"No Brasil, ainda é normal homem pisar em mulher, branco em preto e rico em pobre", diz Anna Muylaert
Por Cláudia Rocha e Guilherme Weimann
Que horas ela volta? é rotulado pela crítica como um filme de arte. Para a diretora Anna Muylaert, entretanto, o longa precisa ser assistido também nas periferias do país. Nada mais justo, já que o roteiro conta a história de Val (Regina Casé), uma empregada doméstica que passou anos trabalhando na casa de uma família rica do Morumbi e tem sua vida alterada com a chegada de Jéssica (Camila Márdila), sua filha que foi deixada no Nordeste e está em São Paulo para prestar vestibular.
Ganhador do Festival de Berlim e com premiação também em Sundance, o filme é a representação brasileira na disputa pelo Oscar. A escolha rompeu uma hegemonia masculina de 30 anos de indicações de diretores homens e acendeu um debate sobre o machismo no cinema.
"O filme estava mais enraizado na realidade do que eu achava."
Mesmo com a agenda lotada, a diretora recebeu o Brasil de Fato SP em sua casa, no último sábado (12) à tarde, e falou sobre a repercussão do filme, que já ultrapassou 150 mil espectadores. Confira a entrevista:
Brasil de Fato SP - Quando você teve a ideia do filme, o objetivo era ter o foco no retrato das relações humanas ou a ideia já era debater questões políticas?
Anna Muylaert - Eu não pensei em política enquanto estava construindo o roteiro. Queria dar um destino melhor para a filha da empregada. Na minha cabeça de dramaturga, eu queria tirar o clichê da maldição da repetição. Durante muitos anos o caminho era igual, a filha vinha para cá ser cabeleireira e acabava como doméstica, assim como a mãe. Eu determinei a mudar isso. A partir do primeiro dia em que apresentei a ideia, a associação com o retrato do período pós- Lula foi imediata. O filme estava mais enraizado na realidade do que eu achava.
Falando um pouco sobre essa nova realidade, que foi alterada devido aos diversos programas sociais implantados na última década, você acredita que houve uma mudança na autoestima do brasileiro?
A partir do Lula, sem dúvida, houve um trabalho de melhoria da autoestima tanto pelo Bolsa Família e pelas cotas raciais nas universidades, como também pela Copa do Mundo e Olimpíadas. Acho que se há algo que o Lula fez foi subir a autoestima das classes menos favorecidas. Mas isso é um pequeno começo, a questão da educação ainda está muito atrasada em relação aos países europeus, por exemplo, que são socialmente mais democráticos. Aqui demos um pequeno passo para o direito à cidadania.
Sobre a personagem Jéssica, como você encara o fato de algumas pessoas interpretarem ela como uma pessoa ‘metida’, quando na verdade ela só quer ser tratada como os outros hóspedes da casa? Como você pensou na personalidade dela?
Ela foi uma menina que teve educação, apesar de não ter dinheiro. Além disso, ela não teve empregada, portanto nem conhecia essas rígidas regras separatistas. A minha ideia é que ela chegaria com uma inocência. Mas, claro que ao perceber aquelas relações, ela simplesmente não acredita. Na cabeça dela, aquelas regras não significam nada. Há quem ache ela arrogante e há quem ache ela maravilhosa. Dependendo do que você acha da Jéssica fica claro em quem você vota.
"Há quem ache ela [Jéssica] arrogante e há quem ache ela maravilhosa. Dependendo do que você acha da Jéssica fica claro em quem você vota."
Foram realizadas cabines [sessões de teste com o público] só com empregadas domésticas. Como foi a reação delas? E os patrões? Você chegou a ser vítima de algum discurso de ódio por causa do filme?
Eu soube que, após a sessão, rolou um desabafo de um grupo [das domésticas] com coisas que estavam presas por muito tempo na garganta. Mas, muitas ficaram bastante travadas. Esse jogo de regras é um jogo invisível. O filme mexe muito com os dois lados. Tanto com o patrão, que sai de lá e diz que vai aumentar o salário da empregada, quanto com elas que se enxergam no filme e ficam motivadas a deixar de aceitar humilhações. Eu esperava que eu fosse vítima [de discurso de ódio], mas estranhamente ainda não houve. Os patrões usam o filme como um momento de revisão de atitudes e valores. Mas já fiquei sabendo de duas mulheres que levantaram e saíram da sala revoltadas em uma das cenas da Val, o que eu achei bem chocante.
Você costuma brincar que o seu filme é um filme de “nadas”, porque os principais pontos estão relacionados a situações do cotidiano, que só têm importância pelo contexto, como é o caso da problemática em relação às personagens com a piscina da casa. Como foi essa construção do roteiro?
Eu estava girando atrás de uma solução quando, em agosto de 2013, seis meses antes da filmagem, minha fotógrafa, a uruguaia Bárbara Alvarez, me deu um livro do Cortázar com o conto Casa Tomada. Assim, achei uma solução para a Jéssica. Ela viria inocente das regras, e iria quebrando essas regras, até ser expulsa de volta. Quando a patroa entra na cozinha e a Jéssica está tomando sorvete, a cena é quase de um filme de terror. Mas a tensão está justamente na percepção das pessoas. Não há nada demais no fato de uma adolescente estar tomando sorvete.
Você optou por retratar uma família onde a mulher é protagonista e tem um papel mais autoritário. Teve algum motivo específico para a escolha?
Não foi uma opção consciente. Isso foi baseado na minha visão. Eu acho que os homens estão muito fragilizados perante as mulheres atualmente. Acho que as mulheres estão muito fortes. Eu, por exemplo, sou cineasta e criei dois filhos sozinha. Trabalhei com os meus dois braços, enquanto boa parte dos homens trabalha com um braço só, já que chegam em casa e dormem. Acho que na América Latina é muito forte esse conceito do homem não ajudar em casa. Apesar de estarmos poderosas, a gente ainda não quebrou o tênue fio dessa regra machista. Nós, mulheres, precisamos dizer ‘estamos fazendo o serviço, então não manda em mim’. Porque os homens não fazem, aí as mulheres fazem, e no final eles chegam e tiram a foto ao lado do prefeito. Isso acontece em todas as classes e em todos os países. Eu acho que a nova onda feminista é a missão da mulher dizer para o homem que ele está agindo de maneira ridícula.
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