terça-feira, 19 de outubro de 2021

O SUCATEAMENTO DA MEMÓRIA CINEMATOGRÁFICA NACIONAL

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Parte expressiva da história do cinema brasileiro está reunida no CTAv e, neste momento, encontra-se ameaçada de destruição por negligência do desgoverno federal, em especial da Secretaria Especial da Cultura, para a qual nada disso tem valor.


Horrores rondam

Por Eduardo Escorel

Passamos de 600 mil mortos pela Covid no Brasil. E falta completar a vacinação de cerca de 55% da população. Enquanto isso, “gatos e ratos despencam do teto na sede do Centro Técnico Audiovisual (CTAv)…”. Começa assim a matéria publicada no Segundo Caderno de O Globo há uma semana. E prossegue: “De acordo com relatos de funcionários, a realidade no edifício localizado na Avenida Brasil, no Rio, parece cenário de filme de terror: o lugar não dispõe, há décadas, de qualquer sistema ou brigada de incêndio e também não possui contratos de manutenção predial e controle de pragas.” 

Temos, pois, outra situação crítica, pior que a da Cinemateca Brasileira, em São Paulo – ambas resultantes da inépcia da Secretaria Especial da Cultura. Isso, sem esquecer outras instituições culturais não relacionadas ao cinema, como o Centro de Documentação e Pesquisa (Cedoc) da Funarte, no Rio, igualmente em situação precária, sujeita a incêndio e desabamento, conforme O Globo noticiou em agosto.

Integrado à Secretaria do Audiovisual (SAv) da Secretaria Especial da Cultura, o CTAv, embora criado em 1985, tem um acervo de filmes e fotografias cuja origem remonta ao Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), criado em 1936, sucedido primeiro pelo Instituto Nacional do Cinema (INC), a partir de 1966, e três anos depois pela Embrafilme. O catálogo de títulos reunidos na Filmoteca, publicado em 1986, permite ter uma ideia da riqueza do conjunto que deu origem ao patrimônio atual. Essa coleção incluía filmes brasileiros da década de 1960 até a de 1980, grande parte da filmografia de Humberto Mauro, cópia em 16mm e 35mm de Limite, de Mario Peixoto, produções da Vera Cruz e relíquias do período silencioso, como A Filha do Advogado (1926), de Jota Soares. Isso, além de curtas-metragens como Santuário (1951), de Lima Barreto, Kuarup (1963) e Jornada Kamayurá (1966)de Heinz Forthmann, Em Nome da Razão (1979), de Helvécio Ratton e muitos outros.


Parte expressiva da história do cinema brasileiro está, portanto, reunida no CTAv e, neste momento, encontra-se ameaçada de destruição por negligência do desgoverno federal, em especial da Secretaria Especial da Cultura, para a qual nada disso tem valor. Segundo o relato de um servidor, publicado na matéria de O Globo, “o teto, que é feito com placas de isopor e fibras de vidro, está cheio de ratos. Como não há laje, de repente cai um rato dentro de alguma sala. Já caiu até gato” – é “O horror! O horror!”, escreveu Conrad.


O caso do CTAv é especialmente grave porque, ao contrário do que ocorre com a Cinemateca Brasileira, não parece haver mobilização alguma da comunidade cinematográfica no Rio em defesa não só da preservação do patrimônio reunido na Avenida Brasil, como da recuperação de condições dignas de trabalho para os servidores. Como aceitar isso?


Para mim, o risco a que estão expostos os filmes preservados no CTAv é uma questão pessoal. Foi nas dependências do Ince, no final de 1962, que iniciei meu aprendizado de cinema ao fazer o curso ministrado por Arne Sucksdorff, promovido pela Unesco e o Itamaraty. Publiquei uma série de textos sobre esse curso neste site, em outubro e novembro de 2012. Não creio ter me referido, na ocasião, aos filmes guardados no mesmo prédio em que assistíamos às aulas, mas creio ter mencionado a presença diária na sala ao lado de Humberto Mauro, a quem os jovens presunçosos que éramos não dávamos a menor bola (diga-se mais ainda em nosso desfavor que Mauro, na época prestes a se aposentar, tinha apenas 65 anos). 

 

Custei a descobrir ao menos alguns dos filmes preservados ali, ao alcance da mão, enquanto transcorria o curso – coisa de adolescente cheio de si, mais interessado na época em Truffaut, Godard e o cinema direto do que nos pioneiros do cinema brasileiro. Passados 56 anos de carreira profissional, porém, ao folhear o antigo catálogo da Filmoteca da Embrafilme, vejo relacionados vários filmes que dirigi, hoje depositados no CTAv, um dos quais, inclusive, ressuscitei há pouco ao digitalizar o negativo original. Daí considerar que o abandono criminoso do CTAv me diz respeito de maneira direta.


