Por Gerivaldo Neiva
Em 1936, o cantor Vicente Celestino gravou uma canção que se transformaria em um clássico de estrondoso sucesso por várias décadas: O Ébrio! É lembrada até hoje pelos mais antigos e também pelos amantes da música brasileira. Mais do que uma canção, a história do ébrio ganhou as telas do cinema em 1946 e permaneceu em cartaz por duas décadas pelas cidades do interior do Brasil.
A música retrata a história de um cantor de sucesso que teve muitas mulheres, mas que terminavam fugindo com outros homens, apesar de lhe jurarem amor eterno. Terminou se casando com uma fã, mas também essa mulher fugiu com outro homem, deixando-lhe uma filha. Assim, mesmo abalado, voltou a cantar por amor à filha, mas entrou em desgraça quando a filha morreu e entregou-se à bebida, tornando-se o “O Ébrio”.
Nos versos finais da canção, um último pedido: “Quando eu morrer, à minha campa nenhuma inscrição. Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar este ébrio triste e este triste coração. Quero somente que na campa em que eu repousar, os ébrios loucos como eu venham depositar os seus segredos ao meu derradeiro abrigo e suas lágrimas de dor ao peito amigo”.
Muitas gerações de ébrios por este Brasil afora se solidarizaram com a história desse homem e cantaram essa música com forte emoção, como se fosse a sua própria história. Aliás, mesmo os abstêmios cantaram “O Ébrio” e foram solidários ao pobre homem. Assim, pode-se dizer que os homens são, de fato, solidários a outros homens na desgraça e sofrimento causados por uma mulher. Nessa solidariedade masculina aos traídos, o álcool e a embriaguez são plenamente justificáveis e compreende-se naturalmente que um homem beba até a morte para esquecer uma traição. É como se fosse um destino trágico e inevitável.
Noutra canção mais recente, também cantada e por ébrios e abstêmios, Reginaldo Rossi narra a história de um homem que recebeu uma carta de seu grande amor avisando que iria se casar e, por isso mesmo, em uma mesa de bar, adverte ao garçom: “E pra matar a tristeza, só mesa de bar. Quero tomar todas, vou me embriagar. Se eu pegar no sono, me deite no chão”.
Mais uma vez, é marcante a solidariedade masculina aos traídos e bêbados. Absolutamente normal, portanto, que o pobre homem traído “tome” todas por motivo de sua desilusão amorosa e até caia no sono e seja deitado no chão em pleno bar. É sempre um coitado que bebeu para esquecer uma desilusão e a mulher uma ingrata e sem coração.
Por fim, para ficar apenas em clássicos da música brasileira, Waldick Soriano, também em uma mesa de bar, lamenta ao garçom amigo que a formosa dama de vermelho já lhe pertenceu, como se fosse um objeto, e agora morre de ciúmes até do perfume que ela deixa no salão. Novamente, o pedido ao garçom: “Apague a luz da minha mesa, eu não quero que ela note em mim tanta tristeza. Traga mais uma garrafa, hoje eu vou me embriagar. Quero dormir para não ver outro homem em meu lugar”.
Nesta lógica da solidariedade às desilusões amorosas dos homens, o álcool tem o papel de “reduzir os danos” das dores e (é) aceito culturalmente como solução para um momento em que é preciso fugir da realidade cruel através da completa embriaguez, desconsiderando completamente os males à saúde do usuário que o álcool pode causar. Sem esquecer, evidentemente, que sempre haverá uma carteira de cigarros e um cinzeiro nas mesas de bar.
Mais do que afogar mágoas, no entanto, o álcool também povoa o imaginário musical brasileiro como motivo de alegria, deboche e fonte inspiradora. Assim, absolutamente normal que Vinícius de Moraes tenha ao lado um bom copo de uísque durante seus shows e que Zeca Pagodinho não faça questão de disfarçar que é um amante da cerveja e que beba sem a menor cerimônia em suas apresentações. Nesses casos, o álcool encoraja e inspira o artista. Não é uma droga e nem causa mal à saúde do usuário.
