A saudade do amigo
Por Manuel Bandeira, em 12.10.1960
Domingo passado estive celebrando o dia do aniversário de Mário de Andrade, que teria feito seus 67 anos. Quanta coisa passou depois de sua morte em 1945! Quantas vezes, diante de uma virada no curso nacional ou internacional dos acontecimentos, me surpreendo perguntando qual seria a atitude do amigo. Porque ele tomava sempre posição diante das novidades. Já não falando de política, mesmo ficando do domínio das artes: que diria Mário na querela de concretistas e tachistas? Praticaria, ou ainda não praticando, aceitaria a poesia sem verso?
Como fui mexer nos livros dele para ter a ilusão de um papo em alguma releitura, dei com o caderno das Modinhas Imperiais, por ele chamado, no estilo do tempo, “ramilhete de quinze preciosas modinhas de salão brasileiras, para canto e piano, seguidas por um delicado Lundu para piano-forte.” Começo a reler o prefácio, tão cheio de seus saborosos inventos verbais, e onde ele perquire a origem da modinha, as suas características, a sua evolução até se constituir em gênero – gênero de romanças de salão em vernáculo e depois um dos gêneros da cantiga popular urbana. Uma das páginas mais interessantes desse breve estudo é a que trata do plano modulatório. Os modinheiros tinham certa preferência pelo tom menor. Às vezes começavam em maior e acabavam em menor e menor não relativo, como de fá maior para ré menor. A propósito da modinha Devo fugir-te, de José d’Almeida Cabral, a qual tem a primeira parte em lá menor e a segunda em fá maior, comenta Mário: “É duma... ciência modulatória estupenda: o autor parecendo inverter o conceito da tonalidades relativas, indo buscar uma terceira (embora maior) abaixo, a tonalidade fundamental.”
Agora chego ao ponto que me fez escrever esta crônica. Mário anotou ao pé da página no exemplar que me ofereceu: “Bobagem. Aliás, toda esta parte sobre originalidade modulatória das modinhas está péssima. Não sei onde estava com a cabeça. Me lembro só que muito fatigado já e desejoso de acabar a escritura. O pior é que depois a gente lê, relê, corrige, mas como sabe o que quer dizer, não vê que não está dito. Depois vem o livro e daí tudo enxerga como leitor. Aqui minha intenção era relacionar o espanto com os modinheiros e não com a modulação erudita europeia, dentro da qual lá menor e fá maior são tons vizinhos, coisa que se aprende na Artinha. Mas os modinheiros fugiam da modulação clássica, por querer ou sem querer, e modulavam aqui neste caso bestamente, com esquerdice e mau jeito, mas vinham reachar um processo europeu, que na realidade é mais sofisma que outra coisa: a doutrina dos tons vizinhos. Pelo menos de certos ‘tons vizinhos’. Estou bem desgostoso com esta parte. Um inimigo com coragem pegava nisso e me es... pinafrava que era uma gostosura”.
Nesta nota encontrei meu amigo inteiro e um momento fiquei feliz na minha saudade.
[ 12.X.1960]
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Manuel Bandeira, em “Andorinha, andorinha”, Rio de Janeiro; Livraria José Olympio Editora, 1966, 1ª edição. - (Fonte: Aqui).
Manuel Bandeira, em “Andorinha, andorinha”, Rio de Janeiro; Livraria José Olympio Editora, 1966, 1ª edição. - (Fonte: Aqui).
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