"O Brasil não existe mais internacionalmente"
Após dirigir a atenção para análises sobre a pesquisa Datafolha divulgada nesta data - abordagens tanto comentadas (aqui) como escritas, a exemplo do que se vê AQUI -, as quais deixam patente a liderança do ex-presidente Lula no cenário político-eleitoral brasileiro, permitimo-nos sugerir a leitura das observações a seguir, oferecidas pelo historiador francês Jean-Jacques Kourliandsky mediante entrevista a Willy Delvalle, colaborador do site Diário do Centro do Mundo (AQUI). O historiador é pesquisador do IRIS (Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas) e responsável pelo Observatório da América Latina da Fundação Jean-Jaurès.
DCM – Por que você se interessou em estudar o Brasil e a América Latina ao longo de sua vida?
Jean-Jacques Kourliandsky –Ele veio pela Espanha. Eu nasci no sudoeste da França, perto da fronteira espanhola. Então eu e meus amigos da faculdade íamos com frequência à Espanha para festejar. Nessas ocasiões, eu encontrava uruguaios, refugiados, que me procuravam. Eles sabiam que naquele momento eu trabalhava em Paris. Eles queriam a minha ajuda para constituir um comitê de apoio para libertar o general Liber Seregni, que foi o primeiro presidente da Frente Ampla do Uruguai. Naquela época, nos anos 1979, 1980, os estrangeiros não podiam presidir ONGs. Eles precisavam de alguém um pouco idiota (risos), que não conhecesse bem o Uruguai, para presidir esse comitê.
Foi o que eu fiz, por dois ou três anos. Progressivamente, eu saí da minha inocência. Eu pesquisei sobre o Uruguai, estudei. Comecei a escrever. A partir desse momento, além do Uruguai, fui à Argentina, ao Paraguai, ao Brasil, ao Chile. Praticamente todo ano, passei cinco ou seis semanas em um país diferente. Eu tenho uma formação universitária, mas nesse caso, me formei um pouco como um jornalista, um autodidata. Tentei ter um conhecimento pessoal, sem ter apoio um apoio específico. Como eu não tinha os meios financeiros para conhecer a América Latina, eu busquei a mídia, o IRIS, para fazer pesquisa, para poder pagar parte dessas viagens. Então, ao longo dos anos, fui umas vinte vezes ao Brasil, à Argentina, ao México, à Colômbia…
Por que você diz que eles precisavam de um “idiota” para presidir a Comissão?
Na Frente Ampla, há mais de 20 partidos diferentes. Eles têm um modo de funcionamento particular. Eles conseguem chegar a um consenso. Mas antes do consenso, tem muita disputa. Então, não era para os franceses se misturarem a essas disputas. Era necessário um francês que nao soubesse de nada (risos).
Por que o Brasil é um país decisivo, segundo a Fundação Jean-Jaurès?
Independentemente do interlocutor na França, o Brasil é considerado de uma forma diferente da República Dominicana ou de El Salvador. É um estado que, pelo seu tamanho, suas potencialidades, interessa a muitas pessoas na França e na Europa. É uma questão de escala. Em relação àqueles que estão na corrente progressista, o nascimento da CUT, o nascimento do PT foram sempre acompanhados com muita atenção aqui. Houve o orçamento participativo em Porto Alegre; a corrente dos cristãos de esquerda, a Teoria da Libertação; o Movimento dos Sem Terra; há muitas coisas que fazem com que diferentes correntes de esquerda se interessem pelo Brasil. No campo econômico, as empresas certamente se interessam pelo Brasil, porque tem 200 milhões de habitantes. Aos diplomatas interessa porque o Brasil é quase 40% da América Latina. Há razões objetivas, ideológicas, econômicas, geográficas, há muitos vieses possíveis para despertar o interesse dos não brasileiros. Não quero fazer nenhum comentário desmerecedor, mas há mais razões que os façam se interessar pelo Brasil do que pelos países da América Central ou pelo Paraguai.
A Fundação Jean-Jaurès defende a social democracia. No Brasil, há um partido da social democracia, o PSDB, mas se diz que os partidos estão mais à direita do que aquilo que eles defendem. Segundo esse raciocínio, o verdadeiro partido da social democracia seria o PT. O que é a social democracia e qual o seu ponto de vista sobre ela no Brasil?
