Sobre o Nobel, Bob Dylan e Aldir Blanc
Por Marceu Vieira
O mundo pareceu ficar menos triste do que tem andado ultimamente com a escolha de Bob Dylan como Nobel de Literatura 2016. No instante da notícia, na quinta-feira, 13 de outubro, veio ao meu pensamento que Carlos Drummond de Andrade, Aldir Blanc ou Chico Buarque já teriam ganhado o prêmio se suas obras fossem universalizadas no idioma inglês.
Ou estariam muito bem cotados pra ganhar. Sobretudo o Drummond, poeta maior do século XX, o homem melhor que os demais, o encantador de palavras que tantas vezes me arremessou a emoções subterrâneas com seus versos cheios de ternura, ao mesmo tempo cortantes.
Como o regulamento determina que só vivos podem ser premiados, Drummond perdeu a chance dele em 1988, quando morreu. Mas Aldir e Chico, tão grandiosos no que compõem, estão ainda aí.
Aldir, principalmente, que, pra mim, é o maior letrista vivo do planeta – e olha que ter o Chico Buarque como concorrente nessa minha premiação particular é algo muito grande. Porque o Chico Buarque já deixou há muito tempo de ser substantivo próprio pra entrar na História, em vida, como adjetivo.
Aldir tem uma chave que ninguém mais ousa ter, uma capaz de abrir a alma das melodias pra cobri-las com seus diamantes de palavras. Melodias que não foram feitas por ele, mas parecem se apaixonar à primeira vista por suas letras. Nota musical e poesia parecem ter nascido juntas nas canções do Aldir. Tudo soa espontâneo e natural.
Dorival Caymmi chegou a chamá-lo de “ourives do palavreado”.
Alguém que tenha feito estes versos caberem dentro de uma melodia de choro merece a inscrição no Nobel de Literatura 2017:
“Nos dias de carnaval,
aumentam os desenganos:
Você vai pra Parati;
eu, pro Cacique de Ramos.
Meu catavento tem dentro
o vento escancarado do Arpoador.
Teu girassol tem de fora
o escondido do Engenho de Dentro da flor.
Eu sinto muita saudade,
você é contemporânea.
Eu penso em tudo quanto faço
Você é tão espontânea…”
aumentam os desenganos:
Você vai pra Parati;
eu, pro Cacique de Ramos.
Meu catavento tem dentro
o vento escancarado do Arpoador.
Teu girassol tem de fora
o escondido do Engenho de Dentro da flor.
Eu sinto muita saudade,
você é contemporânea.
Eu penso em tudo quanto faço
Você é tão espontânea…”
Mas e o Bob Dylan? Bom, quase tudo o que eu penso sobre a escolha do genial compositor e poeta americano já foi dito por muita gente. Nas redes sociais, sobretudo, onde o pensamento é democrático. Meu amigo Celso de Castro Barbosa, por exemplo, jornalista conhecedor do que é bom na música, defendeu Dylan do desdém dos críticos da escolha.
Fã do romancista Philip Roth, outro americano aplaudido planeta afora por suas obras, entre as quais “O complexo de Portnoy”, Celso escreveu no Facebook que “há um forte preconceito contra a poesia”. Ele tem razão.
“Na opinião de alguns, poesia não é literatura”, lembrou o Celso. “E há um preconceito maior ainda contra letras de música. Na opinião de alguns, letra de música não seria poesia, que dirá literatura.”
Celso escreveu ainda que todo ano cruza os dedos e espera ouvir o nome do Philip Roth na premiação do Nobel: “Dois ou três anos atrás, ele bateu na trave, mas isso não tem importância. Sou botafoguense e aprendi a esperar. E a amar Bob Dylan.”
Sou Flamengo, também tenho paciência, aprendi a amar Bob Dylan e consegui ver meu romancista preferido, o colombiano Gabriel García Márquez, ser premiado por seus livros tão tocantes e fundamentais na formação da minha geração.
Bob Dylan levou o dele pela beleza imensa de sua obra, e já mereceria a inscrição por alguns versos apenas de “Blowin’ in the wind”.
“Quantas estradas um homem precisa andar
antes que possam chamá-lo de homem? (…)
antes que possam chamá-lo de homem? (…)
Quantas balas de canhão precisam voar
até serem pra sempre banidas?
até serem pra sempre banidas?
A resposta, meu amigo,
está soprando no vento.”
está soprando no vento.”
