segunda-feira, 16 de abril de 2018

DE COMO PHILIP MARLOWE VOLTOU À AÇÃO (CAPÍTULO 18)

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Sebastião Nunes, autor da série, é natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta. É também titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine.


O país dos canalhas - Capítulo 18 - Passado e futuro da América Latina

Por Sebastião Nunes

– Sonhos existem para serem sonhados – disse um sujeito comprido e esquisito, vestido num paletó de couro de bode, barbicha rala e cara de doido. Na mão ossuda uma lança enferrujada. Estava meio esfumaçado, como se fosse fantasma, e devia ter uns 500 anos de idade.

– Peraí! – exclamei assustado. – Sei que estou delirando, mas ainda não fiquei louco. Que diabo está acontecendo aqui? Enfermeira!

A enfermeira chegou correndo.
– O que tá acontecendo aqui? – e parou bestificada. – Quem é esse gorducho?
Olhei para onde ela olhava e vi, ao lado do magricela, outro cara, baixo e gordo, tipo beberrão e comilão. Parecia espanhol, como o magricela.
Virei os olhos para o alto, não em busca do Altíssimo, que não tem nada a ver com meus delírios, mas do meu criador, o imortal Raymond Chandler.
– Olha aqui, Mister Chandler – argumentei. – Vir pro Brasil, me envolver com canalhas golpistas e tramar golpes sinistros, tudo bem. Até o delírio eu aceito. Mas tudo tem um limite – e esta história está passando dos limites.

O LIBERTADOR
Ouvi então uma feroz gargalhada e vi, num canto afastado, outro cara esquisito, de uniforme militar antiquado, dragonas nos ombros e enfeites dourados no peito, além de um penteado que lembrava o século XIX, veja só. Devia ser um fantasma com quase dois séculos de idade!
– Permita que me apresente – disse ele educado, tirando o capacete e curvando ligeiramente a espinha. – Meu nome é Simón Bolívar, conhecido como O Libertador. Se lhe interessa, o nome completo é Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar y Palacios Ponte-Andrade y Blanco.
Olhou-nos com seriedade e continuou:
 – Ouvi a frase do cavalheiro magricela e concordo com ele: sonhos existem para serem sonhados. E digo mais: sonhados e realizados.
“Acho melhor deixar Chandler pra lá e resolver eu mesmo meus problemas”, foi o que pensei. E passei do pensamento à ação.

QUATRO SONHADORES
– Saia e feche a porta, Maria das Graças – disse eu dirigindo-me à enfermeira. – São meus amigos e sei o que temos de fazer.
Meu objetivo surgia claro e nítido: reunidos um delirante, dois sonhadores e um militar aventureiro e aristocrata, só nos restava preparar uma revolução.
– Como fantasma mais experiente – disse Bolívar –, farei algumas considerações para orientar nossos próximos passos.
Era como se lesse meu pensamento: o entendimento era comum, a solidariedade era integral entre nós.
– Primeiro ponto – disse O Libertador. – A América Latina deve estar constituída por nações livres e independentes, unidas entre si por um corpo de leis em comum que regulem seus relacionamentos externos. Fui claro?
– Claro, foi – respondi ironicamente. – O problema é juntar essas nações livres, dar-lhes governos decentes e fazer com que se entendam sem egoísmos.
– Chegaremos lá – prosseguiu Bolívar.

ESMIUÇANDO OS CONCEITOS
– Primeiro postulado: nações livres, sem os Estados Unidos e a Europa metendo o bico, como se isso aqui fosse a casa da mãe-joana.
Balançamos a cabeça concordando.
– Segundo postulado: nações independentes, política e economicamente.
Concordamos de novo.
– Terceiro postulado: união de todos os países latino-americanos para formar blocos políticos e econômicos e para discutir nossa participação na ordem mundial.
Achei demais e resolvi palpitar:
– Olha aqui, seo Libertador. Tudo certo, tudo bonito, mas com que roupa vamos fazer isso tudo?  
O Libertador me olhou espantado:
– Fazendo uma revolução armada, che!

O EXÉRCITO DOS DERROTADOS
Dizendo isso, tirou uma flauta de prata de uma bolsa que levava a tiracolo e começou a tocar.
Lentamente, saindo das sombras, começaram a surgir figuras conhecidas, mais ou menos conhecidas e um número infinito de desconhecidos, passando devagar diante dele e de nós, como fantasmas que eram, fantasmas como nós.
Reconheci na fila interminável, só entre os brasileiros, Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Frei Caneca, Filipe dos Santos, Carlos Marighella, Carlos Lamarca, Iara Lavelberg, José Carlos da Mata Machado, Vladimir Herzog... e continuaram passando. Durante três dias e três noites vi aquela fila horrível de fantasmas – quantos eram? Mil? Dois mil? Cinco mil? Dez mil? Um milhão? Mortos de quê? Bala, tortura, fome, sede, desnutrição? Ah, se é para contar os mortos por desnutrição, bota aí milhões, muitos milhões nessa conta. Mas na conta de quem? Na conta das ditaduras militares ou na conta das ditaduras civis, disfarçadas de democracia?
Perdi o fôlego. Parei de olhar. Me lembrei dos 40 mil mortos da última ditadura chilena e dos 30 mil assassinados pela derradeira ditadura argentina. E no resto da América Latina?
Olhei para meus três companheiros que choravam. E também comecei a chorar.
(CONTINUA.  - Fonte: Aqui).

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