segunda-feira, 19 de agosto de 2019

CIÊNCIA POLÍTICA JÁ APONTARA AS CONTRADIÇÕES DO MPF

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Afinal, quem controla o controlador? Elementar: a Constituição Federal. E a quem compete guardar a CF? Ao Supremo (art. 102). Em tese, claro. Ou a Carta Magna não deve(ria) prevalecer erga omnes? Sim, deveria ser assim, em tese. Mas não é, ou não vem sendo. Erro, ou, melhor, omissão de origem? O constituinte teria vacilado em 1988, ao deixar praticamente em aberto a questão controle? 
(De qualquer modo, causa espécie ver administradores do Direito e Fiscais da Lei irmanados sob as bênçãos da Organização Maior, inconformados ante à 'ameaça' que a Lei do Abuso de Autoridade estaria a representar, a defender ardorosamente a perpetuidade de 'seu direito' particular de agredir a Constituição Federal e o Estado de Direito). 
No mais, Accountability Já!


Ciência política já apontara as contradições do Ministério Público Federal criado em 1988

Por Álvaro Miranda

Mesmo antes das consequências e repercussões do que ficou conhecido como “mensalão”, na década passada, e agora da operação Lava-Jato, a ciência política já apontara um dos problemas centrais da crise envolvendo hoje o Ministério Público – qual seja, quem controla o controlador – questão clássica que vem de Aristóteles, no século V a. C, quando o filósofo já encarava como dilema, por exemplo, o critério da escolha dos juízes. 
Ou seja, definições e normatividades sobre como deve ser o sistema judiciário são objeto da filosofia política desde tempos remotos – e não de casuísmos de uma jabuticaba brasileira que faz com que leigos e messiânicos acreditem na teoria crítica como algo incentivado por gente de esquerda ou por defensores de corruptos.
Dentre os diversos temas das pesquisas do campo de políticas públicas a partir da década de 1980, um diz respeito ao estudo das instituições e do desenho das organizações estatais no âmbito da teoria democrática. Subtema importante desta teoria é o da “accountability”, palavra sem tradução para o português, disseminada no Brasil durante o auge do receituário neoliberal do Consenso de Washington, na década de 1990. Resumindo, trata-se de um conjunto de mecanismos e elementos visando à prestação de contas para fins de responsabilização.
O termo ficou muito vinculado à fiscalização contábil e à transparência das ações dos agentes públicos, congruente ao espírito do chamado “gerencialismo público”, voltado para maior eficiência dos programas de governo, a fim de atender aos ditames de organismos internacionais. Entretanto, a teoria democrática dos últimos anos mostrou, a partir de trabalhos de autores de diversos países, como a noção de “accountability” não se restringe aos problemas de responsabilização administrativa e financeira, mas sim também sendo extensiva ao mérito das ações públicas no que diz respeito a seus motivos e suas consequências.
No âmbito das ações das corporações jurídicas, tal problema se torna nevrálgico hoje num contexto em que, de um lado, reina um juspositivismo arraigado e, de outro, o neoconstitucionalismo como contraponto ao positivismo jurídico, com suas diversas ideias flexibilizadoras da lei escrita, como, por exemplo, a noção de “mutação constitucional”. Esta sugere, grosseiramente resumindo, mudanças na aplicação da lei sem modificar o texto da lei. 
No imaginário coletivo carente de informação e ciência, a nevralgia desse problema, para esconder dores e cicatrizes, acaba agravando a febre da fetichização do Direito como processo pretensamente isento e justo apartado da Política. Mistificação essa que esconde as intenções políticas e partidárias na propalada isenção técnica. Tanto na teoria como na prática, tal tendência pode conferir ao Direito, para o bem e para o mal, a natureza de arma política na guerra entre grupos e classes sociais – e não de instrumento civilizatório de busca da justiça para todos de forma equânime. Assim, o que é nevralgia acaba implicando a administração de remédios para enfermidades sem cura.
Em pouco mais de uma década quatro trabalhos têm sido notáveis a respeito dos problemas envolvendo o Ministério Público, três deles do pesquisador Fábio Kerche. O primeiro, sob o título “Autonomia e Discricionariedade do Ministério Público no Brasil”, foi publicado pela  Dados – Revista de Ciências Sociais (Rio de Janeiro, 2007, vol. 50, nº 2, pp: 259-279), do então Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).
O autor mostra o processo constituinte de 1987/1988 que resultou no desenho institucional do atual Ministério Público, com suas contradições, avanços e recuos, num momento em que a sociedade brasileira tentava recuperar importantes elementos de salvaguarda da democracia como resposta a vinte anos de ditadura. Dentre outros elementos, estavam em jogo a garantia dos direitos fundamentais e instrumentos para coibir abusos do estado e de agentes públicos. 
