domingo, 20 de outubro de 2019

A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO OU 'A VOZ DAS RUAS'?


"'Vim como amigo da Corte e não como inimigo, pois isso a Corte já tem demais.' A frase do professor Lênio Streck, que causou risos no plenário foi uma entre as várias máximas dos advogados que se sucederam na tribuna do Supremo Tribunal Federal na última quinta-feira (17), como representantes dos autores ou dos amici curiae nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade nºs 43, 44 e 54, que discutem a eficácia do art. 283, do Código de Processo Penal, diante do princípio constitucional da presunção de inocência.
A linha jurídico-teórica adotada pelos advogados não trouxe novidades. Justamente porque não há, de fato, nada de novo a ser dito sobre um texto que é, ele mesmo, óbvio de significado e de sentido, que possui historicidade e esteio, inclusive, em diplomas de direito internacional. É um paradoxo pensar ser inconstitucional um artigo que realiza a Constituição, como afirmou o professor Maurício Dieter, que representou o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCcrim.
A exigência de se obedecer a força normativa da Constituição esteve, direta ou indiretamente, em todas as falas. Mas a singularidade das explanações se deu no plano jurídico-político do método discursivo, e nesse cuidaram os oradores de desmontar os argumentos que vem sendo adotados, não apenas no STF e nos demais tribunais, mas na mídia e em vários espaços de disputas na sociedade, para dar sustentação à execução provisória da pena, centrados, sobretudo, no discurso de combate à corrupção e da expectativa da sociedade ou, como se costuma dizer, da opinião pública.
Como o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, que, falando pelo PCdoB, autor na ADC 54, centrou sua alocução na falência da política criminal e nas escolas de crimes que são nossas cadeias, também os representantes da Defensoria Pública lembraram que essa mesma Corte já reconheceu o estado inconstitucional do sistema prisional brasileiro, e que a restrição da liberdade recairá sobre seus clientes preferenciais, que são os mais desprovidos de recursos. O mesmo foi dito pela única mulher e única negra a ocupar a tribuna. Silvia Souza, representando o Conectas Direitos Humanos, afirmou que o debate sobre a relativização de um princípio tão significativo ocorre como se fosse atingir os chamados “criminosos de colarinho branco”, quando incidirá, de fato, sobre os negros e pobres que compõem, em larga maioria, o sistema carcerário.
A exigência de que o Supremo Tribunal Federal exerça sua posição contra majoritária e não seja seduzido pelo clamor público, comoção ou indignação social, deu a tônica de muitos argumentos apresentados que, ainda, refutaram estatísticas falsas e mirabolantes de números de réus a serem soltos, e a pregação de que o julgamento visa prejudicar a operação Lava Jato, ou favorece o uso indevido do modelo recursal.
É evidente que a decisão em controle concentrado de constitucionalidade, que suprima ou relativize a aplicação de um dispositivo do Código de Processo Penal, que se esteia em um princípio consagrado no texto de 1988, permitindo a execução de pena quando há recursos pendentes, simboliza um imenso retrocesso social e histórico. Nesse sentido, significativo que o julgamento a ser proferido pelos juízes da nossa suprema Corte tenha sido precedido pelas brilhantes ponderações que, cada uma a seu modo e estilo, abordaram todos os aspectos aptos a contrapor a possibilidade de inflexão regressiva de um direito e garantia, que se vincula às liberdades fundamentais do indivíduo.
Muito foi dito ao Supremo Tribunal Federal que o pedido é apenas e tão somente para que cumpra a Constituição o que, nos dias de hoje, diante da conjuntura que temos, como asseverou o advogado Kakay, é um ato revolucionário."


(De Tania Maria de Oliveira, texto intitulado "Sustentações no STF: A força normativa da Constituição ou 'a voz das ruas'?", publicado no Jornal GGN - Aqui.

Tania de Oliveira é integrante da ABJD - Associação Brasileira de Juízes pela Democracia.

Nota: O assunto em tela já foi abordado no post "O que disseram os amigos da Corte sobre a prisão após segunda instância" - Aqui -, de 18.10.19, mas vale a pena retornar a ele, dada a relevância da matéria).