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Sebastião Nunes, autor da série, é natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta. É também titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine.
O país dos canalhas - Capítulo 19 - As veias abertas da América Latina
Por Sebastião Nunes
– ¡Dispare! ¡No tenga miedo! – disse Che ao suboficial Mario Terán quando o militar, completamente bêbado, apontou a metralhadora. Terán teve medo. Saiu assustado, mas foi obrigado a voltar pelo major Miguel Ayoroa e pelo coronel Andrés Selnich, ambos do exército boliviano. Então disparou uma rajada e Che caiu.
Che não morreu na hora. O executante tinha instruções para não atirar no peito nem na cabeça, evitando feridas “fulminantes”: queriam que sofresse, queriam que sangrasse. Fora ferido nas pernas no último combate. Matou-o afinal um bom sargento também bêbado, que atirou na sua cabeça horas depois, de saco cheio daquela bosta.
Acompanhei tudo em meu delírio no quarto do Hospital de Base, em Brasília, as veias povoadas de agulhas e veneno. A maioria dos visitantes, os milhares de mortos pelas ditaduras latino-americanas ao longo de décadas, tinham desfilado diante de nós (Dom Quixote, Sancho Pança, Simón Bolívar e eu) durante três dias e três noites.
Agora restava Che, inteiriçado no chão, seco e de olhos abertos. 50 anos depois.
UM LIVRO QUE SANGRA
“A prosa da esquerda tradicional é chatíssima”, disse Eduardo Galeano em 2014, aos 73 anos, quase exatamente um ano antes de morrer de câncer em sua cidade natal. Galeano aproveitou a ocasião para desancar a própria obra: “A realidade mudou muito e eu mudei muito. A realidade é muito mais complexa exatamente porque a condição humana é diversa”. Galeano morreu em abril de 2015.
Em meu delírio, aprovei a autocrítica do uruguaio. Com meus fantasmas, vendo no chão o cadáver ensanguentado do Che, aplaudi. Galeano estava coberto de razão: realidade e condição humana são muito mais complexas do que a dicotomia esquerda-direita. Mas Galeano tinha 74 anos quando morreu, seu livro devastador é de 1971, mais de quatro décadas passadas até que o renegasse, só que a dura realidade da América Latina insiste em manter a eterna dicotomia entre os que podem e os que não podem. Além disso, espero que minha prosa não seja chata: prosa chata não é privilégio da esquerda, basta ouvir os discursos dos deputados de direita, basta ler os pareceres dos juízes de direita, basta ouvir a lenga-lenga dos abutres de preto, machos e fêmeas, que povoam nosso STF e os juizados menores. A realidade não mudou.
FRAGMENTO DE UM SONHO
Então ouvi, juro que ouvi em meu delírio interminável:
– Existe um planalto na América do Sul, na Bolívia e no Paraguai, numa região tangenciando o Brasil, o Uruguai, o Peru e a Argentina de onde, se instalarmos nele uma força guerrilheira, poderíamos espalhar a revolução por toda a América Latina.
– Quem disse isso? – perguntei a meus estranhos visitantes.
– Eu não disse nada – apressou-se Bolívar.
– Nem eu – apoiou Quixote.
– Em boca fechada não entra mosquito – só podia ser Pança.
Teria sido eu mesmo, delirando?
O velho e encarquilhado cadáver de 50 anos retorceu a boca e murmurou:
– Fui eu.
Ficamos boquiabertos.
O PÊNDULO MAROTO
– A América Latina funciona como um pêndulo – disse Bolívar, como se continuasse a fala do defunto. – Durante algum tempo um punhado de países tende para a esquerda, elegendo presidentes progressistas.
Paguei para ver. Quixote e Sancho também. Che balançou a cabeça seca.
– Se os países exageram, vem lá de cima o Tio Sam com sua bota pesada e dá um basta nos exagerados. Os outros países continuam bancando os espertos.
Concordamos todos.
– Então os países progressistas elegem presidentes de direita e tudo volta a ficar como antes: da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda – infinitamente. Os movimentos à esquerda são sempre incompletos, enquanto os movimentos à direita sempre galopam (epa!) para ditaduras, sanguinárias ou não.
– Cu de pobre não tem dono – só podia ser Pança de novo.
– Se merda fosse dinheiro pobre nascia sem cu – disse Bolívar, que eu nem sabia que fosse chegado a um ditado popular, ainda mais com palavrão.
– Praga de urubu magro não mata cavalo gordo – acrescentou Quixote.
– Quem nasce para cachorro morre latindo – acrescentei eu.
– Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão – disse o descarnado defunto inteiriçado no chão, desafinando o coro dos descontentes.
– Gente besta é a alegria dos outros – intrometeu-se Galeano, defunto recente demais para não se imiscuir, mas tudo bem: entendemos o recado.
UM DISCURSO ANTIQUADO
De repente o cadáver estirado no chão se remexeu todo e começou a falar que nem papagaio:
– O exemplo de nossa revolução e as lições que ela encerra para a América Latina destruíram todas as teorias de mesa de bar: demonstramos que um pequeno grupo de homens, sem medo de morrer quando for necessário, pode superar um exército regular disciplinado e derrotá-lo. Esta é a lição fundamental.
Nesse ponto a fala do defunto se tornou um murmúrio ininteligível.
Não tinha importância. Era um discurso muito velho e fora de moda. Quem é que, hoje em dia, num país tão canalha como o Brasil se importa com essas bobagens? Cadê o grupo de homens sem medo de morrer? Aqui, pelo menos, nunca existiu.
Suspirei fundo. O defunto se calou.
No País dos Canalhas tudo continua como antes. Ou pior.
.(Continua. - Fonte: Aqui).
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