A Fundação Jean-Jaures não se interessa por siglas. Senão, o Partido Nacional Socialista Alemão seria um partido socialista porque há “nacional socialista”, mas era um partido fascista. Em Portugal, há o partido social democrata, que é um partido de direita. O PSDB, no Brasil, é um partido de centro-direita. Não é em função da marca que a Fundação Jean-Jaurès se relaciona, mas em função do que eles fazem. E também, a priori (os partidos) não são os primeiros parceiros, mas as fundações. No Brasil, a Fundação Jean-Jaurès trabalha há anos com a Fundação Perseu Abramo, às vezes com o Instituto Lula. Como no Uruguai, com a Fundação Liber Seregni. Na Europa, com a Fundação Ebert, do Partido Social Democrata Alemão. Ou a Fundação Pablo Iglesias, na Espanha. São parcerias entre fundações. Mas fundações nas quais encontramos famílias políticas. No Brasil, essencialmente é o Partido dos Trabalhadores.
Isso compromete a independência intelectual da Fundação?
A Fundação está numa corrente ideológica e política. Mas não é uma fundação institucionalmente ligada ao Partido Socialista. Ela é totalmente independente. Ela tem um estatuto, um financiamento, um funcionamento, uma direção que é autônoma. Ela tem uma agenda que pode não ser a do Partido Socialista. Ela pode convidar, ter relações com parceiros na França ou fora da França.
Como você percebe a prisão de Lula?
A prisão de Lula não é um acontecimento isolado. É uma opinião pessoal, não a da Fundação, embora ela leve em consideração o que eu escrevo ou o que eu digo. Essa prisão se insere numa duração, numa coerência, que começou em 2016, com a destituição da presidente Dilma Rousseff. Alguns se esforçam para encontrar elementos que atestariam um complô. Pessoalmente, eu olho simplesmente os fatos, as consequências da deposição da presidente Dilma Rousseff, a prisão de Lula, são acompanhados da implantação de uma política social e econômica totalmente diferente. Mesma coisa em relação à política externa. Uma política de ruptura com o que era feito antes. Se olharmos as investigações policiais, quem se beneficia do crime? Beneficiam-se aqueles que Jessé Souza chama de elites brasileiras, com políticas de austeridade para resolver a crise, que pesam sobre a população mais modesta, e uma justiça de duas velocidades, que funciona muito rápido quando se trata do PT, mas que paradoxalmente é muito lenta quando se trata, por exemplo, no último caso, de Geraldo Alckmin, que ao final foi protegido pelas decisões da Justiça, que o impedem de ser preso ou investigado pelas vias mais severas.
Quando olhamos para a investigação do caso Lula, vê-se que ele foi alvo de uma espécie de perseguição judicial, o que compreende os procedimentos. Na primeira vez, quando a polícia entrou em sua casa sem aviso prévio, quando em qualquer país do mundo antes de enviar a polícia à casa de uma pessoa, envia-se um comunicado antes dizendo “você está convocado a se apresentar à polícia; se você não vier, iremos até você”. E então, seis horas da manhã, em articulação com os grupos de mídia, o grupo Globo, para filmar a polícia chegando na casa de Lula.
Ele mesmo, no último discurso antes de ir preso, indicou esse momento e sua intenção de não ser filmado pelo grupo Globo, ser algemado, ou enquadrado pela polícia, visto que isso faz parte efetivamente de tudo que vem acontecendo nos últimos dois anos, que tem como objetivo demonstrar que o problema do Brasil são os problemas de um grupo mafioso que se chama PT, cujo chefe é o ex-presidente e fundador do partido, Lula. Isso também compreende a apresentação em powerpoint do procurador Deltan Dallagnol, que tentava demonstrar de uma maneira muito inverossímil que não era necessário provas contra Lula, pois ele era chefe de uma máfia.
A constatação que podemos fazer é que o que está acontecendo no Brasil é a implantação de uma democracia controlada pelos grupos mais favorecidos. Há um sistema que permanece democrático formalmente; mas há coisas em que o poder só está nas mãos daqueles que decidiram que era necessário mudar de orientação política, econômica, de política externa e sobretudo de política social. A prisão de Lula não pode ser isolada. O discurso de alguns no Brasil, dizendo “o Brasil é um país exemplar pois mesmo um ex-presidente da República, os poderosos, são presos” é uma visão extremamente simplista. Não sou o único a constatar isso. Há cada vez mais autoridades políticas e jurídicas fora do Brasil que chegam à mesma conclusão ao observar o que vem acontecendo no Brasil desde 2014. Nesse ano, Dilma Rousseff ganhou as eleições por pouco, por 51%. O PSDB contestou o resultado. Tendo perdido as eleições, eles adotaram outra estratégia, a de destituí-la de modo inconstitucional, pelo parlamento.
Como se pode dizer que o Brasil é uma democracia mesmo formal se houve uma ruptura inconstitucional, um golpe de Estado?
