sábado, 28 de janeiro de 2017

AGOSTO DE 1998: UMA AULA ANTOLÓGICA SOBRE A GLOBALIZAÇÃO, O BRASIL, O PRECONCEITO, O OFÍCIO DE ENSINAR

                    Milton Santos - 1926-2001 -, geógrafo e professor

Agosto de 1998: Revista Caros Amigos entrevista o geógrafo e professor Milton Santos

Entrevista

A placidez, a serenidade, a fala lenta e pausada, os gestos naturais, os silêncios, o sorriso permanente, a risada aberta e gostosa, tudo nele irradia humanidade, estar a seu lado traz a segurança de estar perto da sabedoria. Milton Santos é o retrato da própria frase que disse a certa altura da entrevista, referindo-se a outra pessoa: “Quem ensina, quem é professor, não tem ódio”. Por isso, mesmo ao dizer coisas explosivas como as que deixou aqui registradas, ele não perde a ternura. E não para de trabalhar, ensinando geografia na USO, fazendo conferências e estruturando um livro promissor: O Mundo Pós Globalização - O Período Popular da História.
Entrevistadores: Marina Amaral, Sério Pinto de Almeida, Leo Gilson Ribeiro, Georges Bourdoukan, Roberto Freire, João Noro, Sérgio de Souza.
Sérgio de Souza – Professor, usualmente pedimos ao convidado que comece falando sobre a sua origem, seu caminho inicial.
Milton Santos – Não tenho muita simpatia por essa forma de começar primeiro por achar que é um pouco estilo americano (risos); segundo, porque obriga a gente a ficar nu (risos), o que pode ser perigoso. Sou baiano, venho de uma família de professores do lado materno, meu avô e minha avó eram professores primários, mesmo antes da abolição. Do lado paterno, devem ter sido escravos, não sei muito bem, porque em minha casa me ensinaram a olhar mais para a frente do que para trás. Meu pai também acabou sendo professor primário, de modo que nasci numa família que – antes da criação do que se chama classe média – era uma família remediada, humilde mas não pobre, e que tentou me dar uma educação para mandar, para ser um homem que pudesse, dentro da sociedade existente na Bahia, conversar com todo mundo.
Sérgio Pinto de Almeida – Em Salvador?
Milton Santos – Em Salvador. Quer dizer, nasci no sertão, porque naquele tempo tinha que ir chegando devagar para a capital, nasci no sertão por acaso, porque estavam lá meus pais, ensinando em Brotas de Macaúbas. Aos oito anos terminei o meu primário em casa, nunca segui uma escola primária. E, como para ir para o ginásio tinha de esperar dois anos, meus pais ficaram me ensinando álgebra, francês e boas maneiras. Aos dez anos fui ser aluno interno num colégio na capital da Bahia, naquele tempo havia talvez seis cidades que tinham ginásio em todo o Estado.
Leo Gilson Ribeiro - Internato religioso?
Milton Santos – Não, leigo, frequentado por uma classe média média. Daí, lá mesmo comecei a ensinar, antes de ir para a faculdade. Morei nesse colégio dez anos – quando terminei, continuei morando lá, ensinando, e fui para a faculdade de direito, da qual saí formado há exatamente cinqüenta anos, em 1948. Fui aluno forte em matemática, mas havia uma notícia generalizada de que a Escola Politécnica não tinha muito gosto em acolher negros, então fui aconselhado fortemente pela família – tinha um tio advogado – a estudar direito, e daí mudei para a geografia, que comecei a ensinar desde os quinze anos.
Leo Gilson Ribeiro – O preconceito era tão forte assim a ponto de haver uma divisão de escolas?
Milton Santos - Havia essa ideia. Na realidade, alguns negros conseguiram entrar, mas havia a crença na sociedade baiana, na sociedade negra em particular, e que os obstáculos na Politécnica eram maiores. E, como eu ia estudar direito, deixei de lado a matemática, mas ela não me deixou, porque, quando agente aprende bem alguma coisa, aquilo fica. E passei para a geografia, que acabou sendo a minha atividade central. Terminada a faculdade de direito, onde os meus professores, todos, de um lado empregavam os filhos e de outro nos diziam que não devíamos ser funcionários públicos porque era feio ser funcionário público, me levaram a acreditar nisso, e decidi fazer concurso para professor secundário. Naquele tempo, professor não era funcionário, não se comportava como funcionário, queria ser intelectual. Isso acabou, mas naquele tempo era assim. Aí fui ser professor secundário em Ilhéus, que era a cidade mais promissora...
