Três 'Contos Maravilhosos' para novos mérito-empreendedores
Por Wilson Ferreira
Hoje a grande mídia esforça-se para demonstrar imparcialidade para não se desmoralizar de vez diante de telespectadores e leitores. Diante da crise econômica crônica e da tragédia social brasileira, a mídia é obrigada a abandonar o confortável campo semiótico da dissimulação (simplesmente mentir, omitir ou censurar) para aplicar a estratégia mais trabalhosa da simulação: tem que mostrar as mazelas brasileiras. Mas o desafio é transformá-las em “contos maravilhosos” no sentido dado pelo pesquisador de narratologia, Vladimir Propp – o estudo da estrutura narrativa recorrente em todos contos de fadas. Agora o jornalismo corporativo tenta transformar personagens anônimos da tragédia brasileira em protagonistas de contos de fadas pós-modernos. O “Cinegnose” analisa três contos maravilhosos midiáticos: o conto “a economia alquímica para as massas”, o conto do “presépio vivo de uma moradora de rua” e o conto “a virada maravilhosa de um homem em um economia que cresceu 0,1%”.
O advento da Internet e das redes sociais não trouxe apenas as chamadas Fake News, como querem as agências de fact-cheking para livrar a cara da grande mídia. Também obrigou a mídia corporativa a mudar as estratégias de manipulação das notícias.
O campo semiótico da dissimulação sempre foi o campo privilegiado da manipulação midiática: esconder, omitir, mentir, censurar – afirmar que nada existe, quando a realidade é encoberta. Se for obrigada a mostrar edita, angula, apresenta apenas as imagens e retira o áudio, retira da escalada de um telejornal, espreme entre duas matérias frias, inverte as relações de causa e efeito do fato. Enfim, se for obrigada a relatar, mostra a realidade editada, montada e recortada.
Mas num cenário de mídias sociais onde os usuários passam mais tempo empunhando dispositivos móveis do que parados diante da TV ou sentados lendo um jornal, a tradicional dissimulação ganhou um limite: esconder passa a ser igual a tentar agarrar a água. Ela escorre entre os dedos. Os fatos podem vazar num tweet, numa postagem do Facebook e ganhar uma disseminação viral.
Por exemplo, em outros tempos, onde os meios de comunicação de massas eram as únicas fontes noticiosas, certamente episódios como o da galhofa racista do Jornalista William Waack seriam no mínimo deixados em segundo plano e ficariam restritos aos “causos” do folclore do jornalismo. Repercutiu fortemente nas redes sociais, obrigando a emissora a tomar a atitude imediata de afastá-lo. (Nota deste blog: Pensando bem, não se deve descartar a possibilidade de a própria Globo haver armado a saída de Waack, vazando o vídeo em que o jornalista demonstra o seu racismo; afinal, ela sabia que as redes bombariam o assunto...).
O cenário das tecnologias da informação pode ter mudado, porém os interesses da velha mídia, decorrentes da manutenção do seu monopólio, continuam os mesmos. Por isso, hoje o esforço da mídia em aparentar imparcialidade para não se desmoralizar de vez diante dos leitores ou espectadores é muito maior – buscam-se soluções criativas, híbridas, heterodoxas. Às vezes desesperadas.
Nesse momento a mídia corporativa começa aos poucos a debandar do campo semiótico da dissimulação grosseira para se aventurar nas estratégias de simulação – ao invés de esconder algo que existe, simular possuir algo que não tem. Ingressar nesse novo campo semiótico significa abandonar a omissão e o encobrimento puro e simples. Agora a notícia deve mostrar as mazelas de uma realidade brasileira. Se não for pela grande mídia, acabará sendo pelas redes sociais.
Agora, as soluções devem passar pela narratologia, misturando elementos de ficção e não ficção, ou seja, tentar encaixar a realidade na morfologia de um “conto maravilhoso” no sentido dado pelo estruturalista russo Vladimir Propp (1895-1970).
Claro que certamente os jornalistas não têm formação acadêmica tão generalista a ponto de conscientemente aplicarem estruturas narratológicas nas notícias.