Não estamos numa situação como em 1964, onde todos os poderes eram centralizados por um grupo de militares. Os partidos políticos continuam funcionando. Apesar do poder do grupo Globo ou de outros grupos midiáticos, você continua trabalhando. Pode haver manifestações. Mas num sistema de democracia de exceção. É preciso afinar a análise. Seria muito simplista dizer: houve um golpe de Estado e ponto. Não é um golpe de Estado como o de Pinochet, o da Argentina ou do Uruguai, nos anos 1970. É um outro modo de funcionamento, que já foi utilizado em Honduras e no Paraguai. Em Honduras, duas vezes. O atual presidente, segundo a Constituição, não poderia se candidatar, mas se candidatou mesmo assim. Me parece que houve manipulação de votos.
Estamos diante de uma forma de gestão do poder que utiliza as instituições, que utiliza a mídia para obter uma hegemonia ideológica sobre os eleitores. As pessoas podem votar, haverá provavelmente eleições este ano no Brasil, mas a lógica do que está acontecendo é de que essas eleições não aconteçam do modo habitual, com todos os candidatos. O objetivo é eliminar os candidatos ou o candidato de esquerda que se ganhar a eleição possa retomar as políticas que foram condenadas pela elite. Mas a via do golpe de Estado clássico foi descartada. A via escolhida agora é a da influência, da hegemonia midiática, ideológica, para influenciar os eleitores e a da justiça para descartar fisicamente, sem matar as pessoas, aqueles que incomodam. É um modo de tomada do poder muito sofisticado, novo e foi praticado em outros países da América Latina.
Mas houve recentemente o assassinato de Marielle Franco. Não seria uma contradição em relação ao que você diz?
Ela não era uma candidata à presidência da República. Há outros elementos no Rio de Janeiro, a corrupção nas favelas, o grupo de milícias que tinham cúmplices na Câmara dos Vereadores. É um assassinato político, mas que é ligado a fatos de corrupção. Ela denunciava a ação do 41o Batalhão da PM, que havia matado cinco jovens na semana anterior. Ela incomodava através das informações que ela recolhia. Ela havia provocado uma repercussão negativa para aqueles que ela denunciava. Não está diretamente ligado ao poder em Brasília. São as gangs. Como no México, a política se mistura à corrupção em diferentes partes do país. O Rio de Janeiro infelizmente não é diferente. Por outro lado, você tem razão, há nas Forças Armadas do Brasil, constatou-se, antes da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, o general do Exército terrestre publicou um tweet, uma declaração que pode ser considerada como pressão direta sobre o Tribunal.
“Espero que não haja impunidade”. Ele considerava que se Lula permanecesse em liberdade seria uma forma de impunidade. E o que é mais grave é que um determinado número de generais apoiou a declaração. Um ministro da Defesa, que, pela primeira vez na história do Brasil desde a redemocratização, é um militar, acobertou a declaração do general. Isso vem depois de outra declaração, do general Mourão, alguns meses atras e que não foi alvo de nenhuma sanção disciplinar. O paradoxo de tudo isso é que se as eleições forem mantidas, os que querem eliminar Lula, o PT e a esquerda, não têm candidato. Se olharmos as pesquisas, Geraldo Alckmin tem no máximo 7%. O prefeito de São Paulo (João Doria), de quem também se fala, tem 4% ou 5%.
Mas há Jair Bolsonaro…
É nesse ponto que eu ia chegar. O paradoxo é que eles não conseguem fabricar um candidato representativo da centro-direita, pessoas digamos apresentáveis. Lula descartado. Sem candidatos dos que o querem eliminar. Se as eleições acontecerem, houve um tamanho ataque anti-política do grupo Globo e outros que aquele que resta é uma espécie de OVNI independentemente dos partidos políticos tradicionais, que tem o apoio dos grupos pentecostais, um ex-militar que reivindica seu passado e o passado da Ditadura, que apoiou a declaração do general. Hoje, ele seria eleito. Ninguém pensou dois anos atrás que o Brasil chegaria a esse tipo de situação.
É porque eu me pergunto se as eleições acontecerão na data prevista. A partir do momento quando não se respeitam as regras, que elas são mudadas em função dos interesses, quem disse que num dado momento o Parlamento não pode decidir “soberanamente”, pelo voto da maioria, como na destituição da presidente Dilma Rousseff, que situações excepcionais requerem adiar as eleições? Não sei. Opção B: se Lula conseguir sair da prisão e ser candidato, ganhar as eleições, o que impede o Parlamento de decidir mudar a Constituição e transformá-lo num presidente à italiana, sem poderes? São hipóteses. Podemos imaginar cenários que parecem loucos num período normal, quando a Constituição constitui algo que não se muda ao bel prazer.
