domingo, 18 de agosto de 2019

JOGO COMBINADO


"Na noite de domingo (09/06/2019) uma cena do filme Boleiros (1998), do cineasta Ugo Giorgetti, me veio à mente. Nela, Virgílio, um árbitro de futebol interpretado pelo ator Otávio Augusto, foi subornado para garantir a vitória do time visitante sobre o moleque travesso na Moóca. Ele, árbitro maroto, administrou a partida num sonolento empate até que no final do jogo marcou um pênalti escandalosamente inexistente. Apesar das reclamações dos injustiçados, a bola inapelavelmente repousou na marca da cal, como descreveram os locutores das rádios.
Coringa se apresentou para cobrança. Correu, chutou e o goleiro defendeu. Um detalhe fora do script, mas, ainda, controlável. O árbitro determinou o retorno da cobrança: “o goleiro se mexeu antes”. Então, a bola voltou às mãos do atleta que desperdiçou novamente a penalidade, em mais uma defesa do arqueiro. Partícipe da máxima de que combinado é combinado, Virgílio anulou mais uma vez a jogada sob o mesmo pretexto. Desta vez, a fim de evitar novos contratempos, o árbitro se dirigiu ao incompetente jogador e lhe sentenciou: “some daqui; bate outro”. E assim sucedeu. As redes ainda balançavam quando Virgílio assoprou o apito, encerrando o jogo, com a vitória dos visitantes.
O retrato da cena transcende as linhas do campo de jogo. Ele nos permite enxergar o comportamento inadequado e desprezível de alguém que – apesar de ser obrigado a agir com isenção e imparcialidade nas decisões atinentes ao exercício de sua função – traiu a confiança nele depositada, comprometendo o resultado da partida e o espírito do esporte.
Com as cautelas necessárias, recordar desta cena do filme após tomar conhecimento do teor de parte dos diálogos mantidos pelo, então, juiz Sérgio Moro e o procurador da República, Deltan Dallagnol, parece-me bastante adequado. Embora causem constrangimento e indignação a qualquer pessoa com formação jurídica e com atividade profissional relacionada ao direito, tais mensagens não surpreenderam a muitos de nós, que já apontávamos para a suspeição daquele juiz para instruir e julgar as ações penais envolvendo o ex-presidente Lula. 
Tanto, atualmente, em comunidades primitivas, onde as regras jurídicas podem ser mais rudimentares quanto nos períodos históricos mais remotos, em que as sociedades foram paulatinamente abandonando a jurisdição voluntária, isto é, capacidade de solucionar o conflito social sem intermédio de terceiros, um dos pressupostos para impedir esse “fazer direito com as próprias mãos” era o de se garantir a isenção e imparcialidade de quem mediaria ou julgaria o litígio.
No decorrer da história, com o fortalecimento do Estado e a consolidação teórica da tripartição dos poderes, ao Poder Judiciário foi delegada a responsabilidade de apaziguar a sociedade colocando fim aos conflitos. A pedra angular, para tanto, repousaria na garantia concedida aos cidadãos de serem julgados por magistrados e magistradas isentas, imparciais e equidistantes, isto é, sem desejos prévios, sem emitir juízos antecipados e, fundamentalmente, sem auxiliar a alguma das partes, mas sim, submetendo os argumentos apresentados nos processos judiciais à luz dos costumes, regras ou princípios, aplicados a depender do tempo histórico e do lugar. O ordenamento jurídico de nosso país, assim como em todo mundo ocidental, adotou esse modelo ao prever a necessidade de isenção e imparcialidade do (a) magistrado (a) no caso concreto. 
Analisando as reações às conversas divulgadas entre Moro e Dallagnol, nas manifestações em redes sociais se percebe um grupo formado por pessoas que não se importam com a violação de normas jurídicas por integrantes da magistratura ou do Ministério Público, desde que o fim por elas pretendido seja alcançado. Usam camisetas com estampa de fotografias de juiz, colocam adesivos em seus carros em apoio a uma operação policial, criam até república de uma cidade, para manter a prisão do ex-presidente Lula e para afastar seu partido do poder. 
As manifestações de apoio aos resultados da operação Lava Jato, isto é, golpe de Estado, prisão de Lula, eleição de Jair Bolsonaro, entre outros, advindas deste agrupamento social não devem surpreender. Diferentemente das tentativas por integrantes do (sub)mundo jurídico e parte dos veículos de comunicação de naturalizarem e banalizarem o acervo divulgado até aquele momento pelo site The Intercept, taxando-as como conversas corriqueiras entre operadores do direito. Não são!!! 
Não é natural ou banal um juiz perguntar a um promotor se “não é muito tempo sem operação?”, algo que não se refere à magistratura, mas diz respeito ao trabalho do Ministério Público e da Polícia Federal, cujas provas obtidas e os eventuais excessos serão analisados e julgados por este mesmo juiz (conversa em 31/08/2016). Também não é natural, banal ou corriqueiro, um juiz aconselhar promotor a apressar o julgamento em segundo grau de um processo cuja sentença condenatória ele já proferiu, tudo isso para evitar a soltura do réu (conversa em 27/06/2017 sobre a absolvição de Vaccari). Muito menos, soa natural, banal ou corriqueiro um juiz indicar ao Ministério Público uma possível testemunha contra um investigado que ele mais tarde julgará (conversa em 7/12/2015).
Igualmente, não se mostra “normal”, corriqueira ou banal a conversa entre um juiz e um procurador da República em que ambos decidem levantar o segredo de justiça, liberando acesso a terceiros de gravações de áudios, entre elas, um diálogo envolvendo a então presidenta da república e o ex-presidente Lula, obtido sem autorização prévia do Supremo Tribunal Federal. Da leitura das mensagens trocadas nesse dia pode-se inferir que o vazamento dos áudios havia sido deliberado anteriormente, mas, a nomeação do ex-presidente Lula para o Ministério da Casa Civil teria ocasionado alguma hesitação, em especial, pela consequente aquisição de foro privilegiado pelo então investigado (conversa de 16/03/2016).
Os áudios foram usados politicamente para macular a imagem pública da então presidenta Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula, sendo a divulgação massificada por vários órgãos de imprensa, sustentando-se a tese de que a nomeação dele como ministro ocorrera exclusivamente para lhe garantir foro privilegiado. 
Não sendo possível neste artigo abordar todos os desdobramentos destes fatos, se mostra importante ao menos registrar que o ex-presidente Lula foi impedido de assumir o ministério e, portanto, não adquiriu foro privilegiado, permanecendo ao alcance da Lava Jato, o que parece ter sido a pretensão inicial do vazamento dos áudios.
Algumas das mensagens trocadas entre Dallagnol e Moro parecem apontar uma preocupação obsessiva, nutrida por ambos, para fixar a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para tramitação da futura ação penal movida contra o ex-presidente Lula. Este assunto foi abordado em uma das conversas quando Moro anunciou reservadamente ao procurador que o conflito de competência com São Paulo relativo à ação do triplex teria solução favorável a Curitiba, mantendo o ex-presidente na mira de ambos (conversa em 13/03/2016) e indicando que o ex-juiz já tinha conhecimento de qual seria a decisão do STF a esse respeito. 
Todas essas medidas e preocupações compartilhadas entre o ex-juiz e o procurador-chefe da Operação Lava Jato somente se tornariam efetivas com a ação penal movida contra o ex-presidente. No entanto, sem elementos palpáveis de enriquecimento ilícito, sem existirem sequer indícios probatórios de envolvimento direto de Lula nos esquemas de corrupção investigados, a estratégia adotada foi de buscar relacionar o apartamento no Guarujá e o sítio em Atibaia, como propinas recebidas de empreiteiras por Lula, tendo por origem contratos da Petrobras. 
Aparentemente, pelas mensagens divulgadas, nem Deltan Dallagnol se convenceu da versão levada ao público na entrevista coletiva e expressada na denúncia oferecida contra o ex-presidente. Ocorre, no entanto, que se não se fizesse relação direta do apartamento com a Petrobras, ele não seria o promotor natural para a investigação e Sergio Moro não seria o juiz a julgar o ex-presidente. Foi necessário, portanto, a ação combinada entre o procurador da República e o então juiz para garantir que ambos processassem e julgassem o ex-presidente Lula.
Como se percebe nada há de normal, banal ou corriqueiro no teor destes diálogos! Houve, no entanto, quem dissesse se tratar de uma situação comum nos meios jurídicos, a despeito de ser vedada pela lei. 
Não seria verdadeiro negar a existência de situações em que o (a) magistrado (a) age em desacordo com os preceitos legais e, pelos mais variados motivos, atuando assim propositadamente em benefício de uma das partes do processo judicial, decidindo sem isenção e de forma parcial. São acontecimentos de evidente violação ética e de quebra da confiança outorgada pelo Estado no representante da magistratura e que constituem atos ilegais, compondo os subterrâneos do mundo jurídico e que ao emergirem devem sofrer as consequências legais.
Sempre que gente como Virgílio – nosso árbitro do filme de Giorgetti – é desmascarada a conduta esperada dos dirigentes do futebol é a de punir o fato com a aplicação das sanções previstas em lei, inclusive, na esfera criminal. Do contrário, passa-se a sensação de inexistir seriedade no esporte, retirando sua credibilidade diante do público. 
Comportamento similar é o mínimo a esperar do Poder Judiciário em relação aos processos judiciais onde o ex-juiz Sergio Moro agiu sem isenção e de maneira parcial, perseguindo os réus até a efetivação de suas prisões. Sem a declaração de nulidade em todos os processos, o Poder Judiciário não conferirá a resposta institucional necessária a fim de resguardar a credibilidade ainda remanescente do sistema de justiça do país."


