O teorema do quadro falso
Por André Araújo
Os falsificadores de quadros já existiam ao tempo de Rembrandt. É uma antiga profissão que só aumentou na fase impressionista e chega até nossos dias. O maior falsificador do Século XX foi o francês Fernand Legros, cuja biografia por Roger Peyrefitte "O Falsário ou a Vida Extraordinária de Fernand Legros" (Record 1976) é um clássico. Peyrefitte é um renomado escritor francês da segunda metade do século. Outra biografia na mesma linha é sobre Hans van Meegeren, falsificador especializado no pintor Vermeer, escrita por Frank Wynne (Companhia das Letras 2006, "Eu fui Vermeer"). Sobre o tema de quadros falsos há bons insights em "Mercadores de Arte", autobiografia de Daniel Wilderstein (Planeta 2000), o maior marchand das décadas do pós guerra, que forneceu boa parte dos quadros do Museu de Arte de São Paulo (MASP).
Os falsificadores vendiam seus quadros como verdadeiros e cobravam o preço de mercado. A amplitude do negócio é muito maior do que se imagina, quase todos os grandes museus do mundo tem quadros falsos em bom número.
As "expertises", atestados que dão como verdadeiro um quadro, também são falsificadas ou verdadeiras, mas compradas com o "expert" sabendo que o quadro é falso. Utrillo foi um dos pintores mais falsificados, cinco ex-amantes vendiam "expertises"; todos os impressionistas foram muito falsificados e coleções particulares foram as grandes compradoras.
É célebre a estória que Picasso, que pintou milhares de quadros, atestou como seu um quadro falso, tão boa era a falsificação. Mas a descrição do ramo de negócios da falsificação de quadros nos leva ao teorema.
O TEOREMA DO QUADRO FALSO é a grande arma dos falsificadores. Uma vez descoberto em um grande e reputado museu a existência de um quadro falso, o que fazer? Há duas saídas:
Primeira: Chamar a Polícia e denunciar o falsário para processá-lo e tentar reaver o dinheiro, ou
Segunda: Não fazer nada e deixar o quadro na parede como se verdadeiro fosse. Por quê?
O escândalo que acompanha a denúncia à Polícia vai para os jornais e contamina toda a coleção do museu.
Se tem esse falso, terá outros? Como eles compraram esse falso, quer dizer que aí tem coisa; o escândalo prejudica a reputação do museu e, muito pior, queima a coleção para futuras vendas e trocas. Além disso, a investigação da Polícia pode voltar-se contra o curador do Museu que decidiu a compra, e é na prática impossível recuperar o dinheiro.
Na prática, 95% dos museus e colecionadores preferem a segunda hipótese.
Essa é a grande proteção dos falsificadores. O escracho se volta contra o denunciante e o prejudica.
Uma variante do teorema é a família de alta posição social que tem um filho problema, drogado e vagabundo.
O pai e a mãe vão ficar falando para todos como é o filho? Vão a uma festa e dizem, alto e bom som, meu filho não vale nada, é um vagabundo, cheirador, não presta? Raramente fará isso, por quê? O escracho do filho ruim se volta subrepticiamente contra a família, contamina a reputação da família.
Trazendo o TEOREMA para o Brasil. O escracho de corrupção com grande escândalo está queimando o nome do Brasil no exterior. O Brasil nos últimos 30 anos subiu de patamar no mundo, tornou-se um País admirado e simpático a todos. Agora a visão mudou, estamos sendo considerados um covil de ladrões, a cruzada da Lava Jato se noticia no mundo inteiro não a favor do Brasil mas contra a reputação do Brasil, de seus cidadãos, Governo e empresas. O mundo é cruel, ninguém é santinho que admira os bons moços que lutam contra a corrupção, a conclusão das notícias é o contrário: "Mas que pais é ladrões é esse?"
Pode haver elogios nos grupos de procuradores de outros países, mas no mundo real dos investimentos e negócios não há essa admiração pelas punições, há o choque pela extensão da corrupção; não que nos outros países não exista, mas eles são cuidadosos e não põem na janela, exatamente para manter a boa imagem do País.
Ah, dirão, mas a Itália na Operação Mãos Limpas escrachou para o mundo. A Itália tem uma História de 2.700 anos, foi a capital do mundo ao tempo do Império Romano, hoje é o centro da Igreja, a Itália não precisa preservar sua reputação porque ela é atemporal, é uma civilização tão antiga, com suas virtudes e defeitos, que nada muda a visão do mundo sobre a Itália. Já país emergente precisa lutar continuamente por sua reputação, que nunca foi boa.
A China, a Coreia do Sul, a Índia, todo o mundo árabe, a Rússia, as repúblicas do Cáucaso, todos tem corrupção muito maior que o Brasil, mas não escracham para o mundo. Se lavam a roupa suja é em casa. Não fazem da campanha anti-corrupção bandeira do País porque isso se volta contra e não a favor.
É o teorema do quadro falso. Se eu falar muito que meu irmão é malandro, vão acabar achando que eu também sou. As empresas brasileiras já estão sendo vistas no exterior como "suspeitas", as empreiteiras brasileiras já estão queimadas, daqui a pouco o Brasil vai ser equiparado ao Congo e os parceiros vão nos virar a cara.