A declaração do general influenciou a decisão do STF?
Eu não sei. Seria necessário perguntar a cada um deles se mudou seu voto. De todo modo, não houve só a declaração do general. Houve a mídia, o grupo Globo, e um aspecto pouco mencionado, que está num livro de um jornalista da BBC sobre a história do Brasil, que mostra que em função de sua renda os juízes fazem parte da elite. É público e notório. Li num artigo do O Globo que os juízes ganham em média 33 mil reais por mês e que muitos deles recebiam muito além disso. Li que ganharam um benefício de 33 mil reais em dezembro. Eles vivem de um modo que não é do brasileiro comum. Eles têm um repertório cultural que é o da elite. Então eu volto ao último discurso de Lula, quando ele diz: “as coisas vão mudar quando os jovens da favela que conseguiram estudar, depois do esforço dos nossos governos pela educação, chegarem ao Poder Judiciário". Aquele jornalista inglês dedica um capítulo para explicar: o que é um juiz no Brasil?
Lula é um prisioneiro político?
Sim. Tudo o que eu disse demonstra isso. Permanecerá preso depois das eleições? Não sei. Mas, primeiro, o objetivo era tirar Dilma Rousseff. Depois, impedir Lula de se candidatar nas eleições de 7 de outubro. Ele certamente não teve os mesmos benefícios que o Supremo deu a Aécio Neves, quando suas informações bancárias foram comunicadas pela própria Suíça às autoridades judiciárias brasileiras. Ele não tem o mesmo tratamento que Geraldo Alckmin. A lei foi aplicada não apenas da forma mais rude possível, mas o paradoxo é que ele foi condenado neste caso quando ninguém, nem o juiz, demonstrou que ele era proprietário do apartamento, que ele morava no apartamento, que é o elemento que o levou à prisão, mas tudo se baseia na convicção do juiz, quando em todos os países do mundo é a presunção de inocência que deve ser aplicada quando não se prova a culpabilidade. Nesse caso, o que foi aplicado pelo juiz Sérgio Moro e o Tribunal Regional Federal de Porto Alegre foi a presunção de culpa.
O que você pensa sobre o contexto da prisão (proibição de algemas, célula isolada, militantes impedindo Lula de se entregar, a entrega e fogos de artifício para celebrá-la)?
Os fogos de artifício são lógicos em relação a um prisioneiro político. Na semana anterior, houve tiros contra o ônibus de sua caravana. Na classe média brasileira, há um ódio de classe que faz com que Lula seja culpado; ele é culpado de ter sido presidente; ele é culpado pela ascensão de pobres, em domínios que a classe média se acreditava exclusiva, viajar de avião, estar lado a lado em avião, declarar empregada doméstica. É a teoria do Jessé Souza, a herança escravagista. Se não houve apartheid no termo jurídico da palavra, há um apartheid social segundo o qual os pobres devem ficar no seu lugar. Lula os fez sair de seu lugar. E não o perdoam por isso.
Então, sua prisão foi festejada e celebrada por aqueles que têm esse modo de ver as coisas. Ele se recusou a se entregar porque ele não queria ser filmado pela Globo, porque seria reconhecer sua culpabilidade, o que ele sempre negou. Então houve negociações entre seus advogados, a justiça e a polícia para que as coisas acontecessem de outro modo. Nesse meio tempo, ele conseguiu falar com amigos, mobilizá-los, confiá-los a mobilização, dizendo que “Lula está preso mas a mobilização continuará porque cada um de vocês é um Lula”. Ele havia se encontrado com Pepe Mujica em Livramento (RS). Seus inimigos haviam temido que ele se refugiasse no Uruguai. Ele disse que não era um fugitivo, que é inocente, que iria provar sua inocência, que o culpado não é ele, mas aqueles que o prenderam.
Como você avalia o bloqueio de recursos do Instituto Lula e a acusação de dívidas milionárias?
Que eu saiba Nicolas Sarkozy e Bill Clinton também fazem palestras remuneradas. É um comportamento de ex-presidentes que não tem nada de excepcional. Acusam-no de ter gerido de forma errônea os presentes que ele recebeu quando era presente. Toneladas em contêineres. O Instituto Lula teria se dirigido a Fernando Henrique Cardoso e este teria aconselhado que empresas estocassem esses presentes em contêineres. Na medida que a Lei prevê que os presidentes não possam se apossar desses presentes, não falam sobre o lugar de estocagem. Então, há brechas que permitem dizer que foi um ato de corrupção. Mas quando não era com Lula, não era corrupção. É como a Operação Lava-Jato, a investigação só começa depois de 2003.
