitos inconstitucionais, derrogando, na prática e em concreto, ainda que momentânea e circunstancialmente, a própria Constituição.
Registre-se, por oportuno, que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da ADI 5525 amolda-se à proposição em tela, porquanto, no julgado, conferiu-se interpretação distinta da literalidade do texto normativo, mantendo-o inalterado, contudo; interpretação que conferiu menor extensão à expressão “trânsito em julgado”, limitando seus efeitos ao esgotamento da jurisdição especializada da Justiça Eleitoral.
Para elucidar o ponto, recorre-se à formulação de Schmitt sobre o soberano, verbis:
“O soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente, porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a Constituição pode ser suspensa in toto”.
Portanto, ao decidir pela produção de efeitos advindos de norma reconhecida formalmente como inconstitucional, suspendendo circunstancialmente a eficácia da própria Constituição, o titular do exercício do controle jurisdicional de constitucionalidade em geral, e os ministros do Supremo Tribunal Federal, em particular, terminam por exercer poder soberano, conforme propõe Amaral Júnior.
A proposição causa inevitável impacto no leitor, especialmente por parecer afrontar – como efetivamente o faz – o parágrafo único, do art. 1º, da Constituição da República, que enuncia em sede normativa fundamental conquista civilizatória ao reconhecer o povo como titular do poder; poder soberano.
A partir de lições clássicas ainda inafastáveis, joga-se luz num crescente fenômeno de exercício ilimitado do poder político pelas Cortes Constitucionais em geral, e pelo Supremo Tribunal Federal, em particular. Exercício irresponsável do poder, a partir de uma compreensão qualitativa da democracia, em razão de sua insubmissão ao controle popular, a partir do instrumental próprio da chamada accountability vertical, do qual se destaca o voto.
Para um enfoque genérico a propósito da necessidade de submissão do exercício do poder político ao controle popular em ambientes democráticos, recorre-se a Diamond e Morlino, verbis:
“[E]m uma boa democracia os próprios cidadãos tem o poder soberano de avaliar se o governo provê liberdade e igualdade de acordo com o primado da lei. Cidadãos e as suas organizações e partidos políticos participam e competem para acessar cargos eletivos, sujeitos ao controle de suas políticas e ações. Eles monitoram a eficiência e a equidade na aplicação das leis, e eficácia das decisões governamentais e a responsabilidade e responsividade das autoridades eleitas. Instituições governamentais também se controlam reciprocamente a partir da lei e da constituição (qualidade em termos de procedimento)”.
Embora se reconheça a necessidade do controle jurisdicional de constitucionalidade e, no estado atual de coisas, reconheça-se ainda a utilidade do próprio instrumental de modulação de efeitos das decisões que declarem a inconstitucionalidade de diplomas normativos, imperioso que se reconheça o gap democrático subjacente à forma de composição do Supremo Tribunal Federal e, a partir dessa compreensão, que se busque traçar balizas de autocontenção ao exercício da interpretação constitucional por parte dos seus membros, estejam eles no exercício de suas funções na Corte Suprema, ou no Tribunal Superior Eleitoral, retornando ao problema enfocado por Marilda de Paula Silveira.
Se nos parece evidente que o déficit democrático que ostentam os ministros do Supremo Tribunal Federal – assim como todos os demais membros do Poder Judiciário – representa em si um limite imanente ao exercício do controle jurisdicional de constitucionalidade, o respeito à colegialidade e à hierarquia constitucionalmente conferida ao pleno do Supremo Tribunal Federal como intérprete maior da Constituição conforma, com maior densidade normativa, porquanto objetivamente plasmados no texto constitucional, limite procedimental intransponível à atividade interpretativa de seus membros.
É dizer: no exercício da jurisdição, a ninguém é dado alterar interpretação constitucional ultimada pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, nem a seus membros individualmente, e nem aos Tribunais a ele submetidos, mesmo que de sua composição participem ministros do Supremo Tribunal Federal, como é o caso do Tribunal Superior Eleitoral. A propósito, em momento algum a parcial identidade na composição dos dois tribunais autoriza a fusão de suas respectivas competências constitucionalmente balizadas.
Como dito, admite-se, ainda que com diversas e intensas ressalvas, a prática da modulação de efeitos advinda de normas declaradas inconstitucionais por parte do Supremo Tribunal Federal, desde que se tenha por objetivo resguardar a segurança jurídica. Presente o efeito distributivo (ou redistributivo) das inovações normativas, das quais advêm deveres e direitos, é importante que se resguardem eventuais efeitos colhidos de boa-fé por parte dos cidadãos, numa perspectiva de proteção da confiança legítima, que, segundo ora se propõe, autoriza o exercício atípico e eventual do poder soberano pelo Supremo Tribunal Federal.
A segurança jurídica, contudo, enfocada substancial ou procedimentalmente, que como se propõe permite ampliar circunstancialmente o poder institucional do Supremo Tribunal Federal, deve ser compreendida como elemento de interdição constitucional ao poder de interpretação dissonante dos seus próprios membros (e consequentemente de todos os demais magistrados do País), que somente devem propor a revisitação da decisão pretoriana, em sede e procedimentos próprios, se e quando provocados.
Parafraseando a conclusão do citado artigo de Conrado Hubner Mendes, é preciso conjugar a primeira pessoa do plural, de modo a valorizar a tarefa de interpretação constitucional e o próprio Supremo Tribunal Federal, visando concretizar a esperança de efetividade da Constituição.
(Fonte: Site jurídico JOTA - AQUI -, onde constam notas explicativas).
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