sábado, 23 de outubro de 2021

'URUBUS'

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Filme traz uma visão inédita dos pichadores paulistanos e oferece uma das experiências mais intensas que o cinema brasileiro produziu ultimamente


Por Carlos Alberto Mattos

(A 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo começou [...] com uma oferta de 264 filmes, sendo 129 com exibição também online. Muitos novos filmes brasileiros estão na programação, um dos quais é o impactante Urubus, de Claudio Borrelli, que comento abaixo. A programação da Mostra pode ser conferida aqui. Quem quiser acompanhar minhas resenhas diárias de filmes exibidos online pode consultar o meu blog aqui.) 

Cidade do "pixo"

Com produção executiva de Fernando Meirelles no primeiro crédito do filme, Urubus é visto por seu inspirador, o pichador CRIPTA Jan, como "uma espécie de Cidade de Deus de São Paulo". A semelhança parece mesmo buscada em vários aspectos, seja na estética ágil e documental, seja na absorção radical dos modos de ser e de falar da galera retratada, seja ainda na exploração do romance entre o protagonista de periferia e uma menina de classe média. Há mesmo um personagem que atende por "Pequeno", lembrando o Zé Pequeno do clássico de 2002.

Além disso, Urubus ostenta um nível de excelência na realização semelhante ao de Cidade de Deus. A preparação dos atores por Fátima Toledo e a fotografia ao mesmo tempo crua e quente de Ted Abel se somam para oferecer uma das experiências mais intensas que o cinema brasileiro produziu ultimamente.

O filme de estreia do diretor publicitário Claudio Borrelli se baseia – com grande liberdade ficcional – em episódios da vida de CRIPTA Jan, na tela representado pelo persuasivo Trinchas (Gustavo Garcez), líder do grupo de pichadores Urubus. O roteiro se pauta por grandes cenas de impacto, a começar pelo prólogo eletrizante de 11 minutos em que os Urubus escalam perigosamente um prédio para fazer uma pichação e são perseguidos por policiais ao longo de terraços, escadarias e becos.

Depois que a pesquisadora de arte Valéria (Bella Camelo) transforma seu interesse pela arte de Trinchas em um namoro, ele comanda a reunião de vários grupos para um feito histórico real: a invasão da 28ª Bienal de SP, em 2008, para pichar um andar que expunha o vazio como arte. Essa sequência e o prólogo são momentos extraordinários em matéria de técnica, encenação e poder de sugestão.

Uma festa, o justiçamento de um vacilão, conflitos dos Urubus com um grupo rival e as consequências trágicas de uma tentativa de bater recorde na altura de uma escalada complementam a série de blocos narrativos de grande efeito. Em contraste, o bloco final parece um bocado careta com seus arranjos de final feliz.

Urubus seria apenas um ótimo filme de ação se não trouxesse também uma visão inédita do mundo do "pixo" paulistano. Lá estão os códigos de honra (não portar armas, não fazer nada que possa atrair a polícia), o "corre" do roubo de tintas, a eventual ligação com o tráfico, a disputa de territórios verticais nas paredes da cidade.

Não fica descartada uma certa romantização da pichação, encarada como uma das formas de terrorismo poético. A aproximação é feita por Valéria quando lê para Trinchas um trecho do livro Caos, compêndio de inspiração anarquista de Hakim Bey. Mesmo assim, ela se surpreende quando vê o namorado chegar a seu apartamento não pela porta, mas pela janela do seu andar alto.

Enfim, as aventuras de Trinchas e companhia transmitem à perfeição a dualidade de uma mitologia urbana que se equilibra entre a transgressão e a afirmação juvenil, a arte e o crime. Talvez não seja um novo Cidade de Deus, mas, carregado já de prêmios internacionais, tem a vocação de um marco. - (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui). 

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