domingo, 20 de setembro de 2015

MACHADO E EÇA: FATOS E FOFOCAS


A origem da célebre polêmica entre Machado de Assis e Eça de Queiroz

Por Sebastião Nunes

“Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”, escreveu em O Mandarim o romancista português. É sob essa epígrafe que me proponho recuperar e separar, do fundo do bolorento baú da história, os fatos e as fofocas que cercaram o atrito literário e sentimental entre os dois mestres da língua.

CRÍTICA DO BRASILEIRO


Machado de Assis havia criticado asperamente tanto O Primo Basílio quanto O Crime do Padre Amaro. Segundo Daniel Libonati Gomes, em texto de 2013 no blog “Literatortura”, essas críticas teriam sido motivadas por inveja. Textualmente: “O Primo Basílio, de Eça, chegou às terras brasileiras em 1878 e foi logo criticado por Machado. (...) O escritor brasileiro descasca as obras do português sem dó nem piedade, declarando, por exemplo, que O Crime do Padre Amaro é cópia do La Faute de l’Abbé Mouret, de Émile Zola, e que Luiza, do Primo Basílio, é cópia da Eugénie Grandet, de Balzac. Machado diz admirar Eça, mas faz suas críticas de forma bastante irônica, de um jeito muito parecido com o que o consagraria na literatura poucos anos depois”. O título dessa matéria é “Inveja de Eça de Queiroz teria motivado a criação deMemórias Póstumas de Brás Cubas”. Continuando, escreve o juvenil crítico (20 anos na época):
“Em 1881, é publicado o maravilhoso Memórias Póstumas de Brás Cubas, primeiro romance realista de Machado e talvez o maior clássico da nossa literatura (há quem pense diferente). Com o estilo que adotou, o brasileiro bebeu de diversas fontes para escrever seu livro, como Shakespeare, a Bíblia, Sterne etc. Mas ainda fica a pergunta: será que nosso grande escritor não entrou no Realismo para ‘competir’ com Eça de Queirós? O Primo Basílio parece ter ofuscado Iaiá Garcia, o que deixou Machado com raiva, talvez… De qualquer forma, a crítica de Machado de Assis não abala o apreço que os fãs de Eça têm por ele e as obras realistas de Machado também não são piores por terem sido escritas, pelo menos inicialmente, por inveja de um escritor que vivia do outro lado do oceano. E claro que, pelo menos por enquanto, essa hipótese da ‘poética da emulação’ não foi confirmada, então não se pode ter certeza das reais causas de Machado ter iniciado sua carreira realista.”
DEFESA DO PORTUGUÊS
Em resposta à crítica de Machado, escreveu Eça: “Devo dizer que os críticos inteligentes que acusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de l’Abbé Mouret, não tinham, infelizmente, lido o romance maravilhoso do Sr. Zola, que foi, talvez, a origem de toda a sua glória. A semelhança casual dos dois títulos induziu-os em erro. Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade córnea ou má-fé cínica poderiam assemelhar esta bela alegoria idílica, a que está misturado o patético drama de uma alma mística, a O Crime do Padre Amaro, simples intriga de clérigos e de beatas, tramada e murmurada à sombra de uma velha Sé de província portuguesa”. Comentário contundente e firme, principalmente pela “obtusidade córnea” com que se refere a Machado de Assis.
Além disso, e de acordo com o próprio Eça, seu livro “foi escrito em 1871, lido a alguns amigos em 1872 e publicado em 1874. O livro do Sr. Zola (...), que é o quinto da série Rougon-Macquart, escrito e publicado em 1874”. Ou seja, são do mesmo ano. Segundo Eça, claro, pois os fatos parecem contradizer tais afirmações. Mas isto é irrelevante.
DA INVEJA AO CIÚME
Relevante, no caso, é a chegada ao Brasil de Carolina Augusta Xavier de Novais, irmão do poeta Faustino Xavier de Novais, que passou à nossa história literária graças ao título de cunhado, já que sua obra é totalmente desconhecida.
Desembarcando no Rio de Janeiro em 1866, aos 31 anos, já incluída na categoria de balzaquiana, casou-se com Machado três anos depois, em 1869, tendo ele 30 anos e ela, 34. O motivo de sua vinda é controvertido. Dizem alguns que trazida por doença do irmão, que aqui vivia sozinho, necessitando, portanto, de companhia de parente próximo. Outros, no entanto, mais próximos talvez da verdade, alegam que o motivo foi, simplesmente, desilusão amorosa, o que não é de todo improvável.
A VERDADEIRA HISTÓRIA?
Certo é que Carolina sempre foi apaixonada por literatura (especialmente romances) e... escritores, o que não chega a ser novidade, sendo mesmo bastante comum, pelo menos na época. Conheceu Eça em Lisboa, em 1862, tendo ele 26 anos, quando ela já contava 27. São desconhecidos os detalhes de seu relacionamento. Sabe-se apenas que o romancista já visava altas alianças, dedicando-se à diplomacia e à frequentação de círculos nobres. Seu pai, José Maria d'Almeida de Teixeira de Queirós, era magistrado, cavaleiro e par do reino. Tanto que o filho se casou apenas aos 40 anos e com uma nobre: dona Emília de Castro Pamplona Resende, irmã do 50 conde de Resende. Modesta, Carolina era apenas uma jovem bonita, culta e inteligente. Sofria, contudo, do mal comum a tantas outras mulheres da época: não forneceria ao marido nem dote nem título.
Apresentada pelo irmão a Machado, logo se estabeleceu entre eles sólida aliança intelectual, a princípio, e afetiva, em seguida, culminando no casamento, que durou todo o restante da vida de ambos, já que, após a morte de Carolina, o solitário Machado apenas se arrastou pelo mundo, entre a casa, a glória e a Academia.
CAROLINA, MODELO DE CAPITU
Ainda que misantropo, seria pedir muito ao escritor que tirasse do nada (ou, caso prefiram, da imaginação pura) a figura emblemática e finamente desenhada de Capitolina, a deliciosa jovenzinha de olhos de ressaca, que apaixonou tantos sonhadores.
Foi em Carolina que Machado se espelhou. Nunca soube, como ninguém jamais saberia, como se deu a separação de Eça e Carolina. Os motivos eram óbvios: a diferença de classe os separava, mas não as circunstâncias. Choro e ranger de dentes? Desabafo e queixas de lado a lado? Cobranças e insultos? Nada se soube, ou se sabe.
A dúvida que roía Bentinho roeu seu criador durante toda a vida. Nenhum movimento de Carolina traía sua profunda afeição pelo marido, que retribuía na mesma moeda, para usar um chavão indigno dos dois romancistas. Comenta-se que foram felizes. Mas como o próprio Machado sabia, tanto que foi capaz de escrever, brutalmente, “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
No entanto, e para sua infelicidade, o vírus da desconfiança se instalara para sempre em seu amargurado e romântico coração. (Fonte: aqui).

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