quinta-feira, 20 de agosto de 2015

ONDE MORA O AUTORITARISMO


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E a quem que interessa esse autoritarismo estatal disseminado de hoje em dia?
José Roberto Batochio —
 Lord Acton disse que "o poder absoluto corrompe absolutamente". E também se retroalimenta, diríamos. Quem exerce uma parcela minúscula de autoridade se compraz em fazê-lo e quer sempre hipertrofiá-la, aumentá-la, distendê-la. De outro lado  e isto é um fenômeno interessante , o discurso contra a impunidade, contra o crescimento exacerbado das taxas de criminalidade e pela necessidade de se estabelecerem soluções draconianas para a sua repressão, diariamente martelado pelos órgãos de comunicação social, acabou por intoxicar a opinião pública. Avassalaram-se mentes e corações, a ponto de ser certo que se fizermos hoje uma pesquisa sobre instituição da pena de morte no Brasil que é um país cristão, humanitário e pacífico por natureza , a proposta de pena de morte seria aprovada por acachapante maioria de pessoas, que obviamente não estão suficientemente informadas sobre tudo que isso significa. É curioso e desconcertante, por exemplo, que a França, que exportou os ideais de “igualdade, liberdade e fraternidade” para o mundo, tenha um dos sistemas processuais penais mais autoritários da atualidade. Ao investigado não é dado saber o que contra ele se investiga... É uma coisa terrível. A Itália também recrudesceu o rito estabelecido para a persecução penal. O episódio do World Trade Center, em Nova York, fez os EUA deflagrarem uma guerra – justificável – contra o terrorismo e disseminarem uma doutrina segundo a qual dinheiro não contabilizado, o dinheiro que circula sem controle, é mais perigoso que o próprio tráfico de drogas, porque ele pode acabar nas mãos e financiar as ações dos inimigos do Estado norte-americano. E nós fomos contaminados, por essa doutrina autoritária (veja-se o Patriotic Act do período George W.Bush. e A Lei de Defesa do Estado, do período Barack Obama). Há autoridades brasileiras que são levadas para o território de Tio Sam para serem iniciados nessa doutrina. Voltam embevecidas...
ConJur — E o que isso causa?
José Roberto Batochio —
 Você acha razoável o Maníaco do Parque ter sido condenado a vinte ou trinta anos por haver estuprado várias pessoas e matado várias mulheres, enquanto um doleiro, que remeteu divisas, a Barcelona por exemplo, ser condenado a mais de 60 anos? Quais os bens jurídicos penalmente tutelados nos dois casos e quais deles merecem proteção legal mais enfática?
ConJur — Como o senhor avalia que está o direito de defesa no Brasil?
José Roberto Batochio
  No Brasil  e no mundo , o direito de defesa está sendo, digamos assim, levado às cordas. Cada vez mais se faz esse discurso dito pragmático de que para combater o indesejável ilícito penal todas as providências são aceitáveis (o citado Patriotic Act americano admitia a tortura, por exemplo) e, para impedir que haja impunidade, é preciso reduzir o direito de defesa. Ouve-se: “Para quê tanto recurso?”, mas não se faz uma reflexão séria sobre quem são e como estão preparados os juízes de primeiro grau por este Brasil. Qual é o seu preparo humanístico, filosófico e sociológico? Qual seu grau de amadurecimento? Como se propor a eliminação de recursos ou o imediato cumprimento da pena fixada no primeiro grau, com a privação de liberdade do acusado? Ah bom, se o acusado for outro que não nós mesmos, ou uma mera abstração, tudo parece bem, asséptico e eugênico.  A realidade, porém, é outra.
ConJur — Quando, na história do Brasil, tivemos realmente o direito de defesa consolidado?
José Roberto Batochio
  Sob a égide da Constituição de 1946 até o Golpe Militar, eu acho que nós tivemos um período de democracia digno dessa conceituação.
ConJur — E depois de 1988?
José Roberto Batochio
  Esta também é uma Constituição modelar; aliás, ambas são as melhores que tivemos. Mas, mesmo depois de 1988 testemunhamos, mais que isso, protagonizamos passivamente, esses outros fenômenos autoritários a que me referi, a despeito de estarem assegurados em incisos de seu artigo 5º o devido processo legal, o direito ao contraditório e a amplitude do direito de defesa. Na interpretação das leis de hierarquia inferior, procura-se diluir essas garantias constitucionais. Até o manejo Habeas Corpus, que está assegurado na Constituição, já é objeto de restrições nos tribunais superiores.
