"(...) Valor: Já aconteceu de em uma dessas ocasiões o senhor soltar o preso com decisão de ofício mesmo?
Luís Carlos Valois: Já, de ver que há um absurdo ali envolvendo a prisão dele e soltar. É comum a pessoa já ter tempo de prisão em regime fechado para progredir para o semiaberto, por exemplo, e aí está faltando um parecer do Ministério Público ou algo assim. Aí eu vejo o processo, pego e solto mesmo. Deixa o Ministério Público se manifestar com ele solto. É uma medida cautelar que eu adoto. Não é nada do outro mundo, mas é um direito do preso.
Valor: O problema de superlotação de presídios não é exclusividade de Manaus. A que o senhor atribui isso? É uma cultura de encarceramento?
Valois: A cultura no Brasil é que a prisão é só segregação. É depósito de seres humanos. Deveríamos fazer as coisas de maneira racional, de preferência científica. A prisão não é resultado de nenhum experimento científico. E se foi, foi falho. A prisão não serve para nada, nada, nada. Sabe como é que nasceu a prisão? Antigamente as pessoas eram enforcadas, queimadas, guilhotinadas, chicoteadas. Tinha várias penas que não eram a de prisão. Mas para o cara ser condenado a uma dessas penas, ele tinha que ficar esperando na prisão. E essas penas foram acabando por causa da sensibilidade da sociedade industrial, da Revolução Francesa, elas foram acabando. E os caras foram sendo esquecidos. A prisão nasceu por acaso. E agora, então, o que vamos fazer? vamos decidir que o cara então vai ficar lá [na prisão] cinco anos. Não vamos poder matar, então ele fica cinco anos, não é nenhum resultado de pensamento científico. Imagine que pessoas diferentes cometam um crime, cada uma em um lugar. Aí pega essas pessoas e colocam presas no mesmo lugar para ficarem conversando. Olha que absurdo!
Valor: O que fazer então com um latrocida violento, por exemplo?
Valois: O que acontece é que hoje a gente não pensa em tecnologias para isso. Tem chip, tornozeleira eletrônica. Qualquer coisa é melhor do que a prisão. Até não se punir o cara. Preste bem atenção: se a gente parasse de prender as pessoas, todo mundo, de uma hora para a outra, daqui a 50 anos teríamos menos crimes. Olha que absurdo. Então a gente está fazendo uma coisa para aumentar a criminalidade. 'Ah, mas ele não vai ser punido?'. Não posso punir, porque senão vai aumentar a criminalidade. O nosso sentimento de punição é maior que a nossa racionalidade. Bota um capacete no cara, com luz piscando, sei lá. Mas botar numa prisão com outros bandidos é uma coisa idiota.
(...)
Valor: O que é possível fazer, em termos penitenciários, enquanto estamos todos no meio de uma guerra de facções criminosas? Separar os presos surte efeito?
Valois: Separar os presos é contra a lei, inclusive. A lei prevê a separação por tipo de crime, por idade, a Constituição diz isso, inclusive. Então, botar todos os criminosos de uma facção pra cá e todos os de outra pra lá é contra a lei. Eu sou a favor de cumprir a lei. E já pensou fazer uma lei dessa, determinando a separação de presos por facções? Que ridículo que ia ser para o Brasil?
Valor: O senhor tem uma posição pessoal de ser contra o enfrentamento do Estado às drogas. Na sua opinião, a liberalização das drogas seria uma solução para o crime?
Valois: Resolver, não resolveria, numa sociedade com desigualdades sociais deste jeito. Inclusive, muitas dessas pessoas [traficantes de drogas] iam migrar para outros crimes. Mas, ao mesmo tempo, a polícia, que fica apenas na operação antidroga, teria mais tempo para investigar outros crimes. Hoje você é assaltado, vai à delegacia e recebe um BO [boletim de ocorrência]. Matam um familiar teu, tu vais lá e recebe um BO. Ninguém investiga mais nada. Por quê? Porque a polícia vai à esquina, pega o cara com 10 trouxinhas de droga e ela está trabalhando, mas não investiga mais nada. A polícia fica só fazendo blitz. Essa é a atividade da polícia brasileira atualmente. Eu não gosto nem de falar de descriminalização, gosto de falar de regulamentação. Porque droga tá tudo liberado aí. Acha que a polícia não sabe onde estão vendendo as drogas? E o que está havendo com isso? Mortes e mais mortes. O Estado deveria era ganhar um dinheiro com isso, ia retirar o financiamento do crime organizado. A única coisa ruim da droga é a própria droga em si. Eu não vejo nada de ruim na descriminalização, absolutamente nada. Só vejo coisa boa. Vai sobrar muito mais dinheiro, investimento e efetivo policial para outros crimes. Vai ter muito mais dinheiro para tratamento de viciado.
Valor: Mas hoje, no Brasil e no mundo, os tráficos de drogas e de armas andam juntos, quase se complementam...