(De Nasser Ahmad Allan, artigo intitulado "Jogo combinado", publicado no Jornal GGN - Aqui.

Conforme notas do autor, 
¹ Este artigo foi elaborado logo após a divulgação da primeira matéria relacionada aos diálogos entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, pelo The Intercept Brasil, em 9 de junho de 2019. Uma primeira versão deste artigo foi publicada pela Revista Carta Capital, em 14 de junho de 2019, estando disponível em: https://www.cartacapital.com.br/justica/jogo-combinado/.  
² NASSER AHMAD ALLAN, Mestre e Doutor em Direito pela UFPR, Pós-doutorando em Direito na UFRJ, advogado em Curitiba, Diretor do Instituto de Defesa da Classe Trabalhadora [Declatra], integrante da Rede Lado, membro da Associação de Juristas pela Democracia [ABJD].
A editora Tirant Lo Blanch, com o apoio dos Institutos Defesa da Classe Trabalhadora [(Declatra] e Joaquín Herrera Flores, prepara para o início de setembro o lançamento do livro “Relações Obscenas”. A publicação reúne artigos que analisam os principais pontos revelados, até o momento, sobre a série de reportagens #VazaJato, publicada pelo The Intercept Brasil, em parceria com outros veículos de comunicação. O artigo acima publicado integra a obra).

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