segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A LÍNGUA PORTUGUESA, O BRASIL E OS PORTUGUESES


Serão os portugueses totalmente responsáveis pelo nosso fracasso como nação?

Por Sebastião Nunes

A atriz norte-americana Carrie Fisher morreu quatro dias depois de sofrer ataque cardíaco num voo entre Londres e Los Angeles. Ela voltava de uma turnê promocional de seu oitavo livro. Misto de atriz e escritora, filha da também famosa Debbie Reynolds, integrava a rede midiática dos EUA que transforma filmes em livros e vice-versa, além de outros produtos de venda garantida. Resultado: milhões de dólares em caixa.
        O primeiro texto que li de Gabriel García Márquez foi um conto em inglês no New York Times Book Review anterior a 1978, sendo que ele só ganhou o Prêmio Nobel em 1982, pelo menos quatro anos depois de se tornar conhecido em inglês. Digamos que já pavimentava sua estrada rumo a Estocolmo.
        Este ano foi a vez de Bob Dylan receber sem ir buscar – esnobando um pouco a ilustre academia sueca –, premiação que seria motivo de polêmicas intermináveis sobre os limites entre poesia e canção popular, caso houvesse ele nascido, por exemplo, num país periférico como o Brasil. Ou profundamente livresco, como a França.

E OS PORTUGUESES?
        “George Steiner (estou citando do livro ‘Identidade’, de Zygmunt Bauman), um crítico cultural contundente e altamente perspicaz, apontou Samuel Beckett, Jorge Luis Borges e Vladimir Nabokov como os mais importantes escritores contemporâneos. O que unia, a seu ver, esses três autores em tudo o mais distintos, colocando-os acima dos demais, era o fato de todos eles serem capazes de se movimentar com facilidade em vários universos linguísticos diferentes.”
        Naturalmente faltaram na lista dois escritores brasileiros que poderiam entrar nela, não fosse nosso português uma língua de segunda categoria face ao inglês e mesmo ao espanhol. Não dá para esquecer que Beckett era irlandês (portanto de língua inglesa) e que Nabokov publicou “Lolita” (1955), seu livro mais importante, em inglês, tendo se naturalizado norte-americano em 1945. Aliás, desde pequeno falava russo, francês e inglês em casa, e leu em inglês antes mesmo de conseguir fazê-lo em russo. Quanto a Borges, embora argentino (talvez por pirraça não tenha levado o Nobel), foi educado na Suíça e aprendeu a ler em inglês antes do espanhol, por influência de uma de suas avós, de origem inglesa. Aos sete anos, escreveu em inglês um resumo da literatura grega, veja que precoce. Pela educação europeia, falava e lia várias outras línguas, tendo se interessado especialmente pela literatura anglo-saxã da Alta Idade Média.

CADÊ OS PORTUGUESES?         
        Os escritores brasileiros que faltaram na lista dos poliglotas cosmopolitas foram Jorge Amado e Guimarães Rosa. O primeiro, a despeito do fortíssimo apoio durante anos do Partido Comunista (que ajudou sem dúvida na premiação de Pablo Neruda e Saramago) e de passar boa parte do tempo no Exterior, nunca foi além de mero candidato. E o segundo, extraordinário ficcionista, deixou-se enredar na armadilha de pegar jacu que é nosso belo, vigoroso e provinciano idioma e daí – babau! Ou alguém pensa que os eleitores da academia sueca e sua rede de espiões literários iriam se dar ao trabalho de tentar – de ao menos tentar – compreender o mineirês com que Rosa trasmudou (mutatis mutandis) para nossa língua a epopeia do “Ulysses” e o delírio de “Finnegans Wake”, de James Joyce? Núncaras! Rosa continuará, enquanto houver leitores eruditos em português brasileiro, um escritor para brasileiros. E só.
        Para a língua portuguesa restou o prêmio de consolação do Nobel dado a José Saramago, que eu não colocaria acima de nenhum dos nossos. Além do fato de que o português de lá tem pouco a ver com o português de cá.

E OS PORTUGUESES, CACETE?
        Citei na última semana um texto de Lima Barreto sobre a fuga de D. João VI para o Brasil, expulso pelos franceses de Napoleão: “Para bem ver a terra, então, ele se esqueceu das quinze mil pessoas que o acompanharam desde as margens do Tejo, daqueles quinze mil ‘desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades e freiras, monsenhores e castrados – enxames de parasitas imundos’, como diz Oliveira Martins, que aportou em São Sebastião para esvair quotidianamente a Ucharia Real e enchê-la em troca de zumbidos de intrigas, mexericos e alcovitices”.
        Aí estão os portugueses. 209 anos depois, aí estão eles, multiplicados por milhões e milhões, infiltrados em todos os setores que decidem e que mandam, decidindo e mandando por seus herdeiros e sucessores. Aí estão eles, que somos nós hoje, pois não passamos de portugueses misturados com negros, índios, italianos, japoneses etc. etc., mas eternamente portugueses, ladrões e usurpadores, os mais espertos de nós passando a perna nos mais bobos, que serão sempre a maioria de nossos patrícios.
        Mas nem isso tem mais importância. O “estado brasileiro” acabou, ou agoniza, ou estertora, ou está em coma – alguma coisa do tipo. O país como nação acabou, retalhado em milhares de subsistemas políticos, sociais e culturais, cada qual reivindicando para si a hegemonia num país que nunca soube o que é hegemonia.
        Sobra o território, um dos maiores de mundo, um dos mais exóticos do mundo, um dos mais diversificados do mundo, um dos mais ricos do mundo, mas, infelizmente, um dos mais sucateados do mundo. Eta, povinho mané, sô!
        Haveria a língua para nos representar lá fora, se ela tivesse alguma importância. Só que não tem. Então nos resta lamber as feridas e – cada um por si e Deus por todos – continuar sonhando com um implausível e inviável país do futuro.
        E se alguém acha que estou brincando, acertou. Magoado e ferido, mas brincando. Pois, como profetizou Millôr Fernandes, “temos um enorme passado pela frente”.

(Fonte: aqui).

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