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Sebastião Nunes, autor da série, é natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta. É também titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine.
O país dos canalhas - Capítulo 2 - Antecedentes do grande assalto
Por Sebastião Nunes
Cheguei ao Brasil no princípio de 2017 como os pioneiros do Velho Oeste, os garimpeiros do Alaska, os desesperados de Serra Pelada, os construtores de Brasília e os políticos do PMDB: disposto a tudo para ficar rico no menor tempo possível. Autorizado por Raymond Chandler, chutei a ética para escanteio, pois os tempos eram outros e no país funcionava a lei do cada um por si, tipo urubu em carniça.
Eu sabia que havia filões inesgotáveis em todas as esferas do poder. Bastava cavucar um pouco e jorrava grana viva como petróleo em quintal da Califórnia. Instalei meu escritório em Brasília, botei na porta a plaquinha “Philip Marlowe – Detetive Particular – Investigações Sigilosas” e sentei para esperar. O quarteto que apareceu no capítulo anterior foram os primeiros clientes. E prometiam dar muito caldo.
Ah, sim. Antes de instalar o escritório passei um mês lendo, vendo e ouvindo tudo o que pude sobre quem era quem nas esferas pública e privada. Passei a pente fino políticos, magistrados e empresários. Muito produtivo. Mas foi um trabalho do cão.
VERIFICANDO OS CLIENTES
Logo que as visitas chegaram não duvidei sequer por um segundo de que eram realmente Ednardo Cunha, Sérgio Cobreiro, Joseph Serrote e Amnércio Naves. Os dois últimos transitavam o tempo todo entre São Paulo, Rio e Brasília. Os dois primeiros deveriam estar presos, mas era um problema menor: um milhão de reais bem aplicados resolvia a questão. 100 mil aqui, 200 ali, 150 acolá – e armava-se uma rede que ia desde sósias perfeitos até entradas e saídas na prisão a qualquer hora.
Resolvido o quesito da identificação, restava o da remuneração, pois eu não era louco para trabalhar de graça. Não para aquela quadrilha.
PEQUENOS DETALHES
– Tudo bem – disse eu. – Posso providenciar os álibis de que precisam. Só não entendo porque Cunha e Cobreiro precisam de álibis, se teoricamente estão presos.
– Ora, Marlowe, não seja ingênuo – disse Serrote. – Precisamos de um álibi que nos coloque, aos quatro, fora do foco da polícia federal. Um álibi que demonstre de modo inquestionável que estávamos, digamos, numa reunião em Florianópolis a portas fechadas e durante pelo menos 72 horas. Gaste o que for preciso e inclua nas despesas.
– Não seria mais fácil desligar o foco da polícia federal?
– Não, não seria – continuou Serrote. – Não queremos misturar as coisas. Nosso território vai do legislativo ao executivo e ao judiciário. Fora daí, só podemos contar, sem prejuízos medonhos, com a mídia. Mesmo na área empresarial escolhemos a dedo nossos parceiros. Você viu a confusão que tá rolando, não viu? Não queremos mais denúncia batendo em nossa porta como evangélico em casa de pobre.
– Muito bem. Vamos supor que eu consiga os quatro álibis – ponderei. – Mas quem descasca o pepino dos dois que teoricamente estão presos?
– Com habeas corpus do STF – esclareceu o sempre bem informado Joseph Serrote. – Três dias antes do assalto você providenciará os habeas corpus e poderemos nos reunir em qualquer lugar.
– Mesmo monitorados por tornozeleiras eletrônicas? – indaguei reticente.
– Que tornozeleiras que nada – respondeu Serrote. – Os habeas corpus deverão ser amplos, gerais e irrestritos. Para não dar na vista, Cunha e Cobreiro terão confiscados os passaportes, ficando proibidos de deixar o país.
– Ah, ah, ah – riu Cobreiro. – E quem deixaria o país, se nossas minas de ouro estão bem aqui, debaixo de nossos narizes compridos? Amnércio que o diga.
Ri também.
Marquei nova reunião para detalhar o pagamento dos honorários, das despesas e combinar os passos seguintes. O que eu precisava mesmo era de tempo para pensar.
Acompanhei os quatro até a saída, tranquei a porta, abri a gaveta de baixo, tirei a garrafa de scotch e me servi uma dose caprichada. Para turvar a consciência, caso fosse necessário, deixei a garrafa à mão e botei as pernas em cima da mesa. Só faltavam as esporas de xerife e o chapelão para eu me sentir personagem de faroeste.
REFLEXÕES MIÚDAS
Por que diabo o sacana do Raymond Chandler me envolvera em tal merda? Se o objetivo era me tirar de circulação, bastava escrever um conto em que um gangster de Hollywood me desencarnava – e pronto. Mas me acanalhar, envolvido em tramoias com a barra pesada de Brasília, era demais.
Foi uma reflexão que me salvou. Uma reflexão do sr. Harlan Potter, personagem de Chandler em “O longo adeus”:
“Nós vivemos no que se chama uma democracia, governada pela maioria do povo. É um ideal muito bonito, pena que não funciona. As pessoas elegem, mas é o partido que nomeia, e as máquinas partidárias, para serem eficientes, recebendo propina e corrompendo, precisam de muito dinheiro. Alguém tem que entrar com esse dinheiro e esse alguém, indivíduo ou grupo financeiro, industrial ou qualquer outra coisa espera algum tipo de benefício graúdo em troca. (...) Em grande quantidade, o dinheiro tende a ganhar uma espécie de vida própria, até mesmo uma autoconsciência, se posso dizer assim. O poder do dinheiro fica muito difícil de controlar. O homem sempre foi um animal à venda. (...) O homem comum está cansado e assustado, e um homem cansado e assustado não pode se dar ao luxo de ter ideais.”
Espero que o leitor tenha compreendido meu drama. Infelizmente nada posso fazer. O Brasil é assim e eu sou um homem comum, cansado e assustado. Parodiando um poeta brasileiro que acabei de ler, vai, Marlowe, vai ser canalha na vida!
No país dos canalhas, um a mais não fará diferença alguma, ainda que ele se chame Philip Marlowe, um cara de conduta exemplar até aqui. Mas, como dizia Sancho Pança, quem anda com porcos acaba comendo farelo. - (Fonte: aqui).
(Continua).
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