A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, convocou um boicote contra a Globo, segundo ela, a culpada pela prisão de Lula e o ódio no país. Recentemente, houve uma campanha de boicote à Netflix, pela série O Mecanismo. O que você pensa a respeito?
Houve também muitas capas da revista Veja contra Lula. O que concerne a Globo, papel, TV, não são os leitores, os telespectadores que sustentam a Globo. São os patrocinadores. Essa vontade de sancionar um grupo de imprensa que não se comportou de maneira correta do ponto de vista deontológico é compreensível. Sobre o Netflix, houve também uma série sobre a Colômbia, que não agradou os colombianos, que ficaram associados ao tráfico de drogas, dando muita publicidade a Pablo Escobar e seus sucessores. No caso do Brasil, atribuiu-se a Lula frases que foram ditas por outros para dar mais força ao discurso de que a luta pela corrupção no Brasil atinge todo mundo. É o risco que a Netflix assumiu, de fazer ficção realista, a partir de acontecimentos que não terminaram ainda. Eles deviam saber que podem enfrentar problemas jurídicos. Isso acompanha de um certo modo o que faz o grupo Globo, segundo o qual a política é algo sujo, onde todos os atores são corrompidos. O resultado é paradoxal, um bumerangue, valorizar o candidato antissistema e mais à direita, Jair Bolsonaro.
Lula disse que ele se converteu em uma ideia, o motivo de sua prisão. E que, no entanto, há muitos outros Lulas no povo, convocando as pessoas a dizer “Eu sou Lula”. Qual a sua visão sobre? Seria a imposição de uma subjetividade política?
É uma maneira de dizer “mesmo se eu for preso, o combate continua, vocês são portadores da mensagem que eu portei”. Acredito que ele disse: “se eu não puder sonhar, eu poderei fazê-lo através de vocês. Vocês estão fora. Então poderão continuar se mobilizando por um retorno ao funcionamento democrático correto”.
Por que o STF votou de modo tão dividido no caso da concessão do habeas corpus a Lula?
Aí entramos nas sutilezas jurídicas do Direito brasileiro. Há dois anos, a jurisprudência era de não prender um acusado que não esgotou todos os recursos. Em 2016, houve uma mudança. Por que houve essa mudança, eu sou incapaz de te dizer. Eu tenho dificuldade de entender todas as sutilezas da justiça brasileira. Pelo que entendi, muitos juristas consideram que a prisão em segunda instância é inconstitucional porque ninguém pode ser preso até o esgotamento de recursos, como é em outros sistemas jurídicos no mundo. É isso que vai ser discutido semana que vem. Se voltarmos ao sistema de dois anos atrás, será permitido a Lula sair da prisão, mas também as centenas de pessoas que estão presas sem o esgotamento de recursos. O que é surpreendente, poderíamos pensar logicamente, é que o que vai acontecer com ele deveria ser objeto de uma discussão anterior. Então, vê-se que sua prisão foi feita antes da discussão para poder prendê-lo em função da jurisprudência de 2016. É outro elemento de distorção da justiça. (Nota deste blog: A prevalência da presunção de inocência não implicaria a soltura de "estupradores, assassinos e que tais", como muitos espertalhões alegaram, visto que, segundo o artigo 283 do Código de Processo Penal, as PRISÕES CAUTELARES, a exemplo da prisão preventiva, podem ser determinadas pela Justiça).
Lula classificou Sérgio Moro de “mente doentia”. Qual a sua visão sobre?
Eu náo conheço pessoalmente o juiz Sérgio Moro. Não me pronunciarei. Não sei se ele é doente ou não (risos). O que é fato é que ele é representante de uma bela perseguição judicial.
Qual foi o papel específico de Cármen Lúcia, Rosa Weber, Sérgio Moro e Deltan Dallagnol nesse processo?
E os quatro juízes de Porto Alegre. Há uma convergência de análises, de ponto de vista, uma validação. O mais surpreendente quando a gente não é brasileiro é o presidente do Tribunal de Porto Alegre ter feito uma declaração pública dizendo que a sentença de Sérgio Moro era muito boa. Num sistema judiciário normal, um juiz não deve dar seu ponto de vista pessoal, menos ainda de modo público e midiático. Onde está a imparcialidade e a serenidade da Justiça? Que justiça é essa que anuncia que vai confirmar uma condenação antes de analisá-la? Tudo isso parece inverossímil, incoerente.
Há uma articulação direta entre judiciário e mídia?
