Por Álvaro Miranda
Logo após sair da sessão de Bacurau neste domingo recebi pelo whatsApp texto baixando pau no filme. Em resumo, de forma elegante, o autor criticava a narrativa “de esquerda” que estaria reproduzindo comportamentos, discursos, pleitos e valores de quem ela mesma, esquerda, denuncia. E, mais ainda, que o filme não apresenta proposta alguma de alternativa para a situação denunciada.
Ora, a arte não está aí para propor soluções para os problemas, tarefa que pode ficar nas mãos da política e da ciência. Isso, ainda que consideremos esta última mais como caminho para indagações visando à compreensão dos fenômenos, deixando a arrumação e desarrumação das coisas do convívio humano para o “animal político”, expressão genial de Aristóteles lá no quinto século antes de Cristo.
Claro que a arte pode, sim, de maneiras transversas, intuitivas ou mesmo expressas, sugerir soluções para os problemas da sociedade. Porém, não é essa sua função primordial, que, a meu ver, tem a ver com o alargamento da vida em suas possibilidades imprevisíveis sem imposição de propostas fechadas.
Ou seja, que a arte deixe para a fruição, em sua recepção individual e coletiva, os movimentos e potencialidades da criação. A arte é criar e sugerir criações em suas imponderáveis leituras. Alargar a vida – e não resolvê-la.
Aqueles que querem uma nova forma de fazer política, por exemplo, contemporizando, sem violência, com a violência dos outros, ou estão aceitando a violência dos outros em seus amavios discursivos porque ela não o atinge, ou sua miopia histórica não consegue fazer compreender as lutas de classes, no plural, como motor da história.
Lutas de classes no plural porque, conforme Marx apontou no século XIX (e atualíssimo nos dias que correm), não se trata apenas de um tipo de luta de classes entre seres humanos ricos e pobres, de forma abstrata e geral em todos os lugares. Por exemplo, entre ricos detentores dos meios de produção e proletários despossuídos. Mas, sim, diferentes configurações dessas lutas, dependendo dos atores envolvidos, das condições em seu território e das institucionalidades construídas, formais e informais.
O texto que recebi dizia que o filme criticava o distópico, mas com uma postura também distópica por conta da solução no enredo pela violência. Percebi na plateia o desassossego – e o mexe de lá e de cá nas poltronas sinalizou, para minha intuição, que muitos ali não estavam compreendendo o filme. Muitos jovens e adolescentes mais acostumados com entretenimento de misturar pipoca à desatenção para as entrelinhas da história.
Afinal, toda arte traz sempre subtextos em seus enunciados, elementos esses que repercutem de forma imprevisível na recepção de cada telespectador, leitor, ouvinte ou visitante de museus. A arte não se faz para dizer diretamente as coisas, mas de forma oblíqua e surpreendente.
O autor do texto criticava também a escolha por Geraldo Vandré na trilha sonora, mas não aprofundou os motivos pelos quais o filme misturou esse ícone de protesto dos anos 60/70 ao pop romântico e outros gêneros contemporâneos. Arrisco então o seguinte: alguns críticos que se pretendem “avançados”, com uma predisposição dita “pós-moderna”, sempre têm uma tendência a ver o passado como passado, desconstruindo a imbricação necessária e inevitável dos tempos sobrepostos.
Existem maneiras de lutas imprevisíveis, para além da formalidade legislativa da democracia liberal. Isso não significa compactuar com a anti-política criminosa de milicianos ou de hipócritas que demonizam a própria política parlamentar, classificada por estes como “velha política”. Essas formas imprevisíveis surgem em contextos específicos, conforme as determinações locais.
Além disso, para aqueles que acreditam no “passado” já passado exigindo novas formas de vida, arrisco a dizer também que vozes silenciadas não significam vozes mortas. Estas podem emergir de volta dependendo das condições da dinâmica dos conflitos. Analogamente, daí que Aristóteles é atualíssimo, assim como Marx e Geraldo Vandré. E, mesmo considerando a inevitabilidade da política, não vou deixar de querer uma iê-iê-iê romântico e apaixonado.
Para concluir, mas nunca pretender esgotar o debate, pode-se dizer que drones e celulares, em sua violência simbólica ao lado da violência física, encarnam hoje, como ícones enganadores e fetichistas, as contradições das lutas de classes no capitalismo em sua busca de novos territórios – expansão essa inerente a esse sistema.
O problema é que os territórios estão ficando velhos e conhecidos com a globalização, e não a percepção das contradições de sua expansão. Sim, não queremos mortes de pessoas – mas parece que as grandes forças hegemônicas do capitalismo globalizado não estão nem aí para as vidas de populações do fim do mundo. Ou o oeste de Pernambuco não seria o fim do mundo para essas forças hegemônicas? - (Fonte: Portal Disparada - Aqui).
(Álvaro Miranda é jornalista, mestre e doutor pelo Programa de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da UFRJ).
(Álvaro Miranda é jornalista, mestre e doutor pelo Programa de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da UFRJ).
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