Viajando bem mais longe no cancioneiro popular brasileiro, os mais antigos certamente se divertiram com a personagem de Inezita Barroso, retratado na canção “Marvada Pinga”. A mulher é uma autêntica alcoolista, pois bebe em todas as situações, seja noite ou dia, não atende os conselhos do marido e se embriaga até cair: “Eu bebi demais e fiquei mamada, eu cai no chão e fiquei deitada. Ai eu fui prá casa de braço dado. Ai de braço dado, ai com dois sordado. Ai muito obrigado!”
Até mesmo as antigas marchinhas de carnaval fazem referência à cachaça e ao comportamento de se embriagar como algo natural e divertido. Alguns exemplos: “Pode me faltar o amor (Disto eu até acho graça), só não quero que me falte a danada da cachaça”, na marchinha “Cachaça não é água”, e “Não vai dar? Não vai dar não? Você vai ver a grande confusão que eu vou fazer bebendo até cair. Me dá, me dá, me dá, oi! Me dá um dinheiro aí!”, na marchinha “Me dá um dinheiro aí”.
Além dessas canções, o leitor, certamente, há de se lembrar de várias outras em que o álcool e a embriaguez servem de consolo para homens traídos e abandonados por suas mulheres. Nessas canções, as razões das mulheres não existem e os homens são apresentados como pobres coitados que precisam afogar suas mágoas na cachaça. Para este texto, por fim, utilizei apenas exemplos clássicos da música brasileira, mas sei que os atuais sertanejos e pagodeiros também fazem muitas referências ao álcool e a embriaguez como solução para suas sofrências. [1]
Pois bem, são décadas de bebedeiras e embriaguez embalando as noites dos bêbados traídos e os sonhos dos abstêmios, que parecem se colocar em lugar deles para quando também forem vítimas de traição um dia. A canção já está pronta. Basta cantá-la e se embriagar para reduzir os danos da desilusão amorosa (de) que um dia serão vítimas. É a antecipação gostosa do sofrimento. É como colocar-se no lugar do outro por um sentimento que ainda virá, ou não.
De outro lado, mesmo que drogas declaradas ilícitas, principalmente maconha e cocaína, sejam consumidas há quase tanto tempo quanto o álcool, a presença dessas drogas na cultura musical brasileira não tem a mesma aceitação ou foram violentamente rejeitadas e marginalizadas por uma cultura etílica e preconceituosa. Da mesma forma, os artistas que fizeram referências a essas drogas em suas canções, ou que assumiram publicamente o consumo delas, são ainda hoje marginalizados e censurados como desviantes da virtude e da beleza da arte.
A pecha de “drogado” para artistas que deram contribuição fantástica para a história da música brasileira ainda é algo utilizado para desclassificar seu talento ou a qualidade de sua obra musical. Assim, por exemplo, Cazuza e Renato Russo compuseram as mais belas canções da música pop brasileira, mas apesar disso são ainda vistos por muitos como coitados que se deixaram levar pelos prazeres mundanos e pelas drogas. Cássia Eller pode ter emprestado as mais originais interpretações a letras de belas canções, mas perde tudo isso ao assumir a condição de lésbica e usuária de drogas ilícitas. Elis Regina, uma das mais belas vozes femininas do Brasil, também passa a ser vista com desconfiança quando se anunciou que teria morrido em decorrência de overdose de cocaína e, dentre tantos outros, Chorão também não passa de um drogado.
Não esquecendo, evidentemente, de outras figuras malditas para o imaginário moralista de nossa época, referidos como talentosos e de brilhante futuro, mas que entraram no “mundo das drogas”, tornaram-se pobres drogados e morreram por causa delas, como se a droga fosse a causa, e não a consequência de suas histórias de vida. Assim, deixa-se apenas os registros das trajetórias inquietantes e desafiadoras de Janis Joplin, Jimmy Hendrix, Kurt Cobain, Amy Winehouse, dentre outros.
