.
"Trump não é o inimigo. Esse alvo é muito pequeno e limitado. A classe a qual ele pertence é nossa inimiga, bem como o sistema de privilégios que ele passou os últimos quatro anos sustentando e que seu sucessor defenderá assiduamente."
Por Jonathan Cook
É um fim adequado para quatro anos de Donald Trump na Casa Branca.
Por um lado, os infindáveis conflitos políticos de Trump – e alegações de que a eleição presidencial de novembro foi “roubada” dele – acabaram com uma multidão invadindo o Capitólio dos EUA. Invadiram com a baixa esperança de interromper o processo de certificação dos votos do colégio eleitoral, que declararam formalmente seu opositor, Joe Biden, como o ganhador.
Por outro lado, o Partido Democrata instituiu um segundo processo de impeachment, com uma esperança um pouco menos baixa de que Trump deixasse o cargo humilhado e desgraçado, acabando com qualquer possibilidade de que ele concorra à presidência novamente em 2024.
Quase sem conseguir esconder sua aliança com a próxima administração Biden, o Vale do Silício desligou o megafone midiático de Trump. Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Deputados, fez lobby com chefes de gabinete para tirar um Trump “desequilibrado” da cadeia de comando, em uma movimentação que foi supostamente rejeitada por oficiais do Pentágono porque, como disseram ao The New York Times, configuraria um “golpe militar”.
E Biden, que se gaba de ter sido o autor da Lei Patriota anos antes do 11 de setembro, vem divulgando uma nova lei de “terrorismo doméstico”, como se os EUA já não tivessem diversos meios de reprimir discordâncias, tanto legitimamente quanto ilegitimamente.
Tendo isso como pano de fundo, Washington designou a posse de Biden como “um evento especial de segurança nacional”.
Tribos autoritárias
Tudo isso não é somente o último sinal de um sistema político estadunidense que degenerou para um teatro de mau gosto. É evidência crescente de que a política dos EUA está evoluindo para um confronto permanente entre duas tribos autoritárias. Ambas estão convencidas de que o outro lado não é patriota, pervertendo a verdadeira república. Ambas não estão dispostas a se comprometer, acreditando que não partilham de um consenso. E, por fim, ambas estão lutando por uma causa apodrecida.
Essa não é uma divisão entre política ética e antiética. Esse choque é, agora, uma partida de ódio. É uma guerra civil por outros meios. O abismo entre esses dois campos rivais não está somente ficando maior, os verdadeiros criminosos estão fugindo com o saque – como sempre fazem.
Cada tribo vem se fundindo há um tempo ao redor de um centro de gravidade. No lado Republicano isso ficou claro com o surgimento do movimento “Tea Party” e do movimento “birther” durante o mandato de Barack Obama. Mas foi necessária a eleição de Trump em 2016 para criar o centro de gravidade de oposição adequado do outro lado.
As pessoas na tribo Democrata que agora desdenham de Trump e seus apoiadores pela sua recusa desesperada em aceitar o resultado de novembro, ignoram como eles mesmos receberam a vitória de Trump em 2016. Eles demoraram para aceitar a legitimidade desse resultado também, embora não tenham optado pela violência da multidão no Capitólio.
Começaram com argumentos de que, ao passo que Trump pode ter ganhado os votos do colégio eleitoral, ele perdeu o voto popular. Quatro anos atrás, o colégio eleitoral também encarou acusações de que havia “deserdado” a maioria.
A tribo Democrata foi às ruas também, em marchas nas cidades ao redor dos EUA sob o slogan de resistência, negando que Trump era seu presidente. Aquilo foi compreensível, tendo em vista o comportamento pessoal de Trump e as políticas que ele defendia. Mas não acabou aí.
Conspirações russas
O repúdio à presidência de Trump rapidamente regrediu para uma perigosa narrativa – uma que provavelmente nunca foi embora, mesmo com a falta de evidências para apoiá-la. A alegação não era somente que os russos interferiram na eleição de 2016 para ajudar Trump a ganhar, mas que o próprio Trump ativamente conspirou com a Rússia para roubar a eleição da sua oponente, Hillary Clinton.
Tudo que prejudicou Clinton – incluindo e-mails mostrando que a liderança Democrata manipulou suas próprias primárias para garantir que ela fosse a candidata do partido ao invés de Bernie Sanders – foi sugado para essa vasta teoria da conspiração. Isso incluiu o mensageiro dessas marés ruins: o Wikileaks e seu fundador Julian Assange.
Por anos, a tribo Democrata investiu suas energias em esforços infrutíferos para provar sua teoria, incluindo a primeira tentativa de remover Trump por meio de um processo de impeachment totalmente autodestrutivo.
Nada disso poderia ser justificado politicamente. Foi um contraponto Democrata ao slogan MAGA de Trump: “Make America Great Again” (Tornar a América Grande Novamente). Os Democratas prometeram um slogan muito menos cativante: “Salvar a América de um Presidente Deplorável”.
Tango antagonista
Para essa tribo, Trump era um presidente ilegítimo desde o primeiro momento, cuja eleição para o cargo mais alto na nação revelou algo doentio sobre seu país que eles preferiram ignorar, pois poderia implicá-los, também. A vontade de remover Trump eclipsou amplamente a luta pela melhora das vidas de estadunidenses comuns.
