"Computers for Everyone": houve uma falha na Matrix em 1965?
Por Wilson Ferreira
Quando falamos de grandes escritores visionários que previram invenções como Júlio Verne (viagens espaciais, submarinos, satélites), Arthur Clarke (satélites geoestacionários, computadores capazes de derrotar o homem no xadrez), Cyrano de Bergerac (a caixa “leitor com as orelhas”, precursor do gravador), H.G. Wells (o raio laser e comunicações sem fio), podemos considerar tudo verossímil. Afinal, foram gênios da ficção e pioneiros do futurismo.
Mas então o que dizer sobre um artigo publicado em 1965 em uma obscura revista de história em quadrinhos inglesa chamada Eagle, que previu a chegada da Internet com assombrosa precisão, incluindo serviços similares aos atuais Skype, Netflix, Kindle e motores de busca como o Google? (E) tudo isso, anos antes da Arpanet, a pré-história da Internet, décadas antes da primeira encarnação da rede de computadores tornar-se disponível ao público em geral...
O artigo era intitulado “Computers for Everyone” (“Computadores para Todos”) foi tão exato que previu o “conhecimento global ao alcance das suas mãos” para a década de 1990:
O leitor deve ter em mente que a Arpanet, primeira rede de computadores criada para fins militares, só foi estabelecida em 1969 e em 1970 construído o primeiro elo entre a Universidade da Califórnia e o Instituto de Pesquisa de Stanford.
Claro, modelos de comunicação digital em rede já eram estudados sigilosamente (o que é de espantar essa informação em artigo de um comic book para crianças no contexto de Guerra Fria) em 1962 por Paul Baran feitos na Rand Corporation, Califórnia.
Mas o que torna o artigo da revista Eagle insólito é a previsão de desdobramentos e serviços na Internet. Em resumo, o artigo previu pelo menos sete aspectos fundamentais da Internet, alguns dos quais ainda hoje estão em estado inicial, quatro anos da Arpanet, três décadas antes da Internet tornar-se acessível ao público e quatro décadas antes de serviços como Skype e Netflix:
(a) “Conhecimento mundial no alcance das suas mãos” (os motores de busca)
(b) “Convocar qualquer página de qualquer livro ou jornal instantaneamente diante dos seus olhos” (Kindle)
(c) “O computador irá controlar todas as fontes de alimentação da sua casa. Seu aparelho de TV, o telefone, eletricidade, gás, máquina de escrever, gravador...” (casa inteligente e a Internet das Coisas)
(d) “Videofone” (Skype)
(e) “Sinal de TV Multi-Canal” (Netflix, streaming)
(f) “Computadores substituirão gravadores e toca-discos” (Spotify, iTunes)
(g) “Redes que operam na velocidade da luz” (fibra ótica)
Átomos e Bits
O que espanta nessas profecias não é tanto o futurismo visionário, mas a natureza das previsões. Enquanto em Júlio Verne ou H.G. Wells as previsões eram “analógicas” (grandes máquinas para transporte e exploração ou máquinas de comunicação sem fio) no artigo “Computers for Everyone” temos uma quebra de paradigma com a digitalização do cotidiano – por exemplo, o som contínuo e analógico de gravadores e toca-discos convertidos em dígitos descontínuos. Ou páginas de livros físicos transformados em imagens digitais.
Se nos anos 1990, para muitos, inclusive para esse humilde blogueiro, era difícil compreender o livro de Nicholas Negroponte A Vida Digital (como a diferença entre átomos e bits iria revolucionar arte, cultura, marketing e mídia), imagine em 1965 onde a transmissão de documentos em imagem digital por meio de impulsos telefônicos através do fax sequer era imaginada pelo público em geral!
As pessoas costumam ver a história da Ciência e Tecnologia através da narrativa passada pela mídia: a evolução das descobertas em uma time-line ascendente orientada pela satisfação de necessidades e a solução das grandes questões propostas pela sociedade – melhorar, desenvolver, aprimorar etc.
Por um ponto de vista gnóstico, artigos estranhamente visionários como esse publicado em um comic book poderia ser uma falha na Matrix, um verdadeiro déjà-vu como aqueles presenciados por Neo antecipando alguma falha na trama da realidade virtual.
Há uma outra narrativa na história das descoberta científicas e invenções, muito mais fragmentada, por vezes trágica, e descontínua do que numa tranquila e otimista linha evolutiva.
Por exemplo, se levarmos em consideração que o fax foi patenteado por Alexander Bain em 1843 e o primeiro protótipo foi construído nos Laboratórios Bell em 1926, por que só nos anos 1970 passou a ser produzido para consumo público?
Aparelho de fax - 1843 |
Todas as invenções que configuram nosso presente e irão estruturar o futuro já foram descobertas e patenteadas. Elas são “desovadas” aos poucos, de acordo com as necessidades estratégicas de mercado, políticas ou militares. E para a opinião pública são lançados alguns “visionários” como Bill Gates ou Steve Jobs para criar a narrativa de que a história das tecnologias é marcada pelos esforços de figuras que, no máximo, criam novos designs e rótulos para invenções que há tempos estão em gavetas à espera do oportuno contexto político-bélico-mercadológico. E, como sempre, contextos inversos às verdadeiras necessidades sociais e humanas.