Leo Gilson – Cacau...
Milton Santos – Tinha o cacau, eu era melhor pago do que se estivesse na capital. Fiquei lá alguns anos, já escrevendo no jornal, porque o dono do A Tarde, o ministro Simões Filho, me havia descoberto, e me levou a ser correspondente do jornal em toda a região do cacau, aí comecei a escrever, Pouco depois fui para Salvador, onde continuei ensinando no ginásio e comecei a ensinar na Universidade Católica, me preparando para entrar na universidade pública federal, onde fiz concurso em 1960, depois de terminar meu doutorado em geografia na França.
Leo Gilson Ribeiro – O que levou o senhor à geografia era mais o conhecimento físico da geografia, ou sociológico?
Milton Santos – Sociológico. Desde menino, a noção de movimento me impressionava, ver as pessoas se movendo, as mercadorias se movendo, A noção de movimento de idéias veio depois, mas a das mercadorias, das coisas, das pessoas talvez tenha me levado para a geografia. Também um fato, e muito importante no ginásio, o livro de texto era o Geografia Humana, de Josué de Castro. Era uma espécie de história contada através do uso do planeta pelo homem. Aquilo me impressionou. Eu tinha tido um professor muito importante, também, Oswaldo Imbassay, então a confluência de um professor importante, de um livro importante, as explicações do mundo, e como a sociedade se relacionava com o meio, a teoria do possibilismo. Determinismo, tudo isso a gente aprendia no segundo, terceiro ano de ginásio. Era ao mesmo tempo um debate filosófico sobre o destino do homem, a presença do homem na Terra e o seu destino, e a história do mundo se fazendo através da produção do espaço geográfico.
Leo Gilson Ribeiro - Mas havia também uma configuração ideológica, de como a sociedade estava estruturada do ponto de vista econômico, social?
Milton Santos – O Josué imprimia isso, porque tomava partido claramente pela noção do possibilismo, quer dizer, o homem capaz de, frente ao meio, mostrar-se forte e modificá-lo. Toda a teoria de Josué, que nunca teve no Brasil um reconhecimento cabal, porque os geógrafos oficiais não gostavam muito dele. Outra coisa importante no Josué era o domínio da palavra, a elaboração do discurso, que é a forma de chegar mais adiante.
Roberto Freire – Mas tudo acabou...
Milton Santos – Acabou, e a geografia aparecia em tudo isso, E aparecia juntamente com a filosofia, a psicologia. Meu professor foi Herbert Parente Fortes, impressionante figura, grande professor, sobretudo porque não dava muita aula, e um grande professor não pode dar muita aula, tem de dar algumas aulas que marquem os seus alunos, era o caso dele. Então, toda essa confluência, história da filosofia, lógica, história da literatura, história das idéias e econômicas etc. que a gente aprendia antes de ir para a faculdade, isso constituiu um embasamento às humanidade de então, que, me levando para a faculdade de direito, me ajudaram no apego à geografia.
Georges Bourdoukan – O livro Geografia da Fome também o influenciou?
Milton Santos – Muito, Geografia da Fome, Geopolítica da Fome. Esse, vamos dizer assim, aprendizado da generosidade que aparece em Josué de Castro, e essa vontade de oferecer uma interpretação não-conformista, isso cala no espírito do menino e do jovem, essa vontade de buscar outra coisa. Acho que ele teve sobre mim uma influência extremamente grande.
Leo Gilson Ribeiro – Era, digamos assim, precocemente uma visão terceiro-mundista?
Milton Santos – Claramente terceiro-mundista. E outra coisa que ele introduziu na literatura foi a ideia, a noção de consumo, que vai aparecer mais tarde com outras roupas. Ele dividia as pessoas em função de consumir ou não consumir comida, e que tipo de comida. Chegava até a dizer a diferença de quem comia trigo, quem comia milho... (risos) Acho que pó Josué foi um gênio.