A obsessão por Trump acima de tudo convenientemente racionalizou todas as formas de se livrar dele – sejam justas ou não. Poucos pensaram sobre como isso iria parecer para seus apoiadores ou para aqueles que ainda não estavam seguramente resguardados em uma tribo ou na outra.
Se eles quisessem entender, bastava observarem a invasão do Capitólio recentemente. Como eles se sentiram assistindo o prédio ser saqueado – com um Deplorável colocando os pés na mesa de Pelosi – foi como a tribo de Trump se sentiu assistindo seu presidente ser denunciado como um agente russo e arrastado por procedimentos de impeachment.
É improvável que esse clima desapareça. As duas tribos políticas estão presas em um tango antagonista, refletindo os próprios movimentos, rancores e senso de vitimização. Muito mais coisas os unem do que eles gostariam de admitir.
Guerras culturais inflamadas
Essa pode ser a patologia, mas qual é a causa?
O que vemos aqui é a culminação de uma cultura bélica inflamada alimentada por investimentos doentios de ambos os lados em uma política identitária altamente desagregadora e simplista.
Muito tem se falado corretamente sobre o supremacismo branco das seções mais leais da tribo de Trump, o que ficou à mostra novamente durante a invasão do Capitólio. A bandeira dos confederados, os slogans neo-nazistas, as camisetas enaltecendo a supremacia judaica de Israel são todos indicadores de uma política tóxica de rancor branco que pode ser menos articulada, mas que ainda é sentida por uma grande porção dos constituintes apoiadores de Trump.
A política identitária feia é rejeitada com razão pela outra tribo, mas é, todavia, refletida em seu compromisso igualmente profundo com a política identitária. A coalizão progressiva de identidades no coração do Partido Democrata pode ser mais reconfortante para as sensibilidades modernas, mas serviu na prática para acentuar em partes da tribo de Trump a suposta ameaça à sua identidade branca.
Nada disso pretende se igualar à justificada luta do Black Lives Matter contra o racismo endêmico, incluindo a polícia, com as forças reacionárias buscando preservar alguma noção de privilégio branco. É simplesmente observar que quando o campo de batalha político exclusivamente gira em torno da identidade, então ninguém há de se surpreender se cada lado continuar a enquadrar sua luta precisamente nesses termos.
Aqueles que vivem pela espada da identidade são mais propensos a morrer por essa mesma espada.
A tribo Trump quer seu presidente e o Partido Republicano de maneira geral para garantir uma supremacia branca que eles temem estar sendo destruída ao passo que o Partido Democrata ostenta suas credenciais progressistas e multiculturais. A tribo Democrata, enquanto isso, quer desafiar a ordem antiga – e mais especificamente instituições reacionárias como as forças policiais locais – que têm sido um bastião contra a mudança.
Essa dinâmica só pode levar à um confronto permanente, alienação e ressentimento.
Luta de classes
Há um caminho para fora da cultura bélica que coloca uma tribo contra a outra. Que é formular uma política popular alternativa baseada na luta de classes – os 99% contra o 1%. Mas nem as lideranças Republicanas, nem as Democratas, ou as respectivas mídias que as celebram, têm interesse em encorajar um realinhamento político do tipo.
O Partido Democrata não é um veículo para a luta de classes, afinal. Como o Partido Republicano, é feito para preservar os privilégios de uma elite. Seus maiores doadores, como os Republicanos, são extraídos de Wall Street, Vale do Silício, Big Farma e das indústrias de armas. A batalha política nos EUA é entre dois lados do capital mais unidos do que divididos.
O jogo de sombras da política estadunidense é a confrontação antagonista e debilitante de identidades descrita acima. Enquanto estadunidenses comuns são incitados pela mídia corporativa a entrar em um ódio tribal mútuo que lucra com esse teatro do ódio, a elite goza de liberdade para saquear o planeta e os comuns.
Enquanto nos fixamos em identidades que foram produzidas para nos dividir, enquanto permanecemos imersos na superfície da política, enquanto estamos alienados das verdadeiras frentes de batalha, essas elites prosperam.
A paralisia política pode não prejudicar o establishment. Mas é profundamente prejudicial para nós, o 99%, quando nossas comunidades estão sendo varridas por uma pandemia, quando nossas economias estão colapsando, quando o planeta está à beira de um colapso ecológico.
Precisamos de um sistema político funcional que reflita as prioridades populares, como o “Medicare for All”, um salário-mínimo digno e universidades públicas; que entenda a urgência dos desafios impostos pelas múltiplas crises; e que possa organizar e direcionar nossas energias para soluções, não para confrontos infindáveis e insolúveis baseados em discordâncias que têm sido cultivadas para nos enfraquecer.
Trump não é o inimigo. Esse alvo é muito pequeno e limitado. A classe a qual ele pertence é nossa inimiga, bem como o sistema de privilégios que ele passou os últimos quatro anos sustentando e que seu sucessor defenderá assiduamente.
Se Trump será condenado ou não no Senado, o sistema que o produziu será absolvido – pelo Congresso, pelo novo presidente, por Wall Street, pela mídia corporativa.
Somos nós que pagaremos o preço. - (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).
Nenhum comentário:
Postar um comentário