Temas contemporâneos predominam em quatro dos seis documentários a que pude assistir, do total de doze produções internacionais em competição no 27º Festival É Tudo Verdade, encerrado domingo. Retratos do Futuro (2021), de Virna Molina, é o único derivado da reação ao confinamento imposto pela pandemia, tendo sido realizado a partir de gravações das trabalhadoras do metrô de Buenos Aires feitas em 2018 e 2019; Batata (2021), de Noura Kevorkian, acompanha Maria, refugiada síria, ganhando a vida em plantações de batata no Líbano, entre 2009 e 2019; O Filme da Sacada (2021), de Pawel Lozinski, gravado antes da pandemia durante dois anos e meio, compõe um mosaico com as reações de quem aceita conversar, entre os passantes na calçada em frente à varanda onde a câmera está postada; e Navalny (2022), de Daniel Roher, acompanha o personagem-título, considerado o rival político mais vigoroso de Vladimir Putin, preso em janeiro de 2021 quando voltou à Rússia vindo da Alemanha, após ter sobrevivido a um envenenamento criminoso. A atualidade desses quatro temas responde em parte pelo valor dos documentários resultantes.
Os dois outros filmes a que assisti – O Processo – Praga 1952 (2021), de Ruth Zylberman, e Ultravioleta e a Gangue das Cuspidoras de Sangue (2021), de Robin Hunzinger –, produções francesas, recuperam episódios do passado e têm virtudes próprias: Zylberman espera que seu filme “possa mostrar o que acontece com uma sociedade em que a mentira é mais importante do que a verdade”. Hunzinger, de seu lado, reconstitui o primeiro amor de duas adolescentes, esmaecendo a fronteira entre ficção e documentário a ponto de torná-la imperceptível. Recorre no roteiro às cartas enviadas à sua avó, Emma, a partir de 1923, e lança mão de vasto acervo de raridades – filmes de família, a maioria em 9,5 mm.
Produção do Líbano, Canadá e Catar, Batata, assim como O Filme da Sacada, produção polonesa, foram gravados por equipes de só uma pessoa – Kevorkian e Lozinski, respectivamente, acumulando direção, fotografia e som.
No caso de Batata, “dedicado aos sobreviventes de genocídios e guerras”, gravar durante dez anos permitiu captar transformações e permanências ao longo do tempo, além de, em especial, mostrar os efeitos da guerra civil iniciada na Síria em 2011. A câmera observa as duras condições de vida e trabalho dos refugiados em acampamentos no Líbano. Não há imagens do conflito, salvo em breves noticiários ocasionais de televisão assistidos pelos personagens. A impressão de placidez das plantações de batata é ilusória. Maria, a personagem central, “sem lar, nem país”, encerra os 126’ do filme dizendo: “Eu tenho que continuar. Vou cuidar da minha família e parentes… Não sei o que o futuro nos reserva. Temo que acabemos como os palestinos, vivendo em campos de refugiados por mais de sessenta anos!” A sequência final começa com Maria caminhando em direção à câmera e indo até uma cerca de arame. Olhando através das aberturas, ela vê paisagens diferentes, ora uma plantação, ora um acampamento. Por um instante, a cerca não está mais à frente de Maria. Ela vai até o trator, assume a direção e segue pelo caminho enlameado, antes do epílogo em que os créditos se alternam com imagens e breves informações atualizadas sobre os diversos personagens.
Fazendo algumas adaptações, O Filme da Sacada retoma a linhagem tradicional que remonta, na literatura, ao conto A janela de esquina do meu primo (1822), de E.T.A Hoffmann, nos antecedentes da fotografia ao Ponto de vista de uma janela da propriedade de Le Gras em Saint-Loup-de-Varennes (1826 ou 1827), de Nicéphore Niépce, e no cinema ao documentário Tishe! (2003), de Viktor Kossakovsky, gravado com a câmera oculta atrás das janelas do seu apartamento de esquina em São Petersburgo.
Lozinski, ao contrário do diretor russo, não grava escondido. Pelo contrário, expõe não só a si mesmo, mas também seu equipamento, postados na varanda do primeiro andar e se dirige aos passantes na calçada, um pouco abaixo, propondo uma conversa. Em geral mantém a câmera fixa, com algumas panorâmicas, poucas e pequenas variações de ângulo e enquadramento. Para o diretor, o documentário resulta do “interesse pelo mundo e pelas pessoas”.
Embora movido pela curiosidade, Lozinski declarou que estava “sem qualquer ideia para um filme. Então pensei que talvez estivesse um pouco cansado de correr atrás de bons protagonistas, sabe, indo a algum lugar no exterior para o próximo filme. Então decidi não me mover e observar. Tentei provar apenas que não é preciso correr atrás para descobrir protagonistas. Isso é bom. Quando você fica parado com a câmera, como eu fiz em um lugar fixo, aí todo o mundo virá e entrará em quadro.” (entrevista completa disponível em https://businessdoceurope.com/locarno-film-fest-the-balcony-movie-by-pawel-lozinski/).
Como não podia deixar de ser, a seleção das mais de mil conversas gravadas resulta heterogênea, mas nem por isso deixa de ser reveladora, indo desde uma simples exclamação – “A vida está uma merda!” – até um inesperado flagrante político na sequência em que os passantes, a caminho de uma manifestação, carregam a bandeira vermelha e branca da Polônia e se ouve em off: “Deus, honra, pátria!”; “Orgulho, orgulho, orgulho nacional!”; “Todo polonês, grite conosco: ‘Não!’ Aos malditos imigrantes!”