A constatação que fazemos é que as coisas vão em paralelo, os grandes grupos de mídia e um certo número de juízes. Porque muitos juízes não estão de acordo. Há até um livro (em torno do assunto), publicado por eles, dizendo que os juízes responsáveis por esse caso e a mídia vão na mesma direção. Se há complô, ou não há complô, há uma série de teorias que circulam. Eu não me interesso muito pelas teorias conspiracionistas. Mas eu vejo os resultados e vejo que o que acontece mostra uma concertação, uma convergência para ir na mesma direção entre os juízes responsáveis por esses grandes casos e a mídia.
A imagem do dono de um cabaré (Bahamas) com a mão no rosto de uma mulher nua, no fundo as imagens de Sérgio Moro e Cármen Lúcia e a promessa de cerveja gratuita para celebrar a prisão de Lula, no momento em que o público de homens também diziam “Kassab viado” é revelador do momento atual do Brasil?
Eu não vi essa foto. Não sei. O que se constata é um aumento da intolerância. Quando as regras não são mais respeitadas no Estado, é o conjunto da sociedade que as burla, que não as respeita. Se voltamos à definição de democracia como a resolução de conflitos pela via do diálogo, essa filosofia não funciona mais. Há ódio, paixões, que se cristalizam no Brasil, que permitem compreender esse tipo de comportamento. Constatamos também o aumento da intolerância religiosa, com perseguição aos cultos de religiões afrobrasileiras, por evangélicos, que saíram do campo verbal, que era a regra, para o físico, com o incêndio de templos, a depredação de objetos de culto, uma sociedade à deriva democrática, o que permite compreender esse tipo de comportamento, que pode conduzir, do outro lado, à radicalização; a partir do momento que a via democrática é falha, pode haver pessoas que apelem à violência.
Dois anos atrás, Marilena Chauí chamou o movimento pela derrubada de Dilma de “caldo tirânico”. Vimos tais manifestações, o ataque a Lula, o assassinato a Marielle Franco. O Brasil está vivendo um momento fascista?
Há algo que as pessoas não falam, uma estatística impressionante. Mais de 60 mil pessoas foram assassinadas em 2017, mais mortos do que na Síria. As cidades brasileiras não estão em ruínas, não foram bombardeadas como na Síria, mas refletem o aprofundamento da crise econômica. Sobretudo seu efeito maior sobre as classes mais desfavorecidas, menos pessoas que se beneficiam do Bolsa Família, o desemprego aumentou, os salários não são pagos no estado do Rio de Janeiro, os créditos às universidades foram diminuídos pela metade, há uma deterioração do tecido social que conduz a uma deterioração da segurança pública, e, à vista da erosão do sistema político, podemos nos perguntar qual é o futuro da sociedade brasileira nos próximos meses.
Como você avalia a reação da esquerda frente à prisão de Lula? Falo de Manuela d’Ávila, Guilherme Boulos, Ciro Gomes e Marina Silva.
Há um apoio a Lula, que não é total. Ciro Gomes disse que (Lula) não é um prisioneiro político. Parece que há em alguns um sentimento de que a “a prisão de Lula me dá uma pequena chance de ser eleito”. Há projetos pessoais. Depois, podem haver projetos de partido. Então, se Lula não for candidato, então o PT sai enfraquecido. O PSOL, Marina Silva, outros podem pensar: “é uma oportunidade”. Do meu ponto de vista, seria um erro. Se a esquerda chegar em outubro com quatro ou cinco candidatos, ela vai perder. Cada candidato terá uma porcentagem pequena de votos e aquele que tem a maior porcentagem por enquanto é Bolsonaro. De fato, a eliminação de Lula favorece a uma fragmentação do eleitorado de esquerda.
O que acontece com a imagem do Brasil internacionalmente?
Desde 2016, o Brasil está ausente. Nos últimos anos de Dilma Rousseff, houve a crise, então ela esteve menos presente do que Lula nas instâncias internacionais. Mas desde 2016 e a tomada de poder por Michel Temer, não há mais nada. Vimos nos Jogos Olímpicos, que determinados chefes de Estado não vieram ao Brasil, que enviaram o número 2, ou o número 3. Mesmo nos BRICS, vemos nas fotos, Michel Temer aparece um pouco de lado. Não sei qual será sua agenda em Lima, visto que há poucos encontros bilaterais, ele é considerado como alguém que se cumprimenta porque não há outro jeito. O Brasil adquiriu uma grande importância a nível internacional, inclusive em regiões onde a diplomacia brasileira nunca esteve presente, como o Oriente Médio. Hoje, o Brasil desapareceu. Houve um sobressalto com o anúncio da participação de soldados brasileiros nas operações de paz na África central, seria a única grande iniciativa internacional do Brasil em dois anos, mas desapareceu. O Brasil a nível internacional é um… É difícil falar do Brasil a nível internacional porque ele não existe mais.
