quarta-feira, 25 de abril de 2018

UM POUCO DE HISTÓRIA: O PERIGO DAS CRUZADAS SALVACIONISTAS


O Mahadi e a tragédia histórica das cruzadas salvacionistas

Por André Araújo

Mohamad Ahmad foi um líder político e religioso do Sudão no Século XIX. Um pregador de notável capacidade oratória, se apresentava como o “salvador” do povo sudanês, naquela época um domínio britânico controlado pelo “Sirdar”, o comandante do exército anglo-egípcio com base no Cairo e capital política em Khartoum, cidade às margens do Nilo e que era a capital do vasto território conhecido como “Kordofhan”, correspondente ao centro do Sudão.

O “Mahdi” foi magistralmente representado no cinema pelo maior ator inglês do Século XX, Sir Lawrence Olivier, no filme “Khartoum”, que é a epopeia sobre a trajetória do “Mahadi” no tempo histórico real, um personagem que representa com precisão o movimento das cruzadas “salvacionistas” com soluções simples e erradas para países em crise. De matiz religioso, o movimento mahadista era também político e se apossou do Estado sudanês.

Mohamad Ahmad tomou o poder em Khartoum, cidadela do Exército britânico e centro do poder no Kordofhan, em 1884, matando o General Charles Gordon, Governador Geral do Sudão, expulsou os ingleses do vasto território, o “mahadismo” governando o País por 8 anos deixando no seu no seu rastro a fome, o desgoverno, o desmonte de todas as estruturas institucionais, a expulsão de suas elites políticas, fazendo o País retornar ao tempo das cavernas. A solução “salvacionista” vinda para expulsar toda a corrupção resultou numa implosão de todo o sistema organizado de Governo, com repercussão histórica que fez o Sudão retroagir séculos e cujos efeitos devastadores repercutem até hoje na configuração de um território convulsionado e desorganizado, recentemente repartido em dois Países.
O território dominado pelo “mahadismo” foi recuperado por uma grande expedição militar chefiada pelo célebre General Herbert Kitchener, depois Ministro da Defesa britânico  na Primeira Guerra Mundial e dessa expedição participou como oficial de cavalaria o jovem Winston Churchill, que descreveu a batalha de reconquista do Sudão, a Batalha de Omdurman, em seu primeiro livro de memórias, “MINHA MOCIDADE”, traduzido para o português por Carlos Lacerda, republicado dezenas de vezes no Brasil, com reedição recente.
Uma expedição anterior (1882) de soldados egípcios, com 7.700 homens e comando de oficiais britânicos, foi facilmente vencida pelo “mahadistas”, tendo a expedição perdido na derrota milhares de rifles, que armaram agora os rebeldes, antes apenas com lanças.
A expedição Kitchener (1892) foi muito maior, 26.000 soldados, sendo 8.600 ingleses, cavalaria acompanhada por artilharia e barcos artilhados seguindo em flotilha pelo Nilo, venceu em horas os “mahadistas” com a morte de 11.500 de seus fiéis, recuperando o controle do Kordofhan e enterrado o movimento “mahadista” que se espalhara pelo Sudão.
A CRUZADA SALVACIONISTA
Onde se aplica a lição do Mahadi no Brasil de hoje? O Mahadi tinha como bandeira combater a corrupção e o pecado, iria “salvar” o Sudão de suas mazelas porque ele era o único “puro”, isento do pecado, um “ficha limpa”. Essa era sua mensagem, que cativou os sudaneses, conquistou adeptos fanáticos e fiéis à sua pregação, assumiu o poder, matou dezenas de milhares de “impuros”, entre os quais incluía toda a estrutura governamental, acabou com a agricultura porque os fazendeiros eram para ele também “impuros”, deixou um legado de miséria, morte e destruição do qual o Sudão não se recuperou até hoje, o preço da salvação foi como sempre muito alto, o “salvador” cobra caro pelos seus serviços.
O “salvador” promete milagres e tem uma excepcional capacidade de convencimento. É um perigo para qualquer Democracia, porque é bom para ganhar a eleição, mas não tem a mínima capacidade de governar, não tem educação, preparo, experiência, conexões, equipe, e não tem como entregar o que promete. Para se manter no poder que conquistou com sua capacidade de convencimento precisa encontrar adversários fáceis, que ele combate, unificando o povo e identificando um inimigo de simples caracterização contra o qual centra sua campanha, um inimigo que eleva no imaginário como “o mal” a vencer.
A existência de “inimigos do povo” para um combate contínuo é essencial para o “salvador” usar sua retórica e se manter no comando do País que conquistou com promessas falsas. O “processo salvacionista” é um acidente histórico fatal e provoca como resultado a destruição de um País no caminho da luta do “salvador” para se manter no Poder.
O  ‘HOMEM PURO” NO COMBATE À CORRUPÇÃO