Para os cruzados da Lava Jato tudo isso não importa, o Brasil que se dane, nossa missão é extirpar o pecado. (Fonte: aqui).
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Conhecer as leis e exercitar o Direito é importantíssimo. Importante também é ter presente a chamada realidade real do mundo dos negócios e das finanças, seus vícios e idiossincrasias, artifícios e manobras acionados por todos os países, realidade que em muito extrapola o quadro sugerido por Milton Friedman em seu 'consagrado' "não existe almoço grátis".
É por aí que transitam André Araújo, no texto acima, e Saul Leblon, autor do editorial da CartaMaior, edição de 07.08.2015, cujo teor segue abaixo:
A suposição de que existe um 'mercado puro' ignora a realidade dos cartéis e oligopólios coordenados pela voragem da dinâmica financeira mundial
Em sua cruzada contra a corrupção, o juiz Moro anunciou que, ademais do setor petrolífero, ilícitos detectados na área elétrica passarão também a ser de sua conta.
Em breve, o mesmo fio condutor poderá levá-lo a práticas e protagonismos semelhantes ramificados em um outro setor, depois em outro e outro, até roçar a área financeira.
Desse mirante privilegiado do dinheiro, poderá vislumbrar um amplo horizonte de malfeitos encadeados agora na esfera global.
Incansável, a esquadra do Paraná navegará seu fervor missioneiro por entre acordos e associações cada vez mais complexos, emaranhados e cartelizados, que poderá avocar igualmente como de sua intrínseca alçada...
Em algum momento desse périplo, o juiz Moro poderá invadir a seara da Alta Corte inglesa, onde o juiz Cooke, calçado em investigações do Serviço de Fraudes Sérias, acaba de condenar o primeiro réu do escândalo da Libor.
Tom Hayes, o sentenciado, criou um cartel para fixar a taxa de juro de referência na correção de trilhões de dólares em ativos no mundo.
Hayes manipulou dados para colocá-la a serviço dos lucros de seu banco, o UBS.
Fez isso em conluio com outros bancos e operadores em diferentes praças do mundo.
No mérito e no método, nada muito diferente do que armaram os empreiteiros da Petrobrás; ou os executivos da Siemens, Alstom e assemelhados no metrô de São Paulo; ou o que fazem, e sempre fizeram, bancos e endinheirados nativos, parte deles flagrados no escândalo do HSBC, que ungiu a plutocracia brasileira no topo do ranking mundial de lavagens e sonegação...
Colosso.
Com todo esse caminho pela frente, o meritíssimo de Curitiba corre o risco sério de repetir na esfera jurídica o mapa inútil de Borges: aquele que se auto anula ao adquirir, finalmente, a escala da realidade.
A escala do capitalismo em nosso tempo é composta da grande geografia dos cartéis e oligopólios amalgamados e coordenados pela voragem da dinâmica financeira.
Hoje eles abarcam da produção de cerveja à de sucrilhos, passando pela de lâmpadas, aviões, navios, plataformas de petróleo, vagões de metrô, tarifas de bancos, spreads (especialidade do sindicato dos bancos brasileiros, a Febraban) e taxas de juros, como mostra o escândalo da vetusta praça de Londres.
Estudos do economista francês François Morin indicam que um núcleo formado por 28 megabancos globais funciona como uma espécie de fígado do aparelho circulatório da finança no século XXI: todo o sistema passa por eles de alguma forma (http://www.ihu.unisinos.br/noticias/545323-o-oligopolio-bancario-age-como-uma-quadrilha-organizada-entrevista-com-francois-morin)
O cartel de bancos que manipulou a Libor durante anos, com implicações na estrutura de custos global, evidencia o quanto o mito da livre iniciativa tem de propaganda enganosa (Leia o especial de Carta Maior)
Essa constatação não deve ser confundida com um endosso à corrupção como se fosse uma fatalidade.
O que a cartografia capitalista do século XXI argui, porém, é a centralidade no método, nas referências e consequências de bisonhos exércitos de brancaleones que se propõem a faxinar o capitalismo, como se o desafio estrutural do desenvolvimento no século XXI fosse um caso de polícia.
Não é.
Há mais coisas entre o céu e a terra do que a vã filosofia da república de Curitiba consegue enxergar.
No rastro dos depuradores do capitalismo, alguns dotados de indisfarçável escovão ideológico, pavimenta-se frequentemente o oposto: o fortalecimento de lógicas, estruturas e interesses que convalidam justamente o que se afirma combater.
Tudo bem se isso fosse um problema de juízes megalomaníacos e de promotores que se consideram nomeados por Deus.
Porém é mais que uma ópera bufa de salvadores da pátria.
É uma tragédia que a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro nesse momento seja escrutinada por critérios tão bisonhos, incensados por uma mídia de mediocridade ímpar, empenhada acima de tudo em agilizar o abate do ‘Cecil’ que desde 2002 estorva as suas preferências eletivas na savana local.
A suposição de que existe um mercado puro --como o Deus com quem o procurador Dallagnol se comunica-- enfrenta colisões apreciáveis com a realidade do capitalismo em nosso tempo. (...). "
(Para continuar, clique AQUI).
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