É um pária?
Não. Não é um pária. É zero. Não há mais nada. De um lado, a crise já fazia sentir seus efeitos com Dilma Rousseff. Depois, a crise interna. Depois, a ausência de legitimidade de Michel Temer. Nas reuniões internacionais, ele é transparente, ele recebeu um apoio muito fraco da população brasileira. Ele também não emitiu nenhuma mensagem particular de política internacional.
Por quê?
Talvez porque não o interessa. Dois, porque talvez ele está mais no econômico, nos negócios. Não vemos muito bem o que ele tem a transmitir. O que ele tentou fazer nesses dois anos foi atrair os investimentos estrangeiros, privatizar uma parte dos bens públicos brasileiros, colocar empresas estrangeiras na participação da exploração do petróleo marítimo, ceder parte do capital da Embraer à Boeing, não sei se podemos chamar isso de política externa ou internacional, mas é o essencial do governo brasileiro nesse período.
Essas políticas reduziram a soberania nacional?
É uma concepção do Brasil que é totalmente diferente da que existia antes de 2016. O governo estava aberto à cooperação de investimentos estrangeiros, mas se apoiava fortemente sobre os bancos públicos, o BNDES, na Embraer, na eletricidade, no petróleo. Todo esse sistema foi desestabilizado em dois anos. De um lado, pela abertura ao capital estrangeiro pelo governo Temer e pelas consequências dos processos que não visam apenas às pessoas, mas desestabilizam as empresas que ocupavam uma posição importante na economia, como a Petrobras.
O PT será fundamental no futuro da esquerda brasileira?
O PT foi o elemento fundador desde os anos 1980. Hoje ele está sob a pressão da justiça, a concorrência de alguns grupos que estão à sua esquerda, como o PSOL. Um partido político não desaparece de um dia para o outro. Ele ainda tem centenas de milhares de filiados, por todo o país, é praticamente o único a ter essa rede, essa presença em todo o país, ainda eleitos, governadores, prefeitos. Qual vai ser o efeito da prisão de Lula sobre o PT? Isso vai mobilizar, desmobilizar? Qual vai ser a atitude dos outros partidos de esquerda? Vão aproveitar para tentar substituí-lo? Isso parece difícil.
Marina Silva não tem verdadeiramente um partido. O PSOL está presente num certo meio universitário, nas grandes cidades, mas ele não tem presença na totalidade do país. Ciro Gomes é o Ciro Gomes. O PDT é um partido historicamente importante, mas até que ponto Ciro Gomes é representante da história do PDT? Podemos nos questionar. O PSB navega de um lado para o outro. O que eu quero dizer é que o PT tem a capacidade e uma estratégia coerente de juntar e recuperar um certo número daqueles que se decepcionaram, que o deixaram ou que julgaram que ele adotou políticas conservadoras demais.
No Brasil, na Argentina, em diferentes países africanos, na Rússia, na Venezuela, acusa-se a justiça de ser um meio de eliminar ou prender líderes de esquerda ou de oposição. O que isso revela em relação às forças de esquerda e direita no mundo atual?
Há uma judicialização da política, que se observa também na Europa, visto o que está acontecendo na Catalunha. É a vontade de não adotar soluções extremas, golpes de Estado militares. Se não se utiliza mais o militar, utiliza-se o judiciário para tomar o poder. Ou pode haver uma renúncia da política, que se dirige ao judiciário para eliminar adversários políticos. Espera-se de um juiz não mais que ele seja o árbitro do respeito à lei, mas que ele se transforme num instrumento político, uma evolução perversa do sistema democrático, que altera o equilíbrio e a independência entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com o judiciário entrando na política.
Uma possível vitória de Obrador no México, após a vitória da esquerda na Costa Rica, pode indicar novos ventos para a esquerda na América Latina?
No caso da Costa Rica, há que se fazer reservas. Porque o candidato evangélico teve 40% dos votos num país que não tem tradição evangélica. Em novembro, ele tinha 2% nas pesquisas. Num país de tradição republicana, de separação de poderes da Igreja e do Estado, numa campanha eleitoral que se concentrou em torno de temas como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aborto, a família. É muito preocupante para a Costa Rica, é o candidato de centro-esquerda que ganhou, com uma vice-presidente que representa pela primeira vez a comunidade afrocostarriquenha. Diz-se na Costa Rica que é a primeira vez que uma negra, num país da América Latina, chega a um nível de poder tão elevado. O presidente que foi eleito é o candidato da laicidade, ele reuniu pessoas de visões muito diversas. Quanto ao México, é complicado. O que vai acontecer? Como no México, não há segundo turno, basta obter a maior porcentagem. Por enquanto, Obrador, representante do partido Morena, é o primeiro colocado.