Assim como os velhos contos de fadas foram inconscientemente adaptados para cumprir a função ideológica de legitimar a ordem familiar do patriarcado, da mesma maneira os “contos maravilhosos” (estrutura arquetípica dos contos de fadas) são na atualidade irrefletidamente resgatados para simular que fenômenos fantásticos animam tanto a política como a economia.
Se Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel e João e Maria receberam adequações para simular uma ordem supostamente natural da família, hoje a estrutura desses contos de fadas roteiriza as notícias da grande mídia para simular, por trás das crises e desgraças, uma ordem fantástica, mágica.
Principalmente com a proximidade das festas natalinas num cenário de crise crônica, desemprego e demissões em massa com a finalidade de precarizar o trabalho daqueles que pensem em um dia retornar para o emprego perdido.
Vamos analisar aqui três contos maravilhosos travestidos de matérias e quadros jornalísticos que mostram como a mídia corporativa é obrigada a se confrontar com a crise econômica, política e humana que ela própria ajudou a criar nos últimos anos de jornalismo de esgoto. Porém, simulando fantásticos contos de fada para tentar elevar a moral dos desempregados promovidos a "empreendedores".
(1) O conto maravilhoso da economia alquímica para as massas
Doutor em Economia e especialista e finanças, Samy Dana responde e-mails de telespectadores no quadro “Economia Popular” do telejornal SPTV Primeira Edição da Globo São Paulo. Definido pela grande mídia (em matérias de revistas como Exame ou em aparição no extinto Programa do Jô) como um “economista com abordagem criativa”, Dana quer que seus alunos de Administração da FGV usem o “instinto criativo” para serem “caras que mudem o mundo”.
E o leitor pode ter certeza: Dana desfila toda sua criatividade nos seus conselhos de “economia popular” para os telespectadores.
Na edição de 22/11 o apresentador César Tralli abriu na tela do estúdio a pergunta de uma preocupada telespectadora: ela escreveu que seu marido era assalariado até o ano passado, foi demitido e agora trabalha como autônomo. Porém, o final do ano está chegando e o 13o salário faz falta. E pergunta: "o quê meu marido pode fazer para isso não se repetir no ano que vem?".
Dany Sana fez o esperado elogio do planejamento, do foco, e, principalmente, da disciplina de reservar um pouco dos rendimentos de cada mês para lá no final do ano disponibilizar esse dinheiro como uma espécie de 13o salário.
Se vivêssemos nos anos 1970 da ditadura militar brasileira, e nos anos do chamado “milagre econômico”, uma pergunta como essa (reveladora da atual perplexidade dos brasileiros diante da radical perda dos direitos trabalhistas) jamais seria colocada no ar, principalmente numa emissora como a Globo. A carta seria jogada na lata de lixo da mesa do editor.
Hoje, a grande mídia é obrigada a se confrontar com as mazelas de um País que vê um abismo sem fundo. E a criatividade do intrépido Dany Sana (capaz de levar um piano para aulas de Administração para instigar o “instinto criativo” nos alunos) é convocada para criar um conto maravilhoso no qual poupança se transmuta em 13o salario.
Ora, seria cruel demais ser franco com o telespectador e simplesmente admitir a realidade: ACABOU o 13o salário! Junto com sua carteira de trabalho... Vire-se e seja "criativo"... É melhor dourar a pílula com um conto maravilhoso.
Sana está sintonizado com uma espécie de economia alquímica dos novos tempos, na qual categorias econômicas se transmutam em outra numa Economia Política mágica que faria os Irmãos Grimm morrerem de inveja.
Assim como na religião do Empreendedorismo a fé move autônomos, microempreendedores, biscateiros etc. a acreditar que um dia a força de trabalho se transmutará em capital (o salário se transformará em lucro tornando o trabalhador em patrão de si mesmo), da mesma maneira Dany Sana manipula sua pedra filosofal que transmuta metal em ouro – a poupança (a renúncia forçada ao consumo, a única forma do trabalhador acumular riqueza) transforma-se maravilhosamente em 13o salário (antiga gratificação que o Capital pagava como prêmio ao trabalhador).
Categorias econômicas distintas (distintas porque representam as diferenças de classes em um sistema econômico – salário X capital; poupança x lucro) tornam-se magicamente conversíveis.