Resumindo, Kerche argumenta que, de forma atípica, o Ministério Público acabou se fortalecendo e se autonomizando sem uma “accountability” correspondente sobre seus atos por parte de outros agentes ou organismos estatais ou da sociedade. “A argumentação de que a defesa de certos interesses pelos promotores por meio da ação civil coincide com a vontade do cidadão não significa que estes controlem a instituição”, observa ele (p. 275).
Diz mais: “(…) o argumento de que os promotores e procuradores somente cumprem a lei, não precisando, por este motivo, de instrumentos de accountability, não se sustenta. É a possibilidade de exercer a discricionariedade, somada à autonomia, aos instrumentos de ação e ao amplo leque de atribuições, que transforma o Ministério Público em uma organização pouco comum à democracia.” (p. 277)
Em trabalho posterior, Fábio Kerche aprofunda a reflexão, porém lembrando que o problema não diz respeito somente ao Ministério Público, mas a qualquer setor não eleito das burocracias estatais. Trata-se do livro “Virtude e Limites: Autonomia e Atribuições do Ministério Público no Brasil” (São Paulo: Edusp, 2009).
Afirma ele que “embora seja prevista uma fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial pelo Parlamento, esta se restringe a questões de responsabilidade do Tribunal de Contas e não se traduz no acompanhamento das atividades propriamente processuais do Ministério Público.” (p. 50). Enfim, os políticos, representantes eleitos, não podem fiscalizar e rever atuações dos integrantes do Ministério Público porque não existem instrumentos legais de “accountability” para essa finalidade.
No mais recente trabalho sobre o tema, o autor participa como organizador, ao lado de João Feres Júnior, do livro “Operação Lava Jato e a democracia brasileira” (São Paulo, Editora Contracorrente, 2018). É uma coletânea de oito artigos com títulos bastante sugestivos: “As consequências econômicas da Lava Jato” (Luiz Gonzaga Belluzzo); “Operação Lava Jato, Judiciário e degradação institucional” (Leonardo Avritzer); “Judiciário e crise política no Brasil hoje: do mensalão à Lava Jato” (Fernando Fontainha e Amanda Evelyn Cavalcanti de Lima); “Os impactos da Operação Lava Jato na Polícia Federal brasileira” (Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Lucas e Silva Batista Pilau; “O impacto da operação Lava Jato na atividade do Congresso Nacional” (Maria do Socorro Souza Braga, Flávio Contrera e Priscilla Leine Cassota); “A Lava Jato e a Mídia” (João Feres Júnior, Eduardo Barbabela e Natascha Bachini) e “Lava Jato: escândalo político e opinião pública” (Érica Anita Baptista e Helcimara de Souza Telles).
Na introdução, Kerche e Feres Junior observam o seguinte: “O problema é que assistimos nos últimos anos, e em especial na Operação Lava Jato, a hipertrofia de burocracias de Estado que tem uma conexão fraca com a legitimidade do voto, combinada com seu insulamento (Nota deste Blog: insulamento = isolamento; ato de agir solitariamente]). Instituições como O Ministério Público, a Polícia Federal e, de maneira mais complexa, pelo menos do ponto de vista da teoria política, o Poder Judiciário ganham a arena pública, definindo prioridades e escolhendo seus alvos sem, contudo, prestar contas e sem serem passíveis de punição pelos cidadãos – aquilo que a Ciência Política chama de accountability.” (p. 13)
Para terminar, não se pode deixar de mencionar um livro anterior a este trabalho, que é o de autoria de Alzira Alves de Abreu, “O que é o Ministério Público?” (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010). O último capítulo, sob o título “A politização e suas consequências”, traz uma ironia por conta do nome mencionado pela autora – ironia relacionada à Caixa de Pandora, que foi o golpe que derrubou Dilma Rousseff da Presidência da República em 2016.
Nesse capítulo escreveu a autora quatro anos antes do início da Lava Jato, com a ironia aparecendo como profecia uma década antes: “A independência concedida pela Constituição de 1988 ao Ministério Público tem muitas objeções. A instituição tem recebido críticas por fazer uso partidário de suas prerrogativas legais, e muitos jovens procuradores têm exercido suas funções politicamente engajados.” (p. 99). 
O agouro de nevralgia aparece subjacente no texto, sem que a autora soubesse que a menção iria se transformar numa ironia: “O jurista Miguel Reale Jr. declarou que a falta de critérios objetivos para as ações do Ministério Público permite que promotores e procuradores desrespeitem a lei e manipulem investigações de acordo com suas convicções pessoais (o Globo, 1/4/2004).” (p. 99). Seria ocioso dizer aqui o porquê da ironia, mas só para refrescar a memória, lembrando o protagonismo de Reale Jr. no traumático processo de impeachment da presidente da República.  - (FonteAqui).
(Álvaro Miranda – Jornalista, Mestre e Doutor pelo Programa de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da UFRJ).

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