Sérgio Pinto de Almeida – Professor, a observação que o senhor fez, do jovem, o menino olhando o movimento das pessoas, das mercadorias, e depois essa riqueza da escola púbica, que certamente não há mais, já não começa a surgir aí o seu interesse muito mais do que pela geografia, o movimento, a coisa técnica, mas pelo embate ideológico, com as leituras do Josué?
Milton Santos – (pausa) Quer dizer, parei um pouco porque pé a reinterpretação do que nos aconteceu. As provocações são boas, porque às vezes a gente bem se deu conta de como as cosias nos aconteceram. Eu imaginava que a minha posição progressista, entre aspas, tivesse chegado muito mais tarde, agora estou vendo, pela sua pergunta, que não foi bem assim., Na faculdade da Bahia, como na maior parte das faculdades de direito, o ensino era extremamente conducente a uma aproximação liberal do mundo, Então acho que deve ter havido certo curto-circuito na ocasião, somado a aspectos biográficos. Quer dizer, quando criei a Associação de Estudos Secundaristas Brasileiros na Bahia, os meus amigos do Partido Comunista se opuseram à minha eleição para presidente, o medo deles era que não seria conveniente que um negro fosse presidente de uma associação tão importante, porque ele iria ter dificuldade de discutir com as autoridades, (risos) E eu, menino, tolo e inexperiente, acabei perdendo a eleição. Possivelmente, isso teve um efeito, quer dizer, eu na faculdade de direito, cercado de gente da elite baiana, com vontade de triunfar, e aí vem um sujeito e diz: “Olhe, você não pode”. Então o meu caminho para o progressismo oficial – lá dentro tinha essa formação -, possivelmente, fazendo essa análise agora, tenha tudo esse esbarrão, essa coisa. E esse progressismo meu via desabrochar quando vou para a França e descubro, lendo os jornais, que havia um mundo diferente daquele que eu lia nos jornais brasileiros.
Sérgio de Souza – Inclusive A Tarde.
Milton Santos – Inclusive A Tarde. Quer dizer, ir para a França, ler o Le Monde, mesmo o Le Monde, e descobrir que o mundo era outra coisa, isso teve um papel muito grande.
Marina Amaral – Interessante, o senhor falou tanto do Josué de Castro, no Rio Grande do Sul os sem-terra têm uma escola de capacitação profissional dos jovens que se chama Escola Josué de Castro. Esse mesmo intelectual pouco mostrado para a minha geração é estudado por eles.
Milton Santos – é que Josué morreu na hora errada. Ele morreu na frança, no momento em que a França estava preocupada em vender, em ampliar o comércio, os funerais deles foram muito acanhados, os franceses não queriam chocar o governo brasileiro, porque queriam vender, estavam chegando já à pré-globalização. E como o ensino hoje em grande parte não tem muita vocação para o começo das idéias, as origens dos conceitos, é muito mais pacotes do presente, então as gerações como a sua devem ter tido esse handicap desfavorável.
Georges Bourdoukan – As universidades não deveriam resgatar o trabalho de Josué de Castro, porque ele continua mais atual do que nunca?
Roberto Freire- E desconhecido, não é?
Milton Santos - Creio que sim. Mas as universidades, a cada dia que passa, têm a vocação do instantâneo. Os estudantes são conduzidos a uma atitude igualmente produtivista. Então esse regresso às fontes se torna difícil, mas não impossível, porque na juventude atual, de alguma forma, a gente sente uma curiosidade pelo passado.
Roberto Freire – O senhor trabalha com o Josué com seus alunos?
Milton Santos – Quando cai dentro da temática. O meu trabalho central hoje é de um lado tentar explicar o mundo, e fazê-lo a partir de uma vontade de formar a minha disciplina, que é a geografia humana. A minha energia vai toda nessa direção, e os autores aparecem como nota infra-paginal.
Georges Bourdoukan - Dentro de suas explicações, o senhor poderia eleger os problemas principais do Brasil?
