O “livre mercado”, categoria econômica que não passa e nem nunca passará da teoria, encontra eco em várias áreas. Existe o “livre mercado das ideias”, um local em que supostamente todos os pensamentos e teorias produzidos “livremente” seriam “comprados” por um número também imenso de “consumidores” baseados apenas em seu julgamento. Assim se constroem os argumentos mais basais para a “liberdade de expressão”, “liberdade de ensino” e etc. Na mesma analogia, uma eleição seria “um grande mercado de votos” em que o eleitor compraria aquela que achasse a melhor ideia. Nos dois exemplos, o economicismo está presente. Veja que nas duas concepções de espaços de liberdade não deveria haver consumidor ou vendedor que pudesse influenciar o “preço” das ideias, e cada eleitor tem um e apenas um voto.
Desta forma que se consolida a ideia do liberalismo difuso. Tudo é explicado como virtuoso se tiver as características teóricas do “livre mercado”. Precisa ser impessoal, baseado em cálculos racionais individuais, com o interesse individual sendo a base de cada escolha. Na teoria do “livre mercado” os “produtos” oferecidos podem ser comparados através de um esforço lógico que cada indivíduo faz para filiar-se a uma ideia, gostar de um romance, uma música ou defender uma bandeira política. Livres e impessoais, as ofertas de bens (ideias, crenças, teorias e etc.) encontrariam consumidores e as “mais consumidas” se fortaleceriam, demonstrando o virtuosismo do produto.
Na verdade, os algoritmos das redes sociais são totalmente baseadas nesta ideia. Não há como as companhias manterem pessoas para ler tudo o que é produzido e postado mundo afora. E, mesmo que houvesse maneira, não se poderia garantir a igualdade de julgamento pois compreender e valorar são atividades humanas. O que fazem o Facebook, Instagram, twitter e etc. é estabelecer os seus contatos (amigos) como seu mercado imediato. Tudo o que você posta vai para uma amostra dos seus amigos imediatamente. Uma amostragem pequena, que não deve passar de 10% dos seus amigos num primeiro momento. Conforme o retorno que estes dão o algoritmo “julga” o conteúdo de sua mensagem. Se recebe muito suporte, esta mensagem passa no teste do “livre mercado” e é apresentada a mais pessoas. E assim, após sucessivos testes, uma postagem “viraliza” exatamente como um “produto” ganha mercado e enriquece o seu inventor. No caso, enriquece o dono da rede social e você ganha “muitos” likes.
Nas teorias sobre eleições e democracia ocorre o mesmo. Vários candidatos apresentam-se como mercadoria (de ideias e propostas) e são “comprados” por eleitores pagando a moeda do “voto”. No final, o que foi mais “comprado” se elege e os de menos votos ficam fora do jogo. Na prática este liberalismo economicista nos governa desde o nascimento até a morte. Pesquisas recentes argumentam que os bebês aprendem a sorrir e serem “fofinhos” como estratégia de sobrevivência. Teoricamente vai ganhar mais carinho, leite e ter suas necessidades atendidas o bebê que se vender melhor. E um sorriso, um “gu-gu-dá-dá” no lugar certo pode fazer toda a diferença.
Todos os méritos, então, são dados ao tal “livre mercado” e, enquanto a direita enfatiza a palavra “mercado”, uma parte da esquerda fetichiza o termo “livre”. Abominam-se “ditadores”, ataca-se tudo o que não trouxer explicitamente a ideia-prática da “liberdade” e há quem defenda a liberdade de expressão até mesmo daqueles que pautam a sua vida na defesa do extermínio da vida dos outros. Inconscientemente esta esquerda adora o mercado e todas as suas características teóricas. A visão destas pessoas não difere muito daquele espectro de defensores do capitalismo, talvez com um pouco mais de “humanidade”.
Acontece que nem o “livre mercado” existe, nem “liberdade” é um valor etéreo, descolado das possibilidades práticas dos indivíduos. Em tese, você é livre para ir a qualquer lugar no mundo, com poucas barreiras de fronteira ou coisas assim. Sua liberdade de ir, no entanto, em nada modifica sua incapacidade material para tanto. E este é o ponto chave.
Assim como o capitalismo construiu formas para subverter totalmente o “livre mercado” de tal sorte que ele INEXISTE na realidade, o mesmo capitalismo criou formas para subverter o “livre mercado das ideias” e até mesmo “o livre mercado dos votos”, que chamamos de “eleição”. E as ferramentas usadas para inviabilizar o sonho teórico da “liberdade” são EXATAMENTE as mesmas. Quando você concentra uma grande quantidade de capital na mão de uma ou duas pessoas, um verdadeiro vale surge no tecido social. Estas pessoas são capazes de moldar o universo à sua volta, alterando as preferências dos atores, sejam eles outras pessoas, ou até instituições inteiras.
