Perdidamente apaixonado, Lamartine Babo vai ao encontro de seu grande amor
Por Sebastião Nunes
O trem estava parado na estação de Três Corações, depois de 18 horas desde a Pedro II, no Rio de Janeiro. Quanto tempo mais? Não sabia. Preguiça de perguntar ao fiscal. Pernas doendo. Cabeça latejando. Lalá (apelido de Lamartine) se recostou na poltrona ensebada da primeira classe, acendeu um cigarro e desabafou alto:
– O que não faz um homem por uma mulher!
De fato. Fora por uma mulher que, na véspera, comprara a passagem e, pequena maleta de roupas não mão, se metera no noturno para o interior de Minas. Tudo por uma mulher, que nem ao menos conhecia. Esperançoso, resmungou:
– Como será ela? Sei pelas cartas que é morena, alta e bonita. Mas Nair Oliveira Pimenta não é um nome bonito. Me dá um beijinho, Nair?
Lalá torceu o nariz para o nome, tragou o cigarro, soltou a fumaça pelo nariz e começou a cantarolar o maior sucesso do momento, por sinal de sua autoria:
O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, eu quero o teu amor...
EM BOA ESPERANÇA
Trancado em seu gabinete, o dentista Carlos Alves Netto suava frio.
– E agora, o que vou fazer? – desesperava-se ele. – Abriu pela décima vez o telegrama de Lamartine Babo, que releu, letra maiúscula por letra maiúscula:
“CHEGO AMANHA TARDE” Ponto “ANSIOSO CONHECER” Ponto “ABRACOS” Ponto “LAMARTINE” Ponto final. Sem nenhum sinal gráfico, para não pagar demais, que telegramas custavam o olho da cara.
– Pão-duro! – xingou alto, enfiando o telegrama amarrotado no bolso. – Naiiiiiirrr! – gritou, esquecendo que a porta estava trancada. Abriu-a com violência e gritou novamente:
– Naiiiiiirrr!
Com a língua de fora, uma garotinha apareceu na porta do gabinete.
– Olha aqui, Nair – começou o doutor Carlos. – Se chegar alguém procurando uma tal de Nair, diz que não conhece, tá bom?
A menininha de seis anos olhou para o irmão, sem entender:
– Mas vou dizer o quê, se meu nome é Nair?
– Eu sei, mas o sujeito está procurando uma Nair mais velha, de vinte e tantos anos. Diga que não conhece nenhuma Nair, tá certo? Nem diz o seu nome pra ele!
– Tá bom – deu de ombros a menininha. – Se alguém me procurar eu digo que não me conheço. É isso?
– Não, sua burra! Você não é Nair e não conhece nenhuma Nair.
– Mas se eu não sou Nair, qual é meu nome de verdade, Carlos?
NO TREM
Na estação de Viçosa, bebendo uma dose de conhaque, Lalá continuava pensando em como seria a doce e querida Nair Oliveira Pimenta.
– Morena, alta, bonita, já sei que é – murmurou ele, olhando para dentro do copo. – Mas morena de que morenice? Alta de que altura? Bonita de que boniteza?
Virou o resto do conhaque, acendeu outro cigarro e voltou para seu vagão.
– Seja como for, estou quase chegando. Mais umas cinco, seis horas e estou lá. Nair, aqui vai o seu velho Lalá. Prazer, doçura. Que tal um beijinho, hein?
A maria-fumaça se pôs em movimento, as pesadas rodas de ferro chiando nos trilhos, soltando faísca. Lamartine cantarolou:
Deus quando inventou o mundo
Fez o sol e fez a lua
Fez o homem e a mulher
Fez o amor em um segundo
Sou o sol, você é a lua
Seja lá o que Deus quiser!
NA ESTAÇÃO
O sol estava alto quando Lalá desembarcou na estação de pouco movimento. Não conhecia ninguém, claro. Olhou para os lados. Viu, no meio da pracinha em frente, um sujeito de terno, gravata e chapéu, que parecia esperar por ele.
– Não tenho nada a perder – resmungou mais uma vez. – Já que estou aqui, vamos em frente. Aquele camarada deve conhecer Nair.
– Boa tarde – disse, tirando o próprio chapéu. – O senhor é da cidade?
– Perfeitamente – concordou o outro. – Nascido e criado aqui. Só estive fora, na capital, estudando odontologia. Sou dentista. Meu nome é Carlos Alves Netto.
– Ah, bom – fez Lamartine, confuso. – Já que é assim, teria a bondade de me indicar um bom hotel?
– Pois não – disse o dentista, atencioso. – Logo ali, do outro lado da praça, está vendo? O Hotel Central é o melhor da cidade.
– Ora, quem diria! – espantou-se Lalá. – Tão pertinho!
– O senhor está chegando do Rio, não é?
– Estou – respondeu Lalá. – Como adivinhou?
– Ora, quem não reconheceria o grande Lamartine Babo? Sou seu fã!
– Obrigado – disse Lalá. – Estou com uma sede danada depois dessa longa viagem. Aceitaria beber uma cerveja comigo?
– Certamente, senhor Lamartine. Puxa vida, com o maior prazer. O melhor bar e restaurante da cidade fica também no hotel.
– Vamos lá – moveu-se Lalá, desenferrujando com alegria as pernas. – Não precisa me chamar de senhor. Lamartine tá bom. E queira me desculpar o interesse, mas por acaso conhece uma moça chamada Nair? Nair Oliveira Pimenta?
SAINDO DA ENCRENCA
O dentista ficou vermelho. Pigarreou. Passou um lenço na testa.
– Então é só Lamartine, obrigado – desconversou. – Que tal a gente beber a cerveja e conversar um pouco? Temos muito que conversar.
Só passados dois dias, sempre enrolado pelo dentista, Lalá ficou sabendo que a verdadeira Nair tinha seis anos de idade e era irmã de Carlos. Tudo não passava de uma farsa do dentista para arrancar fotos, cartas e autógrafos dos compositores que admirava. Lamartine Babo era um deles, e foi o único a fazer uma viagem por nada.
Ficou com raiva ele, Lalá? Nem por isso. Engoliu a brincadeira, tornou-se amigo da rapaziada boêmia de Boa Esperança e, alguns anos mais tarde, compôs uma bela canção que começava assim:
Serra da Boa Esperança, esperança que encerra
No coração do Brasil um punhado de terra
No coração de quem vai, no coração de quem vem
Serra da Boa Esperança meu último bem...
....
Fonte: aqui.
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