Milton Santos – Como geógrafo, creio que o território brasileiro é o melhor observatório do que está se passando no país. Se olho o território nacional brasileiro hoje, vejo primeiro que é um território nacional mas da economia internacional. Quer dizer, o esforço de quem manda, no sentido de moldar o território – porque o território vai sendo sempre moldado por quem manda -, é no sentido de favorecer o trabalho dos atores da economia internacional. Não são apenas as multinacionais estrangeiras, mas todas as grandes firmas estrangeiras ou brasileiras, são elas que trazem para o território umas lógica globalizante. Na realidade, uma lógica globalitária, há mais do que globalização, há globalitarismo. Então, temos o território brasileiro trazendo esses nexos, que são cegos, e que criam uma ordem para essas grandes empresas, trazendo desordem para tudo o mais. Desordem criada para as empresas não envolvidas, que são atingidas por ela, por essa entropia negativa dentro do território, que alcança toda a sociedade. Então, o território revela também a incapacidade de governo, quer dizer, a não-governabilidade do pais, porque o Brasil é um país não-governado. Ao mesmo tempo em que o território revela que o governo, a política, se faz pelas grandes empresas. São as grandes empresas que fazem a política. Isso se vê no uso do território brasileiro.
Roberto Freire – O estático é nosso, o funcional é deles.
Milton Santos – Oferecemos mais que o estático, porque oferecemos aquilo que não pode – isso seria a segunda parte do meu discurso – ser objeto de redução. Que são os corpos, os nossos corpos como gente, que não são redutíveis, E o território que também é o nosso corpo, porque o território nos inclui. Então isso leva a uma fragmentação, o território brasileiro é fragmentado.
Georges Bourdoukan – É um novo tipo de feudalismo?
Milton Santos – Há um novo tipo de feudalismo, me de militarização do território ao mesmo tempo. Porque tem de obedecer, tem de fazer aquilo que manda o chamado mercado global. Vejam, por exemplo, as áreas agrícolas mais modernas, como o Estado de São Paulo, que funcionam segundo um regime militar, no sentido de ter de fazer aquilo que lhes é ordenado – ou dá ou desce, ordem unida, - seguindo o que é necessitado por essa ordem global. Digamos que a globalização dê n’água, como vai da, como o interior de São Paulo vai reagir? Quais seriam os cenários? Uma enorme área vendendo suco de laranja, o que acontecerá?
Georges Bourdoukan – É monocultura isso? O Estado de São Paulo estaria repetindo o que fez o Nordeste no passado?
Milton Santos – Uma monocultura ligada a uma ordem global que não existia antes, muito mais constrangedora do que as ordens internacionais anteriores.
Sérgio de Souza - Seria programada agora?
Milton Santos – Programada, é a primeira vez que a divisão do trabalho é programada, nunca foi antes. Isso é um problema. Então, quando a gente faz falar o território – que é um trabalho que creio que é o nosso, fazer falar o território, como os psicólogos fazem falar a alma, como o Darcy Ribeiro quis fazer falar o povo, como o Celso Furtado quis fazer falar a economia -, o território também pode aparecer como uma voz.E, como do território não escapa nada, todas as pessoas estão nele, todas as empresas, não importa o tamanho, estão nele, todas as instituições também, então o território é um lugar privilegiado para interpretar o país. E uma boa parte dos brasileiros não se dá conta de que o país está a cada dia mais sendo fragmentado, e numa fragmentação que não possibilita a reconstituição do todo, Porque o Estado nacional se omitiu, e o comando do território, naquilo que há de hegemônico, é entregue às grandes empresas. Então, a reconstituição do todo nacional, que os franceses chamam de lien social, a solidariedade, não existe mais no Brasil. Vejam a maneira como se discute previdência social, desculpem usar esse argumento terrível, a forma como se trata os aposentados – há um contrato da nação, tenho de dizer isso porquê sou velho (risos), há um contrato da nação que cada pessoas cumpriu a vida inteira, e no fim dizem a ela: “Esse contrato não vale mais”. E isso é aceito! Então os diversos capítulos do que seria a solidariedade são bafoués, largados e uma parte da sociedade aceita como normal porque estamos “no caminho da modernidade, para ser primeiro mundo”. Então, há uma fragmentação da sociedade, do território, junto com a governabilidade, que os prefeitos, sem saber muito que se trata disso, estão descobrindo lentamente, tanto que foram para Brasília reclamar. E foram recebidos por cachorros policiais, mas não pelo presidente da República.