O caso mais emblemático na recente história da música brasileira, no entanto, foi a prisão dos componentes da banda Planet Hemp. A banda foi criada em 1993 por Marcelo D2 e Skunk, fez grande sucesso e foi uma das principais bandas de pop rock dos anos 90. Seus integrantes apoiavam explicitamente a legalização da maconha e foram acusados de fazer apologia ao uso de drogas, culminando com a prisão dos integrantes da banda, em 1997, decretada por um juiz de Brasília, que também proibiu a execução das músicas da banda na capital do país.
Por ironia do destino, esse mesmo juiz foi afastado da magistratura, em 2013, sob acusação de ter recebido propina no valor de $ 40 mil para conceder a liberdade a um traficante. Na ocasião, a banda se manifestou: “Desintoxique-se! E, ao falar isso, não estamos nos referindo a nenhum tipo de substância. Desintoxique a sua percepção! Preste atenção em quem realmente diz ser a voz da justiça desse país, condenando a liberdade de expressão de forma atroz e reflita se é essa a representação que você realmente aceita para si”. [2]
E assim, recheada de hipocrisias e interesses escusos, a grande mídia brasileira encarregou-se de fortalecer este preconceito com relação às drogas declaradas ilícitas, mas nunca teve pudor algum de ganhar muito dinheiro veiculando publicidade de álcool e tabaco. Em consequência, essa forma de criminalizar usuários de drogas ilícitas terminou por disseminar tabu e preconceito absolutamente injustificáveis, incutindo na ideia da população em geral que álcool e tabaco possibilitam diversão e alegria, enquanto maconha e cocaína seriam drogas malditas e a causa de todos os males da humanidade, violência e criminalidade.
Por conta disso, resultado de meros preconceitos e tabus alimentados pela grande mídia, vê-se jovens e adultos embriagados e alterados se reportarem a skatistas que passam em frente ao bar em que se divertem como vagabundos e maconheiros; vê-se agentes da segurança pública prenderem e matarem jovens pobres e negros como perigosos traficantes; vê-se delegados de polícia indiciando, de forma caolha, uns como simples usuários e outros como traficantes; vê-se membros do ministério público agindo da mesma forma e, por fim, vê-se juízes condenando esses jovens a penas de prisão em regime fechado em penitenciária. Entorpecidos, agem como se fossem os bons disseminando suas bondades em favor de um impossível “mundo sem drogas”. Em defesa dessa “bondade”, pode-se prender, torturar e matar.
Nesta lógica perversa, finalmente, o personagem ébrio de Vicente Celestino pode beber até morrer; o personagem de Reginaldo Rossi pode se embriagar e ser colocado no chão; o personagem de Waldick Soriano também pode se embriagar e dormir bêbado para não ver outro homem com sua ex-mulher e a personagem de Inezita Barroso pode também se embriagar todos os dias, cair de bêbada e, naqueles bons tempos, ser levada para casa nos braços de dois complacentes soldados. De outro lado, os artistas que tornaram público o uso de substâncias proibidas por lei ou que as mencionaram em suas obras, são pobres drogados e, absurdamente, podem ser presos por fazerem apologia ao uso de drogas. Pior do que isso, serão eternamente malditos os que se tornaram dependentes dessas substâncias e morreram em decorrência do uso abusivo e descontrolado. Esquecem, todavia, que morreram em consequência de suas histórias de vida, suas tragédias pessoais e familiares e que as drogas apenas serviram de alívio para suas dores, ou seja, morreram de vida, e não de drogas.
Por tudo isso, uma nova percepção para a problemática das drogas passa, necessariamente, como bem dito pelos músicos da banda Planet Hemp, pela desintoxicação das mentes e pelo desentorpecimento da razão. Só assim, sem nenhum preconceito com relação aos que afogam seus sofrimentos na embriaguez, haverá compreensão e respeito aos que, no uso de sua liberdade, preferem alterar sua percepção do mundo ou enfrentar as adversidades da vida utilizando-se de outras substâncias. Neste sentido, conclui-se que a luta pela descriminalização e legalização do uso de quaisquer drogas é, essencialmente, uma luta pela democracia plena e pela efetiva liberdade. (Fonte: aqui).
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