Quem diria, o crioulo Lima Barreto será banqueteado na Flip 2017
Por Sebastião Nunes
Pobre literatura brasileira! É preciso que os autores morram para que mereçam a honra de prato principal nos festejos da classe média. Ganham, estripando a pobre criatura, os editores alvoroçados, os herdeiros abençoados e, favorecendo a gastança multiusuária, a classe média deslumbrada, que não perde festa. Vejamos como se banqueteou recentemente na FLIP, seguindo a lição do primeiro na lista dos comidos, que defendia a deglutição antropofágica.
Em 2011, subiu à churrasqueira de Paraty o indomável Oswald de Andrade, para júbilo de seus banqueteadores post-mortem. Gordinho, deve ter sido uma delícia.
Em 2012, foi a vez de Carlos Drummond de Andrade, só osso e pelanca, que nem ao menos atendeu aos cantos das sereias da Academia Brasileira de Letras.
Em 2013, assaram na brasa a carne-seca do Velho Graça, que bebia aguardente e detestava puxação de saco. Banquete de muxibas enfezadas.
Em 2014, Millôr Fernandes – logo o guerreiro Millôr – foi destrinchado e servido aos ilustres comensais. Galo velho é que dá bom caldo.
Em 2015, assado ao forno, com batatas e cebolas, lá estava Mário de Andrade com sua mulatice e seu homossexualismo enrustido encantando os que estão acima de todos os preconceitos, principalmente se não houver preto e pobre nas redondezas.
Ano passado foi a vez de Ana Cristina Cesar, picanha deliciosa e poeta enaltecida por meia dúzia de amigos e desconhecida (ou inexpressiva) para a quase totalidade dos poetas, ótimos, bons, regulares, ruins ou péssimos. A mais fresca das carnes servida até hoje. Quem esteve lá deve ter adorado.
ESTAVA FALTANDO ELE
Mulato, pobre, cachaceiro, gozador, lelé intermitente, parece que Lima Barreto só foi convocado porque está faltando carne de primeira. Ou porque 2017 sugere ano tão miserável que foi preciso lançar mão de um de nossos mais infelizes e desprezados escritores para fingir que infelicidade é coisa passageira.
Para agregar um pouco de tempero aos festejos, compilei alguns trechos de seus contos completos, contando um pouco de seu tempo, que muito bem podia ser o nosso tempo. Que sirvam de aperitivo – e boa comilança a todos, como diriam nossos avós quinhentistas, assando e devorando portugueses e franceses.
INDÚSTRIA DAS INDENIZAÇÕES
“Fora simples a ascensão do pai à riqueza. Pelo tempo do governo provisório, o velho Cardoso pedira concessão para instalar uns poucos de burgos agrícolas, como colonos javaneses, nas nascentes do Purus; mas, não os tendo instalado no prazo, o governo seguinte cassou o contrato. Aconteceu, porém, que ele provou ter construído lá um rancho de palha. Foi para os tribunais, que lhe deram ganho de causa, e recebeu de indenização cerca de quinhentos contos.”
A CORTE REAL CHEGA AO RIO
“Para bem ver a terra, então, ele [D. João VI] se esqueceu das quinze mil pessoas que o acompanharam desde as margens do Tejo, daqueles quinze mil ‘desembargadores e repentistas, peraltas e sécias*, frades e freiras, monsenhores e castrados – enxames de parasitas imundos’, como diz Oliveira Martins, que aportou em São Sebastião para esvair quotidianamente a Ucharia Real** e enchê-la em troca de zumbidos de intrigas, mexericos e alcovitices.”
(* = Sécia: mulher vaidosa, dondoca, madame etc.; ** = Ucharia Real: despensa da casa real, onde se guardavam carnes e outros mantimentos).
(* = Sécia: mulher vaidosa, dondoca, madame etc.; ** = Ucharia Real: despensa da casa real, onde se guardavam carnes e outros mantimentos).
PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA
“Quando menos se esperava, num dado momento em que se representava, no Teatro Imperial de Bruzundanga, o ‘Brutus’, de Voltaire, vinte generais, seis coronéis, doze capitães e cerca de oitenta alferes proclamaram a república e saíram para a rua, seguidos de muitos paisanos, que tinham ido buscar as armas de flandres, na arrecadação do teatro, a gritar: Viva a República! Abaixo o tirano! etc. etc. O povo, propriamente, vem assim, àquela hora, nas janelas para ver o que se passava; e, no dia seguinte, quando se soube da verdade, um olhava para o outro e ambos ficavam estupidamente mudos.”
VOCAÇÃO PARA O ATOÍSMO
“Todos nós nascemos para funcionários públicos. Aquela placidez de ofício, sem atritos nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre – tudo isso vai muito bem com as nossas vistas e os nossos temperamentos. Os dias no emprego do Estado nada têm de imprevisto, não pedem qualquer espécie de esforço a mais para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colisões nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da mesma maneira, durante todo o ano, exceto nos dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das melhores da nossa República. De resto, tudo nele é sossego e quietude.”
O AUXILIAR DE GABINETE
“É este a figura mais curiosa do funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer coisa; pode ser mesmo engenheiro hidráulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de Santa Catarina, estudou no Rio qualquer coisa; mas não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro que o levasse maciamente para o fundo da terra, donde deveria ter saído em planta, em animal e, se fosse possível, em mineral qualquer. É inútil, vadio, mau e pedante, ou antes, pernóstico.
Instalado no Rio, com fumaças de estudante, sonhou logo arranjar um casamento, não para conseguir uma mulher, mas para arranjar um sogro influente, que o empregasse em qualquer coisa, solidamente. Quem como ele faz de sua vida tão somente caminho para o cemitério, não quer muito: um lugar em uma secretaria qualquer serve.” (Fonte: AQUI).
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