ConJur — E o que é que o senhor pensa da operação “lava jato”?
José Roberto Batochio
  No Brasil, as investigações passaram a ter nome folclórico. Não se pode aprovar uma investigação criminal que se baseie no repudiável trinômio: “prisão de suspeito antes de culpa formada; seu encarceramento nas condições subanimalescas do sistema penitenciário brasileiro (para quebrar-lhe toda a possibilidade de autodefesa e obrigá-lo a apontar crimes de outras pessoas); e o vazamento criminoso e seletivo do que interessa aos investigadores para formar na opinião pública (ou publicada?) um ambiente favorável às medidas de arbítrio que são a seguir desencadeadas”. Esse método não é democrático nem legítimo. Prender (às vezes basta ameaçar de prender) para forçar delação não é Justiça criminal democrática. Na Justiça criminal democrática, é constatado um fato delituoso, investiga-se a materialidade, para ver se ele realmente existiu, e, a partir disso, busca-se a sua autoria, através de métodos investigativos civilizados e sem prender suspeitos por boatos de outrem. Porque prisão processual antes da sentença tem previsão, é verdade, ela é necessária em alguns casos, mas excepcionalíssimos, em situações em que se não se segregar o suspeito contra o qual se produziram indícios veementes, sérios e idôneos, de autoria, poderá reiterar a prática de crimes graves e violentos, ou embaraçar a seara das provas ou se furtar aos efeitos da decisão em perspectiva. Aliás, a prisão física, a reclusão corporal, deveria estar reservada apenas aos crimes de extrema gravidade, sobretudo aqueles que implicam violência de um modo geral. Há outras eficazes formas de resposta penal.
ConJur — Tem também quem defenda esses métodos, argumentando que se a polícia e o Ministério Público não usarem grampos e delações premiadas, e nem relativizarem o direito de defesa, o crime organizado vai tomar conta do país. Isso faz sentido?
José Roberto Batochio
  Façamos uma progressão deste raciocínio: “Se não grampearmos, se não monitorarmos, se não quebrarmos todos os sigilos, se não prendermos para depois investigar, se não prendermos suspeito para obter delação premiada, vamos ficar socialmente desarmados e o crime vai prosperar e vai acabar tudo dominando”. Em contraposição, coloque-se este outro raciocínio: “Se todos os cidadãos não tiverem nenhuma liberdade para agir, nunca haverá crime”. Valeria a pena? É uma hipótese sofista, extrema.  Conta a História que todo tirano sempre se valeu desse discurso para se estabelecer: sem respeito a nada e com todo rigor, combater a corrupção, combater o crime, combater a impunidade, caçar marajás, varrer sujeira, mãos limpas etc. Nelson Hungria ensinou, no século passado, que o crime é um fenômeno social. Seria desejável que ele não existisse? Seria. Mas, infelizmente, ele anda à ilharga da sociedade. Cabe, civilizadamente, combatê-lo para que se mantenha em índices suportáveis, essa a dura e desconversável realidade.
ConJur — Mas a solução seria não fazer nada?
José Roberto Batochio
  Também não podemos nos render à impotência. Vamos buscar, após tanto enforcamento, fuzilamento, guilhotina, sangue e morte, registrados na evolução das sociedades, soluções civilizadas, não para eliminar o crime, porque isso é tarefa impossível, mas para mantê-lo em taxas mínimas, aceitáveis. Não acabaremos com estas “sucursais do inferno” que são os presídios dos países que se esforçam pelo desenvolvimento, mas podemos fazer com que deixem de ser “sucursais do inferno” e sejam alçados a institutos de custódia de pessoas humanas em que seja respeitado o mínimo de sua dignidade. E vamos reservar essas prisões para as pessoas violentas e que realmente não estão habilitadas para conviver em sociedade. (...)."



(De José Roberto Batochio, em entrevista concedida ao Conjur - Consultor Jurídico, sob o título "Autoritarismo de ditadores hoje está em chefes de repartição, delegados e juízes". 
O criminalista Batochio "foi presidente da Associação dos Advogados de São Paulo [de 1985 a 1986], da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil [de 1991 a 1993], e do Conselho Federal da OAB [de 1993 a 1995]. Nesta entidade, ele foi responsável pelo Estatuto da Advocacia [Lei 8.906/1994], que assegurou diversas prerrogativas da profissão. A seu ver, o Estatuto da Advocacia ainda cumpre sua função, mas poderia receber atualizações pontuais".
Para ler a íntegra da entrevista, clique aqui).

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