Divulgação/Polícia Militar de São Paulo |
(2) O conto maravilhoso do presépio vivo de uma moradora de rua
“Uma mulher” (assim a grande mídia se referiu à moradora de rua) deu à luz na noite de sábado dia 10 na região do parque do Ibirapuera, em São Paulo. O parto foi realizado por três soldados e um cabo do Batalhão de Trânsito da Polícia Militar. Foram ao local depois de ser abordados por frequentadores do parque que avistaram a moradora de rua em trabalho de parto.
Mais um flagrante da tragédia social brasileira: nos últimos anos o número de moradores de rua na cidade praticamente dobrou - sendo que no Rio de Janeiro o número de moradores de rua com curso superior cresceu 75% em um ano.
Apesar de usar a clássica operação semiótica de dissimulação (omitiu-se que era uma moradora de rua), rapidamente as matérias da grande mídia ao longo do final de semana converteram tudo em uma narrativa de conto maravilhoso.
O parto foi descrito como ocorrido “ao lado” da árvore de Natal do Ibirapuera (símbolo do fim do ano em São Paulo) e os policiais militares praticamente convertidos em Reis Magos bíblicos. E a árvore de Natal acabou se transformando numa espécie de presépio vivo, com direito a selfies de transeuntes e dos próprios policiais.
Em fotos e matérias de telejornais, as indefectíveis imagens dos policiais posando ao lado da mãe, com um olhar entre cansado e confuso, junto ao seu bebê numa manta térmica.
Uma tragédia social transformada em otimista e inspirador conto maravilhoso de Natal. Certamente para levantar o moral de pessoas como aquelas sem 13o salário que Dany Sana tenta encorajar. Afinal, se empreendedorismo é uma questão de fé na bizarra economia alquímica, nada melhor do que um edificante conto de Natal.
Ou então um conto de final de ano para o telespectador se sentir feliz ao descobrir que tem gente pior do que ele...
E, como não poderia faltar, toda narrativa maravilhosa deve ter uma volta à realidade. No dia seguinte, ao visitarem “a mulher” no hospital, um dos soldados do Batalhão de Trânsito virou-se para ela e disse: “agora procure ajuda... procure sua família...”.
Foto: Mauro Pimentel/AFP |
(3) O conto maravilhoso da virada na economia que cresceu 0,1%
Um desses moradores de rua com curso superior no Rio de Janeiro transformou-se em mais um protagonista de um Conto Maravilhoso: um ex-executivo de Recursos Humanos de várias empresas perdeu o emprego e dormia em frente ao Aeroporto Santos Dumont, deixando seus pertences em uma agência bancaria na qual tem conta.
O caso do morador de rua Vilmar Mendonça, 59, já era conhecido pela grande mídia com matérias na Folha e Portal de notícias Uol no meio do ano – clique aqui. Certamente, Vilmar virou uma “informação de pauta”, em modo stand by, à espera da futura pauta da “recuperação” da economia brasileira.
Pois esse momento chegou. Nesse final de ano em que a mídia corporativa tenta levantar o astral comemorando o colosso de crescimento de 0,1% (com muitas matérias mostrando imagens de ruas lotadas no comércio popular da região da rua 25 de Março, São Paulo), eis que o ex-executivo sem teto é convocado com o timing da “virada” – a reviravolta de Vilmar Mendonça que começou por meio de uma entrevista a uma agência de notícias francesa que viralizou nas redes sociais. Com a repercussão, pessoas ofereceram abrigo, dinheiro e “até pedidos de casamento” – clique aqui.
Com a notoriedade virou microempreendedor: tornou-se cooperado em uma consultoria de contabilidade.
Mais uma vez, a matéria lembra a Morfologia do Conto Maravilhoso do pesquisador Vladimir Propp: a separação brutal (crise, desemprego), morte simbólica (ex-executivo sem-teto) e renascimento simbólico (como um microempreendedor).
Sentindo-se vitorioso, diz que já poupou R$ 30 mil. Certamente fez a lição de casa do professor Samy Dana: já conseguiu o seu 13o salário. Agora espera ver a força de trabalho se converter em capital.
Talvez ele próprio seja o elo perdido: o 0,1% que a mídia corporativa tanto comemora...
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