sábado, 9 de março de 2019

ZÉ DE ABREU, CAPITÃO RODRIGO E A REBELDIA NECESSÁRIA


"Em certos aspectos, com tanta mentira a circular, propagada pelas hostes (neo)liberais, reacionárias e vende pátria, com tantas informações distorcidas, senão mesmo inventadas, negativamente surpreendentes, produzidas pelos próprios agentes integrantes ou associados ao governo de Jair Bolsonaro, convenhamos, o nosso Brasil parece estar mergulhado em uma ficção muito ruim. Inacreditável e de péssimo gosto.
Considerando, então, a engenhosa ironia apresentada pelo ator José de Abreu, que anda nos últimos dias a desqualificar, com profundo senso de oportunidade e pertinência, a Juan Guaidó (deputado que se autodeclarou “presidente da Venezuela”), Abreu decidiu se “autodeclarar presidente do Brasil”. Na esteira do rebelde gesto crítico/cômico do grande ator, exploremos, pois, ficção boa para tentarmos pensar o Brasil.
José de Abreu. Uma figura simpática, ator talentoso, prestigiado entre os seus pares, experiente, conhecido do grande público. Em que pese tantos atributos, vale lembrar que um importante personagem – dos mais conhecidos entre as suas interpretações televisivas – correspondeu a um dono de venda, um dono de birosca, na versão televisiva de “O tempo e o vento”, obra literária de Érico Verissimo. O personagem, Juvenal Terra, era cunhado do irrequieto e valente Capitão Rodrigo.
Me parece que os personagens Juvenal Terra e Capitão Rodrigo servem como arquétipos, “tipos ideais”, ao modo do sociólogo Max Weber, para exercitamos reflexão em torno do Brasil de hoje, seus dilemas e desafios. Senão, vejamos.
O tempo brasileiro, a ordem de problemas que caracteriza as dificuldades experimentadas pelo País, sejamos francos, requer práticas, visões e predisposições comportamentais distantes dos costumes políticos convencionais, digamos, costumes compatíveis com a conversa de porta de bar, com o apaziguamento de conflitos no botequim, com as transações correntes e razoavelmente pacificas de interesses. Com efeito, não é tempo para Juvenal Terra.
O nosso tempo requer a circulação de um vento de natureza revolucionária. Vento que tem a face e o assobio do Capitão Rodrigo. As classes dominantes domésticas, apátridas, entreguistas, aliadas e subalternas ao capital internacional, ao imperialismo estadunidense, não vão deixar o Brasil em paz. Não vão permitir a realização das suas reais possibilidades, suas potencialidades. A meta é reconfigurar para baixo – ainda mais! – o padrão de inserção da economia brasileira na divisão internacional do trabalho.
Dependência tecnológica e econômica cavalar. Colonialismo aberto. Entrega de todo patrimônio e recursos naturais. O horizonte capitalista mundial não é alvissareiro, em função da escassez crescente de bens naturais, devido também à mudança climática. O imperialismo, Estados Unidos à frente, almeja e organiza suas ações geopolíticas visando o controle férreo desses recursos. O direito à autodeterminação dos povos abertamente rejeitado.
Ademais, essas classes dominantes internas e transnacionais querem escravizar o Povo Brasileiro, anular a sua memória, desmerecer e apagar a sua cultura, colonizar de vez o Pátria. Pouco importa quem seja o odiento político da vez a representá-las, como o faz Bolsonaro no presente momento. De sorte que o tempo brasileiro está demandando, muito além do espírito pacificador do “dono da venda”, uma saliente veia inquieta, insurrecional e ousada, de ruptura, como tipificava o perfil do célebre personagem Capitão Rodrigo. Espírito rebelde, muito mais do que a pacificação negociadora do modesto proprietário da venda na praça.
Trata-se de dura, aguda e indisfarçável guerra de classes promovida pela cúpula da hierarquia social. Retirar todos os direitos possíveis e à disposição que ainda usufruam frações do Povo Brasileiro. Mercantilizar tudo. Escravizar e marginalizar, senão todos, a maioria esmagadora dos que ora se encontram entre os estratos assalariados portadores de direitos formais.
Reduzir à absoluta atomização e ao desalento, o grosso dos trabalhadores, do funcionalismo público e de faixas da pequena burguesia proprietárias de pequenos e médios negócios. Estas fecharão suas portas com minguados consumidores. Engrossar as amplas camadas de marginalizados e oprimidos, favelizados, sem direitos, sem vozes, subsumidos pelo desemprego e o subemprego crônico.
A fome e a “ninguendade”, a que se referiam e denunciavam os grandes Josué de Castro e Darcy Ribeiro, como indecentes e injustas realidades descortinadas para praticamente todo o Povo Brasileiro! Destinos preconizados, de maneira sádica, pelos Temer, Bolsonaro, Guedes e Meirelles da vida política do País.
Novos perfis de organizações populares, de exercício de engenhosos e inovadores meios de mobilização e politização coletiva, novas formas de atuação política e protesto social, que incorporem, em suas perspectivas, iniciativas e estratégia, a dura realidade de uma ordem neocolonial/rentista, que emerge dos escombros do violado pacto assimétrico interclasses da Constituição de 1988.
Sem essa reorganização nada mudará. Menos ainda sem assimilar um espírito rebelde, como o que caracteriza o expressivo e destacado personagem da pena de Érico Veríssimo, o Capitão Rodrigo. Não é, pois, tempo para a serenidade e a conciliação de Juvenal Terra."

(De Roberto Bitencourt da Silva, post intitulado "Zé de Abreu, Capitão Rodrigo e a rebeldia necessária", publicado no GGN. Bitencourt é cientista político e historiador.

A propósito, clique AQUI para ver "Presidente Zé de Abreu retorna ao Brasil").

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