quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

DE COMO PHILIP MARLOWE VOLTOU À AÇÃO (III)

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Para ler o Capítulo 2, clique AQUI.
Sebastião Nunes, autor da série, é natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta. É também titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine.


O país dos canalhas - Capítulo 3 - Batendo na porta certa

Por Sebastião Nunes

Cheguei ao STF às 11 horas da manhã, quando decerto encontraria o ministro Gilmárcio Mendelson polindo as unhas.


– Seu nome? – indagou um porteiro grandão, truculento e bigodudo.
– Philip Marlowe, detetive particular de Los Angeles.
– Que isso, cara, de Los Angeles? – o porteiro parrudo deu uma risada. – E a que devemos a honra de sua visita?
– Quero falar com o ministro Gilmárcio Mendelson.
– Agora ele não pode. Está polindo as unhas. Tente depois do almoço.
– Ele vai me receber, mesmo polindo as unhas. Estou representando Ednardo Cunha e preciso encontrá-lo com urgência.
– Vou ver se ele pode.
Tinha uma placa PROIBIDO FUMAR mas não dei a mínima. Estava na segunda tragada quando o grandalhão voltou e mandou entrar.
– Preciso tirar os sapatos?
O sujeito me olhou como se eu fosse a reencarnação de Buda.
– Não. Aqui não é igreja nem nada do tipo. Aqui é o Supremo Tribunal Federal, onde são julgadas as grandes questões do país. Portanto, muito respeito.
– Respeito a quê?
Ele só me encarou sem responder. Entrei no recinto sagrado.

POLIMENTO DE UNHAS
 Refestelado em sua poltrona acolchoada, o ministro Gilmárcio realmente polia as unhas. Reconheci logo a figura: o chapelão ministerial, a barba ministerial, as comendas ministeriais, os óculos ministeriais, os beiços ministeriais – enfim, um porco ministerial. Não parecia judeu, a despeito do sobrenome, mas resolvi perguntar:
– Desculpe a pergunta, ministro, mas senhor é judeu?
Ele me encarou, os bugalhos vermelhaços, e sorriu, se aquele esgar era sorriso.
– Eu tenho lá cara de judeu?
– Não sei – respondi. – Mas o senhor tem cara de quem come os semelhantes.
– Antropófago, você quer insinuar?
– Nada disso. Carne suína mesmo.
Ele me encarou com a testa franzida. Parecia irritado.
– Não gosto dessas brincadeiras. Por que Ednardo o mandou aqui?
– Ele quer habeas corpus preventivo para a turma dele. Vão assaltar a Casa da Moeda e precisam estar protegidos pela lei.
Ele soprou as unhas, depositou a lixa de lado e me encarou.
– Habeas corpus não são bombons. Em nome de quem ele quer?
– De quatro cardeais: Ednardo Cunha, Sérgio Cobreiro, Joseph Serrote e Amnércio Naves. Pode ser um para os quatro ou quatro individuais. No dia do assalto eles querem estar soltos que nem passarinho.

PRESTAÇÃO DE CONTAS
– Disseram quanto e quando vão pagar? Ou pensam que aqui no Supremo nós trabalhamos de graça que nem relógio?
– Desculpe – disse eu. – Pensei que a remuneração de magistrado cobrisse essas tarefas miúdas. Não me disseram nada sobre pagamento.
– Pelo visto, vocês, detetives particulares, conhecem pouco de leis. Vou explicar melhor, usando um texto do próprio Raymond Chandler, seu criador. Escute. Tirou um livro da gaveta, folheou, encontrou a passagem e começou a ler.
“Os advogados escrevem leis para que outros advogados as dissequem na frente de outros advogados chamados juízes, e para que outros juízes possam dizer que o primeiro grupo de juízes estava errado e o Supremo dizer que quem estava errado era o segundo grupo. Claro que existe uma coisa chamada Lei, com maiúscula. Estamos afundados nela até o pescoço. Ela só serve para dar emprego aos advogados, desde os pés-de-chinelo de porta de cadeia até nós, Ministros Superiores. Aliás, quanto tempo você acha que os chefões das organizações criminosas iriam durar se os advogados não lhes dessem instruções sobre como fazer as coisas?”
Ele se interrompeu, fechou o livro, cruzou as mãos sobre o barrigão e me encarou sem dizer nada. Ficou só olhando.
– Concordo, doutor – disse eu depois de algum tempo. – Deve ser assim mesmo que funcionam os advogados e a lei. Troca de favores. Compra e venda. Barganha.
– Pois é – respondeu o ministro Gilmárcio, a banha se movendo debaixo dos dedos cruzados. – Quem compra precisa pagar. Eles não disseram quanto?
– Não, senhor, não disseram. Mas meus honorários incluem o pagamento das despesas que eu seja obrigado a fazer. Posso pagar por eles e, com um recibo do senhor, creio que depois serei ressarcido.
O ministro soltou uma gargalhada retumbante como o hino nacional. Recostou-se na poltrona e continuou rindo e tentando recuperar o fôlego.
– Não entendi a graça, doutor – disse eu sem graça. – Poderia me esclarecer, se não for demais?
– Posso, meu filho – respondeu ele enxugando as lágrimas volumosas dos olhos empapuçados. – É muito simples: quem lhe disse que corrupção passa recibo? Onde lhe disseram que favor por debaixo dos panos dá troco? Nos Estados Unidos sei que não foi. Coisa como essas dão cadeia pesada na sua terra.
– Então fica difícil, doutor. Sem recibo não tenho como provar o pagamento. E assim não recebo nada.
– Vou ligar para o Ednardo – disse o ministro Gilmárcio. – Como menino de recados você está me saindo uma boa bosta.
Deixei passar e fiquei em silêncio enquanto ele discava.  -  (Fonte: aqui).
(Continua)

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