A série mencionada de textos sobre a Missão Sucksdorff é baseada, em grande parte, na pesquisa feita a meu pedido, pouco antes, na sede da Unesco, em Paris, por Dominique Paris, editora e amiga. Sem dificuldade ou demora, mesmo passados quarenta anos, ela teve acesso à documentação pertinente que fotografou e me mandou. No Brasil, porém, consultas feitas no arquivo do Itamaraty foram infrutíferas. Até que, passada quase outra década, recebi um e-mail, em julho deste ano, de um pesquisador interessado no assunto dizendo que “sem estar procurando o tema” tropeçou “na caixa com o material”. E completou: “Achei escasso e burocrático, mas para você talvez possa ter um valor.”


De fato, na primeira leitura, os documentos contidos em duas pastas me pareceram pouco relevantes. Porém, ao voltar agora a esses vestígios percebo como são reveladores, em especial à luz do tratamento destrutivo dado à cultura pelos atuais gestores federais de plantão. A papelada mostra com clareza iniciativas da Secretaria de Estado das Relações Exteriores, tomadas em 1962, que parecem ter sido adotadas em outro planeta pelo simples fato de reconhecerem a importância do cinema brasileiro e respeitarem seus criadores.


Além de providências diversas relativas à Missão Sucksdorff, incluindo, por exemplo, ofício ao Ilustríssimo Senhor Epaminondas Moreira do Valle, Inspetor da Alfândega do Rio de Janeiro, solicitando que “facilidades aduaneiras sejam também concedidas com relação aos filmes virgens que o cineasta sueco Arne Edvard Sucksdorff trará temporariamente ao Brasil”; telegrama dirigido a Orlando Senna, em 18 de outubro de 1962, do Departamento de Turismo de Salvador, rogando informar “possibilidade inclusão cineasta Sucksdorff júri I Festival de Cinema da Bahia garantindo hospedagem transporte aeroporto cineasta, esposa, representante Itamaraty”; telegrama de Paulo Estevão de Berredo Carneiro (pai de Mario Carneiro), da Delegação Permanente do Brasil junto à Unesco, informando que “somente em 1963 poderei obter o reembolso pela Unesco dos 4 mil dólares eventualmente gastos pelo governo brasileiro na aquisição da ‘cutting table’ Steenbeck”.


Além dessas minudências, reveladoras de uma época, a papelada contém ainda informações precisas sobre o equipamento de filmagem e iluminação trazido por Sucksdorff; um telegrama dirigido a Linduarte Noronha avisando que o curso havia começado, “rogando partir para o Rio com urgência”, garantindo hospedagem e pedindo para avisar Rucker (nem Linduarte nem Rucker Vieira vieram fazer o curso); carta do meu pai, então chefe do Departamento Cultural e de Informação do Itamaraty, dirigida a Maurice Capovilla, do Departamento de Difusão da Cinemateca Brasileira, acusando o recebimento “de seis filmes documentários da escola inglesa destinados ao Curso de Cinematografia do cineasta Arne Sucksdorff”; e memorando da Cinemateca Brasileira, assinado por Antonio Candido e Paulo Emílio, tratando, entre outras questões, da indicação de Vladimir Herzog, Carlos Henrique Escobar e Schubert Magalhães para fazerem o curso.


Os documentos finalmente localizados, apesar de incompletos, revelam também planos que podem ou não ter sido concretizados. É o caso tanto de uma exibição privada de O Pagador de Promessas para o presidente Kennedy, prevista para antes de 31 de outubro de 1962, em plena crise dos mísseis entre os Estados Unidos e União Soviética, como também, em agosto do mesmo ano, do “almoço de 40 talheres, na Sala dos Índios” em “homenagem aos artistas de O Pagador de Promessas”, após o filme ter recebido a Palma de Ouro no Festival de Cannes. 


Além do produtor, diretor, autor da peça, ator e atriz principais, a lista de convidados incluía o presidente do Geicine (Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica), presidentes de entidades culturais e vários críticos de cinema. A anotação manuscrita do ministro Afonso Arinos, feita na margem do texto datilografado, porém, permite supor que a homenagem não chegou a ser realizada. Arinos escreveu: “Creio que já passou a oportunidade”, desconsiderando a autorização prévia de seu antecessor, San Tiago Dantas, para anunciar que “o Itamaraty ofereceria um banquete ao produtor, diretor e artistas de O Pagador de Promessas para comemorar o grande acontecimento.”


                Cena do curta-metragem Engenho e Usinas (1955)     

 

A fotografia de Zequinha (1921-2002), filho mais velho de Humberto Mauro, que acompanha este texto, da qual ele me deu uma cópia, reproduz um plano do curta-metragem Engenho e Usinas (1955) da série Brasilianas. O diretor está de costas, sentado ao lado do imenso tronco da árvore centenária. Mauro observa o horizonte ao amanhecer. Há doses equivalentes de nostalgia e tenacidade nessa imagem. Precisamos de ambas para suportar o horror.  -  (Fonte: Revista Piauí - Aqui).

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