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"...Em pequenos capítulos com sabor de crônica, muitas vezes hilariantes, Marcelo relembra um assalto, o ataque de um animal misterioso ao escritório da equipe, uma visita incógnita de Roberto e Lily Marinho ao Estação Botafogo; evoca episódios insólitos ocorridos nas salas de cinema e nos banheiros, figuras folclóricas da cinefilia carioca, encontros notáveis em festivais internacionais."
Marcelo França Mendes saiu na frente no relato de uma história do maior interesse da cultura carioca – e por que não brasileira? – nas últimas quatro décadas. A trajetória do Circuito Estação pode ser contada sob perspectivas diversas pelos seus diferentes sócio-fundadores. A de Marcelo é uma delas, bastante pessoal, mas informada por sua inserção visceral nas funções de programador, diretor executivo, empreendedor e até engenheiro amador durante 30 anos.
Eu que Amava Tanto o Cinema (editora Cobogó, 335 pág.) seduz o leitor já na largada com um panorama da cultura cinéfila e seus desdobramentos nos anos 1980, quando Marcelo, Adhemar Oliveira, Adriana Rattes, Ilda Santiago e Nelson Krumholz se lançaram na aventura de pegar o decadente cine Coper e criar uma forma nova de oferta cinematográfica no Rio de Janeiro. Alguma coisa que unisse a tradição cineclubística com o empreendimento comercial.
Para quem, como eu, vivenciou aqueles dias do lado de fora do balcão, é fascinante conhecer em detalhes o que acontecia do outro lado. Marcelo conta com riqueza de detalhes e muito humor os passos iniciais da jornada, com poucos recursos, muita intuição e uma paixão fervorosa pela cinefilia deles e dos outros.
Quem se lembra, por exemplo, que naquela pequena galeria da Rua Voluntários da Pátria onde hoje é o Estação Net Botafogo havia um cabeleireiro, uma loja de venda de ouro, outra de objetos de decoração e o bar do Seu Miguel? Ou que o falecido crítico Rogério Durst tinha sido baleiro do cinema? Quem jamais soube que o mítico gato Murnau, que frequentava mansamente as sessões, era na verdade uma gata e se chamava Pantera? Quem algum dia desconfiou que Adriana e Nelson tinham sido namorados na era pré-Estação?
O livro evolui assim, transitando entre as memórias pessoais, os detalhes curiosos e a descrição da trajetória empresarial. Vai conectando os fatos com os filmes, mostras, festivais, viagens, relações com a clientela cinéfila e, sobretudo, a luta cotidiana para superar obstáculos, fazer muito com pouco dinheiro e expandir o sonho para outros pontos da cidade e fora dela. O projeto do Estação Mandela é um desses sonhos que acabaram se transformando em pesadelos.
Neto do dono das memoráveis balas Ruth – aquelas com figurinhas dos anos 1950 –, Marcelo é vocacionado para o empreendedorismo, o que nem sempre significa sucesso, podendo também implicar o risco e eventualmente o equívoco. No livro, ele não se furta a assumir sua parcela de responsabilidade por algumas iniciativas que redundaram em fracasso e levaram o Estação a algumas crises sérias. Mas reivindica sempre a falta de outra saída para enfrentar o endividamento e a falência que várias vezes rondou o circuito. Não mede palavras para expor o seu ponto de vista nas circunstâncias que o retiraram, primeiro, da equipe do Festival do Rio em 2011, depois da própria empresa em 2015. Resguarda, contudo, uma menção de respeito e admiração pelos colegas que deixou para trás.
Vale ressaltar que, apesar de doce-amargo, o tom predominante no livro é o prazer de reviver as memórias de um tempo efusivo, marcado pelo companheirismo e a audácia. Em pequenos capítulos com sabor de crônica, muitas vezes hilariantes, Marcelo relembra um assalto, o ataque de um animal misterioso ao escritório da equipe, uma visita incógnita de Roberto e Lily Marinho ao Estação Botafogo; evoca episódios insólitos ocorridos nas salas de cinema e nos banheiros, figuras folclóricas da cinefilia carioca, encontros notáveis em festivais internacionais.
A escrita é fluente e extremamente agradável, mesmo quando envereda pelo cipoal das finanças e da logística. Temos ali o perfil memorialístico de um fã de cinema que batalhou, acertou e errou no afã de estender seu entusiasmo a quantos pudesse contagiar. Em algumas ocasiões, eu mesmo conheci o seu temperamento difícil, que ele mesmo admite. Mas também admiro sua criatividade e seu empenho, tendo compartilhado com ele momentos de convergência e cumplicidade, como na edição do catálogo do primeiro Festival do Rio e no seu projeto da Escola Permanente de Cinema.
Mais importante que tudo isso, tínhamos em comum a paixão por Nastassja Kinski nos anos 1980. Eu não fui sortudo a ponto de ter o ombro dela esbarrando no meu braço, como aconteceu com ele no Festival de Berlim. Mas levo a vantagem extraordinária de ter tirado uma foto da diva no Festival de Moscou e colhido um autógrafo com um PS que me deixou sem dormir por uma semana. - (Fonte: Blog Carmattos - Aqui).
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