Valois: Então imagine, tirar esse financiamento aí todo. Porque o grande problema da violência é o problema do varejo. O atacado está aí, andando de helicóptero. O atacado não está atingido por essa política de repressão. E o varejo quer a regulamentação, mas o atacado não quer.
Valor: O que o senhor quer dizer com atacado?
Valois: Ninguém sabe quem é o atacado, ele anda de helicóptero, de jatinho. Tu achas que o traficante brasileiro é Fernandinho Beira-Mar [líder do Comando Vermelho, no Rio] e Marcola [líder do PCC]? Acha? Cadê os helicópteros deles? Cadê o helicóptero do Zé Roberto [líder da FDN] (FDN: facção 'família do norte'), que mora em uma periferia aqui em Manaus? O Fernandinho Beira-Mar morava na favela. Acha mesmo que esses são os traficantes brasileiros comandando o tráfico brasileiro? E apareceu um helicóptero com meia tonelada de cocaína no Brasil e a gente fica achando que são eles os traficantes. É muita ingenuidade, né? [o juiz se refere à apreensão de um helicóptero com 445 kg de cocaína em Minas Gerais, em 2013, durante ação da PF. A aeronave pertence a uma empresa do ex-deputado estadual mineiro Gustavo Perrella].
Valor: O senhor então considera o combate às drogas uma hipocrisia?
Valois: Não uma hipocrisia, mas algo alienante. Você fica enxugando gelo para fazer de conta que está fazendo alguma coisa enquanto o tráfico real, milionário, de milhões e milhões de dólares está circulando no 'alto clero'. Veja um exemplo: bancos abriram caixas eletrônicos específicos no México para distribuir dinheiro dos Estados Unidos, sabendo que o dinheiro era originado do tráfico. E ninguém foi punido. Houve uma CPI nos Estados Unidos, indiciaram os gerentes dos bancos. O gerente do banco foi punido. A gente está tapando o sol com a peneira com essa guerra às drogas. E é difícil defender a descriminalização das drogas, porque as pessoas dizem logo: 'ah, esse cara é maconheiro'.
(...)
Valor: Como lidar com organizações criminosas violentas como a FDN e o PCC? Essas pessoas podem ser reeducadas, ressocializadas?
Valois: Eu acho que até tu, com aquela violência da prisão, pode perder o limite para tudo. Muitas dessas pessoas não fariam ou não vão fazer isso em liberdade. A prisão leva àquilo. O medo, o terror, a ignorância, o ódio. É tudo misturado ali. Por exemplo, uma guerra. O soldado pai de família, tem o filho dele que ele leva à escola, a esposa que ele beija toda noite. Ele é convocado para a guerra e ele estupra, ele mata, ele corta a cabeça, ele faz o escambau lá dentro. Acabou a guerra ele continua com a vida dele normal. A prisão é uma guerra. É violência 24 horas por dia, a prisão. Não é natural ficar atrás de grades. Não tem como a gente avaliar aqui de fora.
Valor: E a pessoa submetida a isso tem como ser reinserida na sociedade?
Valois: Depende dela. Vou te dar um grande exemplo. Malcolm X [ativista negro americano, assassinado em 1965]. Ele foi preso por um assalto e ele era analfabeto. Na penitenciária em que ele ficou não podia ter livro. Ele traficava livro, à noite ele esperava um guarda acender a luz da sala dele para aproveitar um raio de luz para enxergar e aprendeu a ler assim na penitenciária. Saiu de lá e virou um grande líder revolucionário negro nos Estados Unidos. Foi a prisão que ressocializou Malcolm X? Quer dizer, esse pensamento de mudar funciona com, sem ou apesar da prisão. Depende da pessoa. Mas é sempre apesar da prisão quando acontece, porque a prisão não está auxiliando nisso.
Valor: Então é um equívoco pensar que a prisão ressocializa?
Valois: Claro. Até do Big Brother, que é um lugar com um monte de mulher bonita, o cara quer sair."
(De Luis Carlos Valois, juiz de Execuções Penais no Amazonas, em entrevista a André Vieira, do jornal Valor. Os trechos acima foram destacados pelo site Conversa Afiada - AQUI -, que enfatiza:
"...É uma entrevista corajosa, desafiadora e centrada no dia-a-dia do regime carcerário, que foi capaz de desenhar um novo mapa do Brasil. Não é propriamente uma entrevista, mas um murro no estômago dos justiceiros do pensamento convencional, carcereiros por ideologia.
Esses que ganham dinheiro com a construção de presídios - e, com isso, conseguem devolver o Brasil à fase pré-Lei Áurea."
Definitivamente, é imperioso que o Brasil desenhe um novo mapa de atuação em busca da solução dessa trágica calamidade - não necessariamente pondo em prática 100% de cada uma das alternativas aventadas pelo magistrado).
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