Lowinski “acha que ter contato com pessoas tem significado em nossas vidas ou na minha vida, especialmente depois da Covid, quando estamos com tanta sede de conhecer pessoas, de falar com elas, de simplesmente nos divertir com elas.” (idem fonte indicada acima).
Produzido na Argentina, Retratos do Futuro é um exercício de linguagem inventivo que, por imposição da pandemia, recorre a gravações feitas da janela, além de imagens de arquivo, fotografias e, conforme já mencionado, ao material que já havia sido gravado com as trabalhadoras do metrô. “É difícil tentar ver o mundo desta janela”, comenta Molina na narração feita em primeira pessoa.
Ensaio de militância feminista, Retratos do Futuro inclui uma manifestação de protesto contra o assassinato de Marielle Franco, realizada em março de 2021 na estação Rio de Janeiro do metrô de Buenos Aires. As manifestantes declaram que continuarão a perguntar: “Quem mandou matar Marielle?” Cantam, em seguida, O Bêbado e a Equilibrista: “… Azar/A esperança equilibrista/Sabe que o show de todo artista/Tem que continuar.” Próximo ao final de Retratos do Futuro, a voz masculina da narração diz: “O tempo para pensar acabou. Volta ao normal. O isolamento acabou. O tempo para pensar acabou. Ela ficou mais pessimista depois da pandemia.” A voz feminina, porém, retruca: “Não sou pessimista. Seria pessimista se acreditasse no Sistema.”
A pedido de Daniel Roher, diretor canadense de Navalny, produção americana da HBO Max e CNN Films, Alexei Navalny deixa uma mensagem gravada para o povo russo antes de voltar da Alemanha para Moscou, em janeiro de 2021, caso fosse preso ou “o impensável acontecesse e fosse assassinado”. Por momentos, ele sorri meio constrangido e diz, primeiro em inglês: “Minha mensagem… é muito simples: não desista.” Fluente em russo, é mais enfático: “Vocês não têm permissão para desistir. Se eles decidirem me matar, significa que somos incrivelmente fortes. Precisamos utilizar esse poder para não desistir, para lembrar que somos uma grande potência que está sendo oprimida por esses caras maus. Não percebemos o quanto somos fortes. A única coisa necessária para o triunfo do mal é que as pessoas boas não façam nada. Portanto, não fiquem inativos.” De expressão séria enquanto fala, depois de concluir Navalny abre um grande sorriso.
É preciso não esquecer, porém, que no documentário a ordem cronológica das duas sequências finais é invertida. As imagens imediatamente anteriores às declarações em inglês e russo, gravadas provavelmente no final de 2020 ou em janeiro de 2021, são, na verdade, posteriores. Navalny está preso, após ter voltado para Moscou e sobrevivido por pouco a uma greve de fome. Devem ter sido feitas em abril de 2021, quando a advogada Olga Mikhailova, depois de visitá-lo no cárcere, disse que “ele perdeu 15 kg [em três meses]. Está perdendo a sensibilidade das mãos; já perdeu o uso parcial das pernas. Está tossindo e com febre. Continua a recusar alimentos e outros nutrientes até que sua exigência de um médico especialista escolhido por ele – direito garantido pela lei russa – seja atendida. Em resposta, a administração da prisão ameaça começar a alimentá-lo à força.” (“Why Alexei Navalny returned do Russia”, Masha Gessen, The New Yorker, 13 de abril de 2021). No dia seguinte à visita da advogada, Yulia Navalnaya visitou o marido na Colônia Penal. “Em um post no Instagram, ela escreveu que ele estava fraco e mais magro do que após semanas em coma. ‘Ele disse para dizer olá a todos’, ela escreveu. ‘Ele não teve força para acrescentar que tudo vai ficar bem. Então eu vou adicionar isso. Ele é o melhor. Com certeza tudo ficará bem.” (mesma fonte da citação anterior).
Três imagens pungentes gravadas na prisão mostram Navalny sozinho, atrás de uma grade, em uma pequena cela na Colônia Penal nº 2, em Pokrov, a cerca de 100 km de Moscou, vista em sobrevoo de drone no plano inicial da sequência. Condenado em março a nove anos de prisão, tinha pena anterior a cumprir de dois anos e meio. Navalny está de pé, de frente para a câmera. Vestido com o que parece ser um uniforme de preso, tem um crachá de identificação na altura do peito, do lado direito. Com a cabeça raspada, magro, olheiras profundas, ele apoia as duas mãos nas grades. No plano seguinte, a única diferença é suas mãos estarem cruzada por fora da grade. No terceiro plano, ele faz o “v” da vitória com os dedos médio e indicador das duas mãos e sai da cela e de quadro. No documentário, seguem-se as declarações de Navalny em inglês e russo transcritas acima: “Minha mensagem… é muito simples: não desista” etc.
*
Acabei de escrever esta coluna no final da manhã de domingo. Na cerimônia de encerramento do 27º Festival É Tudo Verdade, marcada para as 18 horas, seriam anunciados os filmes premiados.
Por volta de 19 horas recebi release informando que Quando Falta O Ar, de Anna Petta e Helena Petta, comentado na coluna de 6 de abril, ganhou o prêmio de Melhor Longa-Metragem Brasileiro, e O Filme da Sacada, de Pawel Lozinski, (comentado acima na coluna de hoje) foi premiado como Melhor Longa-Metragem Internacional. Menções Honrosas foram atribuídas a Sinfonia de Um Homem Comum, de José Joffily, e a Ultravioleta e a Gangue das Cuspidoras de Sangue, de Robin Hunzinger. - (Fonte: Revista Piauí - Aqui).
Nenhum comentário:
Postar um comentário