terça-feira, 24 de janeiro de 2017

AS IDEIAS E AS VIAS DE FATO


Torquemadas bem intencionados

Por Carlos Orsi

O argumento geral da Inquisição era bem simples: se você acredita que quem não segue a Igreja vai para o inferno, então quem questiona a Igreja em público está cometendo um crime horrível -- tentando convencer gente inocente de mentiras e, por tabela, levando essas pessoas para o inferno! Nessa lógica, faz todo o sentido espancar, calar ou matar os hereges: ao fazer isso, o fiel prejudica um ser humano que provavelmente já estava perdido, mesmo, mas salva milhões.

De fato, é um argumento tão simples, lógico, cogente e cristalino que a Inquisição católica representou apenas uma dentre muitas manifestações terrestres dessa espécie de ideal platônico de pureza intolerante. Outros casos emblemáticos que costumam ser muito citados são os das fogueiras de livros do nazismo, e os expurgos soviéticos. As únicas coisa que mudam, de uma iteração para outra, são o nome da "igreja", a definição de "herege" e a conceptualização de "inferno".

É importante notar que, do ponto de vista do inquisidor, a repressão inquisitorial é um ato de boa vontade e, até, de generoso desprendimento: o torturador põe sua alma em risco para poder salvar outras. Ele se suja para que os demais permaneçam limpos.

O que vai aí em cima me ocorreu depois de ver a repercussão do vídeo do soco no neonazista americano. Porque é muito fácil ver um racista abjeto como "herege" e um mundo governado por racistas abjetos como o "inferno". E o circuito do Torquemada bem intencionado se fecha quase sem que percebamos.

Aqui eu podia entrar numa onda grandiloquente e citar Nietzsche falando de monstros e abismos, mas vamos manter a coisa num nível bem básico: é errado agredir fisicamente uma pessoa porque ela defende um discurso que consideramos abjeto. Porque é uma aposta segura que todo mundo acredita em alguma coisa que alguém vai considerar abjeto, seja a moralidade de comer churrasco ou a legitimidade da união homossexual. Se ultraje moral justifica agressão, um ativista politicamente correto bater num nazista não é diferente de um católico devoto meter a mão na cara de um médico que realiza abortos.

"Ah, mas o aborto é racionalmente defensável, o racismo não". Concordo. Mas o que determina se algo é racionalmente defensável ou não é, veja só, argumentação racional, não bom-mocismo intuitivo ou krav-magá.


Quem se queixou do uso de violência para calar a boca do imbecil acabou bombardeado por memes "espertinhos" do tipo "boas maneiras não detiveram Hitler". É, de fato, não. O que fica faltando nesse quadro é o fato de que Hitler tinha exércitos. Antes de ter exércitos, tinha arruaceiros paramilitares. Ele não estava só falando merda. Estava dando tiros e espancando pessoas. Não há nada errado em esmurrar um nazista que esteja prestes a descer o cacete em alguém, ainda que o ideal seja chamar a polícia.

Uma das lições mais tediosas da história é a de que repressão e violência não matam ideias: há sistemas de crença que, na verdade, prosperam sob ataque. "Se tem tanta gente contra é porque deve deve haver alguma verdade aí" é um argumento tosco que já vi usado  a favor do marxismo, da escola austríaca de economia e, sim, de xenofobias várias que se aproximam bastante do nazismo. Ideias, de fato, raramente chegam a morrer: o mais comum é que definhem até a irrelevância, reduzindo-se a slogans de malucos pregando no deserto. Bater neles só faz com que as pessoas se lembrem de sua existência. (Fonte: Blog de Carlos Orsi - aqui).


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As vias de fato também refletem ideologia. Lawfare e direito penal do inimigo, p. ex., são itens que configuram vias de fato. Daí a importância do que se contém no artigo 5º e outros dispositivos, da Constituição em vigor.

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