É preciso acompanhar o que acontece nas eleições legislativas. Por enquanto, não há maioria. Então, caberia ao Morena ter uma capacidade de diálogo e negociação num país submetido a uma vizinhança cada vez mais complicada com os Estados Unidos, o que não é o caso do Brasil, da Argentina ou da Colômbia. Essa vizinhança complica a gestão do México, com um enorme problema de segurança, com taxas de homicídio que são as mesmas do Brasil, uma penetração de meios mafiosos na política. A vitória de um candidato de esquerda no México será uma restrição aos Estados Unidos e à insegurança. Sua margem de manobra será difícil, estreita. Ele dificilmente terá o mesmo espaço de que se beneficiou Lula em 2003. Também há o pequeno Uruguai, que terá eleições no final do ano, com a Frente Ampla que consegue se manter há 14 anos, mas sem conseguir se renovar. O presidente atual tem 62 anos. O anterior tem 80. Na direita, houve uma renovação. No Chile, uma situação à espanhola. Um esgotamento da esquerda pós-ditadura. Um problema de geração também. A esquerda não conseguiu atrair jovens. Então, como na Espanha, surgiu uma geração como a do Podemos, que se estabeleceu, mas não muito estabilizada. A relação entre a nova e a velha esquerda é difícil, o que explica a vitória da direita. A divisão permite àquele que não é dividido chegar ao poder.
O que acontece em Portugal que permite que a esquerda tenha êxito no poder?
O caso de Portugal é parecido com o do Uruguai. É um pequeno país. Pode ser uma relação entre pequenos países e a esquerda, talvez seja mais fácil de criar frentes comuns, o que é muito curioso. De fato, em Portugal, há a esquerda comunista, socialista que conseguiu fazer um acordo com a nova esquerda. Os espanhóis viajam com frequência a Portugal para saber como eles conseguiram. Se os três partidos de esquerda em Portugal estivessem divididos, haveria certamente um presidente de direita em Portugal. Foi o que aconteceu no Chile. Em Portugal, ha críticas, mas eles conseguem se manter no poder e com o apoio dos eleitores. O desemprego diminuiu, o país se recupera depois de uma crise violenta como na Grécia, mas ele está se saindo melhor do que a Grécia. E não se fala muito.
Sem um ajuste fiscal?
Exatamente. Sem recorrer a políticas de austeridade. Eles não fazem muita publicidade. Para ficar felizes, se escondem (risos). O que é surpreendente é esse paralelismo entre Portugal e Uruguai, dois pequenos países. É fato que em pequenos países, todo mundo se conhece. Talvez haja o fator de uma sociologia coletiva. É mais fácil discutir, se ver. Eu não sei. Me pergunto por que em Portugal e no Uruguai há alianças que em outros lugares não são possíveis.
Um golpe de Estado em 1964, uma ditadura, um período formalmente democrático, outro golpe de Estado e a prisão de Lula. Por que a democracia não consegue se impor no Brasil?
Eu recorro à análise de Jessé de Souza, a herança social e cultural da escravidão. Os abismos são culturalmente muito fortes. O espírito democrático que supõe o reconhecimento do outro para dialogar é talvez mais difícil num país como o Brasil do que em países como Portugal, que, paradoxalmente, não conheceu essa herança deixada pela escravidão.
Quais são as perspectivas para o futuro do Brasil?
É um grande ponto de interrogação, sobre o Lula, sobre as eleições, sobre a atitude dos partidos de esquerda, o resultado dos últimos recursos de Lula. Cada uma dessas questões pode levar a consequências diferentes. É fato que hoje não pode mais haver golpes como os antigos, brutais, mas isso não impede que as liberdades sejam cada vez mais restritas no Brasil, que o espaço democrático seja cada mais limitado. Há ainda um espaço para fazer a dinâmica contrária, mas isso supõe uma junção de forças, que só pode existir se em torno do PT todos os partidos de esquerda entrarem em acordo, não em torno de um candidato, mas de uma estratégia por ter um peso suficiente na presidência e no Parlamento. Não sei. Há declarações, como a de Ciro Gomes, que dão a entender que a prisão de Lula é uma oportunidade para chegar ao poder. Não consigo responder sua pergunta.
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