O dono da AMBEV pode, por exemplo, convencer pessoas (que convencem outras pessoas) que qualquer um “que faça o que ele fez” pode se tornar bilionário. “Basta se esforçar”. Mesmo que não haja nenhum indício de veracidade na afirmação. O mesmo acontece com Luciano Huck, Felipe Neto, Neymar e outros tantos que defendem, aberta ou inconscientemente, a ideia de “meritocracia”. Supostamente todos eles triunfaram num ambiente de “concorrência livre” e através de seus “predicados pessoais”, e foram “justamente” recompensados pelo “mercado”. Dificilmente algum deles admite a variável sorte e NENHUM nunca irá admitir o uso de práticas moralmente abjetas como a exploração de outrem, o conluio para afastar concorrentes ou outras violências comuns.
Historicamente duas são as forças que conseguem rivalizar com o tal “mercado”: de um lado o Estado enquanto instituição regulatória e controladora única da violência física e, por outro, coletivizações organizadas como, por exemplo, sindicatos e partidos políticos. Tanto o estado, quanto as organizações coletivas conseguem “pesar” a balança para se contraporem à influência do “mercado”. Não é por acaso, portanto, que, em momentos de crise econômica (momentos em que se está disputando a posse e uso de recursos econômicos de forma acentuada), uma das ferramentas políticas mais evidentes do liberalismo (e do neoliberalismo) é atacar o “Estado” e “a esquerda”, aqui usada como sinônimo de “ação organizada coletiva”. É o mesmo mecanismo do vírus HIV que antes de qualquer coisa ataca o sistema de defesa do corpo humano. Indefeso, o corpo assiste à tomada das “doenças oportunistas” e acaba por sucumbir a uma gripe.
O fascismo é uma destas “doenças oportunistas” e a mediocridade de Bolsonaro, por exemplo, é semelhante a um grande organismo morrendo por ter sido infectado por uma gripe. Em condições normais, a gripe seria debelada, mas, com o liberalismo tendo destruído todo o sistema de defesa do corpo, a gripe é incontornável e letal.
Durante os governos do PT, o Estado alterou a correlação de valores do liberalismo. A educação passou a ser prioridade, a defesa das minorias era essencial, o fortalecimento do trabalho frente ao capital, a preservação do meio ambiente, a pluralidade na comunicação e tudo isto mesmo que houvesse custos. Não é barata uma educação inclusiva de qualidade, nem a manutenção de várias instituições de proteção da Amazônia. Não é barato manter uma democracia viva, plural e inclusiva, ou um judiciário imparcial, célere e efetivo. Contudo, a lógica do Estado não é a lógica do “mercado”. Coisas que não visam lucro são essenciais e não podem ser pesadas com o mesmo raciocínio de Lehmann ou Huck.
Bolsonaro, como uma doença aproveitadora, tomou o poder quando os liberais usaram todos os seus recursos para desmantelar a ideia de “Estado” e mesmo de “democracia”. O fascismo recalibrou os valores da sociedade. O conhecimento passou a ser desimportante, professores não conseguem mais se sustentar, artistas estão sendo atacados, a imparcialidade do poder judiciário foi extinta e a diversidade do legislativo está na UTI. O meio ambiente é menos importante do que o interesse do “mercado”, o trabalho tem menor tamanho do que o capital e democracia, nesta nova visão, é a imposição por meio da força das vontades incutidas na cabeça de um número de pessoas que são pintadas como “maioria”.
A porta para isto tudo, contudo, é a noção de “livre mercado” e “meritocracia”, com a qual os liberais e neoliberais desmantelaram as instituições e a própria democracia. A luta hoje no Brasil é entre a ditadura do capital com média violência (liberalismo) ou a violência pura com mediana capacidade de ação do capital (fascismo). Nenhuma das duas alternativas é aceitável para os trabalhadores ou para qualquer pessoa com um mínimo de humanidade. E quando a polícia que permite que um nazista rico tome sua cerveja num bar público é a mesma que grita e ameaça professores dentro de escolas passou o momento de reagirmos. Ou pegamos os remos para nos defender, parando a canoa, ou, em breve, estaremos remando com as mãos e eles é que usarão os remos no nosso lombo."
(De Fernando Horta, historiador, texto intitulado "A estrada que nos trouxe ao precipício", publicado originalmente no GGN - Aqui).
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