Sérgio de Souza – Um número espantoso.
Milton Santos – Espantoso, mas é isso: com o território se fragmentando, a governabilidade se torna impossível. E aí a gente já entra na segunda parte, que a esquizofrenia do território. O território brasileiro é esquizofrênico. Por quê? Porque de um lado, recebendo esses insumos de modernização globalitária, ele se fragmenta, se fragiliza. De outro lado, descobre que esse processo não lhe convém, e talvez lhe falte descobrir qual é a lógica mais geral que permite a produção de um discurso novo. Primeiro acadêmico, quando possível também da mídia, e depois o discurso político.
Leo Gilson Ribeiro – Pelo que o senhor está dizendo, voltamos a ser uma espécie de entreposto imenso, uma senzala, regida por uma pequena casa-grande em que na parte de cima estão os estrangeiros e na de baixo os testas-de-ferro brasileiros?
Milton Santos – Eu preferiria pô-los juntos, na medida em que neste fim de século a economia é subordinada à política, as empresas fazem política, sem aquela velha distinção anglo-saxã entre policy e politics. A policy é como organizar a coisa para chegar a objetivos individuais. E a politics é algo mais geral, filosófico, englobante. Só que as empresas acabam fazendo política, porque a sua policy, a sua politiquinha particular, privatística, cega, envolve todas as outras páreas da vida social. As áreas são envolvidas por elas, então elas fazem politics. E o Estado – a política do Estado, que também há uma – é forte por se abster, essa abstenção é que o faz mais forte do que nunca, a serviço das empresas. Essas empresas nacionais que antigamente eram chamadas de testas-de-ferro são hoje, muito mais importantes, porque o consenso no interior da nação resulta de um trabalho desses empresários brasileiros que estão de acordo com isso, para sobreviver, E como a vocação, que imagino que tenham, de ser também globais. Então, as grandes empresas, para exercer seu papel econômico, necessitam fazer política. É um dado do fim do século. Com essa globalização, elas fazem política através da produção da imagem, através da necessidade de estabelecimento de regras, normas – na medida em que a técnica tem um comando geral na vida produtiva, e a técnica, ela própria, já é uma norma, não é isso? A técnica é uma norma exigente de normas, Então as empresas precisam de normas. As normas próprias e as normas em que está estabelecido o ambiente – falo de território, que é também normado – para que as empresas possam tirar um melhor proveito. Então, a política é a condição de realização da economia. E é a razão pela qual a gente não pode tocar um esparadrapo na boca dos economistas, mas também não pode deixá-los falar sozinhos, porque eles conduzem o debate para um canto, o que não permite ver o funcionamento global.
Roberto Freire – O senhor usou a palavra esquizofrenização – na psiquiatria, o conceito de esquizofrenia é de divisão, o senhor coloca muito bem essa divisão, é mesmo um processo esquizofrênico do ponto de vista social.
Milton Santos – Mas tem o outro lado, que os partidos ainda não foram capazes de descobrir: essa união que está despontando entre todos os excluídos de diversos níveis. Porque há o excluído do comércio, há o excluído da pequena indústria, quer dizer, na economia, na sociedade, na cultura.
Sérgio de Souza – É aí que entraria, por exemplo, o MST, que com organização própria, independente de um poder maior, está não só reivindicando, mas agindo? É uma mudança que estamos notando e que talvez também surja na periferia, com esse movimento hip hop. Não sei se é espontâneo, mas parece que aí estaria a novidade. Como o senhor vê o MST?
Milton Santos – Primeiro vejo como esse grito que a maior parte de nós não pode dar, não quer dar, que não convém dar. E creio que esse fim do século é dos paradoxos. Paradoxo é a contradição em estado puro, não é? Então, ao mesmo tempo em que o MST é criticado, ele é apreciado, pelo que contam as pesquisas.
Marina Amaral – As pesquisas de opinião mostram uma simpatia até entrar no saque, daí já não há mais simpatia.