O filósofo e urbanista francês Paul Virilio é um dos pesquisadores que insinuam essa hipótese. Para Virilio, todas as invenções objetivam, em primeiro lugar, aplicação militar. Transistor, válvulas, rádio, cinema, TV e computadores em primeiro lugar foram aplicados em cenários de guerra. Décadas depois, o mercado disponibiliza para civis como descobertas inovadoras de uma “estrada para o futuro” – leia de Virilio os livros Guerra e Cinema, Velocidade e Política e O Horizonte Negativo.
A estrada coberta de cadáveres
Porém, uma estrada aparentemente coberta de cadáveres. O inventor do motor a explosão, Rudolph Diesel, desapareceu a bordo de um navio no mar do Norte em uma noite calma. O inventor da frequência modulada (FM), Edwin Armstrong, se jogou da janela do décimo terceiro andar de um edifício em Manhattan em 1954.
O físico e inventor sérvio Nikola Tesla morreu em 1943, solitário em um quarto de hotel em Nova York, financeiramente quebrado após ser destruído pela JP Morgan e Westinghouse por descobrir a forma livre de transmissão de energia – sem fios ou necessidade de empresas provedoras.
Batalhas judiciais contra Preston Tucker e seu carro inovador, o Tucker Torpedo, o levaram à morte em 1956. Seu carro disponibilizava itens de segurança e tecnológicos (injeção de gasolina) que só mais tarde a indústria automobilística disponibilizaria para consumidores. Para teóricos da conspiração, todos eles foram verdadeiramente visionários. Mas colocaram em risco o equilíbrio político e mercadológico daqueles momentos.
Um filme que ilustra de forma cômica essa tragédia é O Homem do Terno Branco (The Man In The White Suit, 1951): o filme narra as desventuras de Sidney Stratton (Alec Guinness) um cientista ingênuo e idealista, recém-formado por Cambridge, que obsessivamente persegue um objetivo: o desenvolvimento de uma fibra sintética que produza um tecido que nunca desgaste e suje, produzindo roupas praticamente indestrutíveis e capazes de durar uma vida inteira.
Não precisa dizer o pânico que provocou na indústria têxtil. A princípio tentam a todo custo comprar a patente. Sem efeito, tentam matá-lo enquanto Sidney foge tentando avisar a imprensa – sobre o filme clique aqui.
O futuro não existe
Essa discussão sobre as invenções e o futuro lembra a “psico-história”, conceito central na série “Fundações” do escritor Isaac Asimov, um saber que mesclava história, sociologia e matemática estatística com o objetivo de prever com exatidão o futuro das ações coletivas.
O paradoxo é que o conhecimento de um suposto futuro pode orientar ações para confirmá-lo ou evitá-lo. O que acaba criando o loop de uma profecia autorrealizável. Portanto, o futuro não existe como um “topos” em algum lugar à frente no tempo, mas como um cenário criado e desdobrado intencionalmente a partir do presente.
Se todas as invenções ou descobertas já foram feitas (por isso, as pesquisas científicas são concentradas nas grandes corporações e pesquisadores aventureiros que por acaso tentem fazê-las de forma independente são judicialmente perseguidos), o que dizer dos famosos relatórios de Tendências Globais, como o recentemente feito pelo Conselho Nacional de Inteligência dos EUA, com projeções até 2030?
Esses relatórios assinados por futurólogos e empresas especializadas em análises de cenários lembram bastante a Psico-História descrita por Asimov.
Isaac Asimov e a Psico-História |
Cenários do futuro da GBN
Um exemplo foram os estudos feitos pela Global Business Network (GBN) realizadas entre o final da década de 1980 e nos anos 1990. Vendidos a preço de ouro para gigantes corporativos como AT&T, Volvo e governos como os dos EUA, a GBN ostentava uma rede eclética de executivos, artistas, acadêmicos e técnicos em postos-chave na ordem global dos negócios.
O cenário vendido pela GBN na verdade era nada mais do que aquilo que a sua rede de notáveis faria acontecer nos setores de negócios, cultura e política. GBN era uma rede de notáveis que se conectava a estruturas de poder, realizando os próprios cenários que ela própria criou e vendeu – sobre isso leia “Conspiracy of Heretics” In: Wired Magazine, 1994 – clique aqui.
Dentro dos critérios dos teóricos da conspiração, a GBN facilmente poderia ser considerada uma “sociedade secreta” que manipula os cordões da ordem mundial, não fosse ela conhecida publicamente e seus serviços de futurologia vendidos ao mercado.
Hoje, a GBN dividiu-se em uma série de empresas de inteligência, análise, planejamento e futurologia como a Monitor Institute, Monitor 360 e Worldview Stanford.
Talvez essa seja a base da atual Matrix: sob a aparência das narrativas sobre futuro e evolução, esconde-se uma ordem tecnológica e cientificamente estática, na qual todas as invenções e descobertas já foram realizadas. E o futuro nada mais é do que a resultante de desdobramentos tecno-científicos direcionados por estratégias político-bélico-econômicas que “desovam” as “descobertas” para manter sempre intacta a ordem virtual.
Esse estranho artigo publicado em um comic book inglês nos anos 1960 talvez faça parte dos breves lapsos da Matrix, mostrando que o futuro sempre esteve entre nós. São verdadeiros déjà-vus.
Talvez o agente Kevin (Tommy Lee Jones no filme MIB – Homens de Preto) tenha razão: em uma sequência do filme, ao folhear jornais tabloides populares, com manchetes sensacionalistas e fatos bizarros, diz: “Vamos ver os relatórios... esses tabloides são as melhores fontes do planeta... às vezes se encontra algo no New York Times”.
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(Fontes: Cinegnose - AQUI - e Jornal GGN - AQUI).
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