Vibrei muito com a premiação dele. Há mesmo, como escreveu o Celso, um preconceito com a poesia – e, em particular, com as letras de música. Chico Buarque, ao exaltar uma musa imaginária batizada por ele com o nome da santa padroeira dos músicos, cometeu:
“Mas nem as sutis melodias
merecem, Cecília,
teu nome espalhar por aí…”
merecem, Cecília,
teu nome espalhar por aí…”
Sempre percebo nestes versos a sensação do poeta/compositor que se desculpa sinceramente pelo pouco valor dado à poesia. Também percebo essa intenção num verso de outro poeta espetacular, o Nei Lopes, quando ele diz:
“É isso aí, ê Irajá…
Meu samba é a única coisa
que eu posso te dar.”
Meu samba é a única coisa
que eu posso te dar.”
Como a única coisa?! O samba do Nei é muito.
É pena que haja quem veja a poesia como uma arte menor – e, pior ainda, não perceba que as letras de música, quando são boas, como as do Bob Dylan, as do Aldir, as do Chico, as do Nei Lopes e as de tantos outros, cumprem o papel de popularizar a excelência da palavra escrita.
Por isso, o cronista digital lança aqui a candidatura do Aldir Blanc pro Nobel de Literatura 2017. Quem vem junto?
***
Catavento e Girassol
Meu catavento tem dentro o que há do lado de fora do teu girassol
Entre o escancaro e o contido, eu te pedi sustenido e você riu bemol
Você só pensa no espaço, eu exigi duração
Eu sou um gato de subúrbio, você é litorânea
Você só pensa no espaço, eu exigi duração
Eu sou um gato de subúrbio, você é litorânea
Quando eu respeito os sinais vejo você de patins vindo na contramão
Mas quando ataco de macho, você se faz de capacho e não quer confusão
Nenhum dos dois se entrega, nós não ouvimos conselho
Eu sou você que se vai no sumidouro do espelho
Mas quando ataco de macho, você se faz de capacho e não quer confusão
Nenhum dos dois se entrega, nós não ouvimos conselho
Eu sou você que se vai no sumidouro do espelho
Eu sou do Engenho de Dentro e você vive no vento do Arpoador
Eu tenho um jeito arredio e você é expansiva, o inseto e a flor
Um torce pra Mia Farrow, o outro é Woody Allen
Quando assovio uma seresta você dança havaiana
Eu tenho um jeito arredio e você é expansiva, o inseto e a flor
Um torce pra Mia Farrow, o outro é Woody Allen
Quando assovio uma seresta você dança havaiana
Eu vou de tênis e jeans, encontro você demais, scarpin, soiré
Quando o pau quebra na esquina, cê ataca de fina e me ofende em inglês
É fuck you, bate bronha e ninguém mete o bedelho
Você sou eu que me vou no sumidouro do espelho
Quando o pau quebra na esquina, cê ataca de fina e me ofende em inglês
É fuck you, bate bronha e ninguém mete o bedelho
Você sou eu que me vou no sumidouro do espelho
A paz é feita num motel de alma lavada e passada
Pra descobrir logo depois que não serviu pra nada
Nos dias de carnaval aumentam os desenganos
Você vai pra Parati e eu pro Cacique de Ramos
Pra descobrir logo depois que não serviu pra nada
Nos dias de carnaval aumentam os desenganos
Você vai pra Parati e eu pro Cacique de Ramos
Meu catavento tem dentro o vento escancarado do Arpoador
Teu girassol tem de fora o escondido do Engenho de Dentro da flor
Eu sinto muita saudade, você é contemporânea
Eu penso em tudo quanto faço, você é tão espontânea
Teu girassol tem de fora o escondido do Engenho de Dentro da flor
Eu sinto muita saudade, você é contemporânea
Eu penso em tudo quanto faço, você é tão espontânea
Sei que um depende do outro só pra ser diferente, pra se completar
Sei que um se afasta do outro, no sufoco, somente pra se aproximar
Cê tem um jeito verde de ser e eu sou meio vermelho
Mas os dois juntos se vão no sumidouro do espelho
Sei que um se afasta do outro, no sufoco, somente pra se aproximar
Cê tem um jeito verde de ser e eu sou meio vermelho
Mas os dois juntos se vão no sumidouro do espelho
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São muitos os compositores brasileiros de altíssimo nível. Para citar um: Paulo César Pinheiro.
A vastidão da MPB é pródiga: Ary Barroso, Orestes Barbosa, Noel Rosa, Wilson Batista, Tom Jobim, Vinicius de Moraes...
A vastidão da MPB é pródiga: Ary Barroso, Orestes Barbosa, Noel Rosa, Wilson Batista, Tom Jobim, Vinicius de Moraes...
Mas, uma vez que Dylan foi reconhecido em face do contexto histórico-cultural em que emplacou suas letras mais emblemáticas, fica evidenciado que as de autoria de Chico Buarque e Aldir Blanc se ajustam plenamente à conjuntura vivenciada pelo laureado compositor norte-americano. Lá, contracultura, protestos, porralouquices; cá, anos de chumbo.
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