Milton Santos – Porque nos dizem que o direito é para ser obedecido, quando na realidade ele é para ser discutido, pois o direito é o resultado de um equilíbrio provisório que se cristaliza – mas a sociedade continua dinâmica, então não se pode imaginar o direito assim imóvel como querem. São chavões. Como dizer, e se diz, e a própria esquerda fica calada: “Sindicato não pode fazer política”.
Marina Amaral – É um absurdo dizer isso. A greve é política.
Milton Santos – A greve é política! Essa agora dos professores, o ministro disse, reclamando: “Está claro agora que a greve é política”. (risos)
Georges Bourdoukan – Mas é que a palavra “política”, hoje, políticos oficiais sujaram de tal maneira, que quando se fala “a coisa é política’ pode parecer uma coisa mal-intencionada.
Milton Santos – É que não são políticas. Não terminei a lista. A política é feita pelas grandes empresas. Os políticos não fazem política, o aparelho de Estado não faz política, são porta-vozes. O povo faz política, os pobres é que fazem política. Porque conversam, porque conversando eles defrontam o mundo, e buscam interpretar o mundo. E agem, quando podem, em função do mundo. Creio que essa é a questão do MST. O outro aspecto é que a organização é importante, e a desorganização também. A organização conduz obrigatoriamente a palavras de ordem, a certa necessidade imposta. Tem de ter as duas coisas. E, para voltar ao que o Sérgio sugeriu, o que as periferias revelam é um pouco isso. Só que não estamos preparados para entender, porque nosso aparelho cognitivo...
Roberto Freire – Está preparado para entender a forma tradicional, que está na mão dos poderes.
Milton Santos – Está na mão nossa também, da universidade, da faculdade. A gente quer repetir a interpretação do Brasil através do que aprendeu na Europa e os Estados Unidos com a classe média, porque pobres não havia. Na Europa em que essa geração estudou quase não tinha pobre, e a classe média era defensora da democracia e do seu aperfeiçoamento. Tanto que houve a expansão da social-democracia, que era uma forma de aperfeiçoamento da democracia. E os pobres são tratados pornôs, que aprendemos a epistemologia européia na universidade, como o chantilly no bolo. A gente faz a construção, depois coloca o pobre em cima. Partidos de esquerda também fazem isso. Quer dizer, a construção toda é de classe média, e depois os pobres são colados lá em cima, porque resta aquela idéia de que a classe média queria defender os princípios fundamentais da humanidade e que os pobres, coitados, não têm nenhuma possibilidade de ser visionários, porque estão no dia-a-dia, “vivendo da mão para a boca”.O dia-a-dia era considerado pela antropologia e sociologia oficiais como algo que impedia qualquer vocação para o futuro. Quando é o contrário, porque quando tenho todos os dias que renovar meu estoque de impressões, de conhecimentos, de luta, que é o que o povo faz, sou obrigado a renovar também a minha produção filosófica, vamos dizer assim. Quer dizer, todos os dias o povo se renova, e num país como o Brasil, essa urbanização tão galopante, tão rápida, essa mudança de lugar (reivindico o assunto para a minha área) tem um papel extraordinário na produção desse outro homem, já não tão seguro, ainda que ao mesmo tempo lhe ensinem que o consumo é bom, e o façam crer que ele vai poder consumir. Há o bombardeio da informação, a tirania da informação, que é um dos esteios centrais da globalização. Nunca foi assim. E essa tirania da informação, essa ditadura da informação...
Sérgio de Souza - Da má informação, digamos, ou da informação em geral? Porque a informação não pode ser má.
Milton Santos – Ela é minoritária. A própria universidade faz parte desse processo, porque ela legitima, ela santifica aquela informação doentia...
Roberto Freire – Deformada...
Milton Santos – Deformada, mas que é geral.
Sérgio de Souza - O senhor seria uma exceção.
Milton Santos – Acho que há muitas.
Sérgio de Souza – Mas são minoria também dentro da universidade.
Milton Santos – Claro. Porque deve ter muita gente que não é conhecida, mas como saem dali as idéias? A gente já escreve numa língua própria, que é o facultês, e às vezes escreve numa língua ainda mais restrita, que é o cologuês. A gente escreve para ser apreciado pelo colega que vai nos julgar, que vai nos dar promoção. Isso é uma prisão muito forte.

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