O combate à corrupção, aí entendida a corrupção de todos os tipos dentro do Estado e fora dele, é central no caminho do “salvador”. Ele se apresenta como um “puro” e a partir desse pedestal pode combater os impuros. No geral, mesmo essa pretensão é falsa, porque o “salvador” uma vez no poder deixa de ser “puro” e passa a exercer a corrupção de forma mais violenta do que aquela que pretendeu combater, o que ocorreu no Sudão, onde os fazendeiros foram extorquidos com “contribuições” para manter o movimento salvacionista, uma corrupção maior e mais violenta que aquela que ele partiu para combater.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Mahamad Ahmad nasceu em 1844 e morreu por doença 1885, bem antes da redenção do Sudão pelas tropas de Kitchener. Após a morte do “Mhadi” o movimento caiu em mão de seus sucessores, ainda piores que o líder, como pode acontecer na história dos salvacionismos.
A Batalha de Omdurman (1892) que derrotou o “mahadismo” foi a última do Século XIX combatida com lanceiros a cavalo, entre os quais estava o jovem oficial Winston Churchill, o guerreiro que em uma só vida passou da lança para a Era Nuclear, do combate a cavalo para o avião a jato, do Mahadi como inimigo para a luta contra Adolf Hitler.
AS CRUZADAS SALVACIONISTAS COMO INSTRUMENTOS DA POLÍTICA
Através da História o combate à corrupção se transforma por si só em uma arma para alcançar o Poder.  O lutador contra a corrupção capitaliza seu combate e se lança como pretendente ao poder em nome desse combate. Essa foi a base conceitual do Papado contra o Império por toda a Idade Média, o Papado representando a Virtude, a Pureza contra a corrupção do poder político terreno. Uma exacerbação desse conflito foi a Santa Inquisição, forma violenta de combate que em certo momento se assumiu como poder político desafiando o próprio Estado. A Inquisição Ibérica representava a pureza em combate mortal contra os impuros e os hereges e pelo caminho confiscava bens de suas vítimas e se fortalecia.  Em Portugal coube ao Estado representado pelo Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo) enquadrar a Inquisição e cassar seu poder político para defender o poder do Estado.
No Brasil, um político que chegou à Presidência da República fez toda sua carreira no combate à corrupção, Jânio Quadros, percorreu toda a trajetória do ciclo, chegou à Presidência sem ter as condições políticas para tal cargo, caindo no abismo de suas próprias fraquezas.
Como todo salvacionista, a pureza era apenas de aparência: Jânio nunca foi tão santo como seus eleitores pensavam, legando vasta fortuna para seus descendentes.
A cruzada janista tinha como alvo final o grande sistema de poder da Era Vargas, representado em São Paulo por Adhemar de Barros, interventor, governador e prefeito nos anos varguistas.
Já o Presidente da República por um longo período histórico, identificado pelos conservadores como líder de um sistema corrupto, Getúlio Vargas, não deixou herança aos descendentes após décadas de poder. Sua corrupção era uma fantasia criada pelos udenistas de então. Vargas foi acossado como corrupto, assim como Juscelino Kubtschek, os udenistas antecessores dos moralistas que hoje pontificam no Brasil praticando o mesmo processo de purificação punitiva que então a UDN de Carlos Lacerda propunha realizar. Raramente o moralista NA POLÍTICA é sério, ele apenas ataca a corrupção do outro para elevar seu capital político e ocupar a cadeira daquele que aponta como corrupto. Por ironias da História o “moralista de ataque” é geralmente mais corrupto que seu adversário que ele aponta como corrupto, todo um grande jogo de cena para a troca do grupo no Poder.
Na essência, os movimentos anti-sistema se justificam pelo combate à corrupção e na sua trajetória não poucas vezes se transformam em outro sistema igualmente ou mais corrupto que aqueles que visavam combater. O combate à corrupção como gazua para entrar no palácio é um enredo repetido incontáveis vezes pela História conhecida da humanidade.
O registro histórico mostra que o caminho mais racional é a evolução lenta e gradual no aperto dos sistemas de controle, sem destruir suas bases, e não a cruzada salvacionista que, a pretexto de combater o mal, implode a engrenagem de governo que por si só é também um capital valioso de cada Estado e da estrutura econômica da cada País. Ao combater a corrupção como cruzada salvacionista é possível a destruição de capital, de empresas, de setores inteiros, o que ao fim tem um valor muitas vezes superior à própria corrupção alegada.
O DESASTRE ANUNCIADO DO SALVACIONISMO
O salvacionismo tem como alvo o Poder. Uma vez lá chegado não sabe governar e cai no abismo, fazendo o País retroceder décadas. O episódio do Mahadi no Sudão é apenas uma moldura que se repetirá provavelmente em um vasto território conhecido como Brasil.  -  (Aqui).

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