sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A SAGA DO POETA ADÃO VENTURA (II)


Adão Ventura odiaria passar pela vida em brancas nuvens

Por Sebastião Nunes

As largas plantas amarelas dos pés, o negrume descorado da pele e a flacidez opaca do rosto indicavam que o poeta estava se despedindo.


Sentados em cadeiras de ferro pintadas de branco, eu e Jaime ajudávamos Adão a selecionar seus poemas inéditos na babel de infinitos manuscritos, espalhados pela cama também de ferro e também pintada de branco.
Amarfanhado, o lençol não dava conta de recordar os infinitos doentes terminais que tinham saído daquela cama para a autópsia, o necrotério, a cova e o esquecimento.
– O título será “Costura de Nuvens” – disse Adão, olhando para nós com seu ar de falsa insegurança. – Costura de Nuvens é um bom título, não é?
Mais que isso, era uma pepita de absoluta pureza da mina secreta de Adão.
A enfermaria pobre tinha quatro camas, mesinhas de cabeceira com remédios e um cubículo com vaso sanitário, chuveiro e pia. Uma das camas estava vazia. Nas outras, velhinhos murchos espiavam curiosos entre espanto e riso. Esperavam também.
Adão era apenas uma forma escura entre papéis dispersos.

APOSENTADORIA AFINAL
Dois anos antes Adão se aposentara como juiz classista, atuando em Passos. De volta a Belo Horizonte, gastou as economias num apartamento e se instalou para viver e envelhecer tranquilo. Convidou duas amigas e um sobrinho para morarem com ele e a casa movia-se ao ritmo do entra-e-sai de visitas e hóspedes eventuais.
Adão se preparava, tempo cumprido na burocracia jurídica, para longos anos de poeta em tempo integral. Não sabia que ali perto, logo na esquina, estava à espreita outra aposentadoria, a definitiva e eterna, aquela da qual ninguém escapa.
Militante da causa negra, imagino que Adão fazia dele os versos de Francisco Otaviano, com quem nada tinha em comum, exceto o gosto da poesia. Na verdade, o que movia os dois poetas, Ventura e Otaviano, com nos move a todos, era o medo de morrer sem deixar marca na memória dos sobreviventes:
            “Quem passou pela vida em branca nuvem
            E em plácido repouso adormeceu,
            Quem não sentiu o frio da desgraça,
            Quem passou pela vida e não sofreu,
            Foi espectro de homem, e não homem,
            Só passou pela vida, não viveu.”
Foi por isso que, descoberto o câncer que lhe roía os intestinos, e depois de imaginar-se definitivamente curado, decidiu Adão reunir os inéditos, publicando antes “Litanias de cão”, livro feito às pressas, coalhado dos erros de ortografia, de revisão e de impressão que a urgência impusera.

VOLTA O BICHO QUE RÓI
Depois de operado vieram dois anos de amedrontada calmaria, a convalescença furtiva e ambígua. Quando a doença voltou, Adão conhecia os vilões:
– Culpa das jantas em Passos. Eu saía do trabalho e jantava uísques duvidosos com pastéis dormidos no botequim da esquina. Todo dia. Foi isso que me lascou – confidenciaria meses depois.
Certa vez, Adão bebeu sozinho, dividido em cinco noites de sábado, um garrafão de cachaça hospedada num recipiente que contivera querosene. Se o cheiro era duro de aguentar, o gosto dava engulhos. Adão bebeu até a última gota, estalando a língua. 
Depois da cirurgia, e numa visita que me fez, o assustado poeta relutava beber um simples copo de cerveja. Deu uma bicadinha envergonhada e deixou de lado. Não se atrevia. Seu regime de mais-vale-prevenir-do-que-remediar era mingau de fubá toda manhã, reforçado com ovo quebrado em cima e queijo picadinho, para fortalecer.
Agora, na cama pintada de branco da enfermaria, Adão concluía seu testamento, costurando sua nuvem de ásperos – quando não líricos – poemas. O outro testamento, o dos bens materiais, deixou nas mãos da amiga e advogada Beth Guimarães.

COSTURA DE NUVENS
Afinal desistimos: papel demais, fragmentos demais, variantes demais. Versos soltos e poemas inacabados em excesso.
Decidimos, eu e Jaime, levar para casa a papelada manuscrita e dividir a tarefa. Havia páginas com uma única palavra. Inúmeras repetições. Por um lado, havia poemas já impressos, mas corrigidos e, junto deles, inéditos longe de estarem prontos. Juntamos tudo e levamos para organizar a barafunda e desconstruir o caos.
Antes da morte de Adão estivemos em sua casa. Arranquei, na pequena horta do apartamento térreo, alguns ramos de boldo rasteiro, que transplantei no meu quintal.
Nesse mesmo dia – com nossos votos mentirosos de “volte logo!” – foi levado de ambulância para o hospital, em seu derradeiro passeio pela cidade que se tornara a sua, desde que o menino enfatiotado de botina nova e roupa domingueira deixara Santo Antônio do Itambé rumo à cidade grande.
Na véspera do enterro sofri um ataque de Pânico na ida para o velório, típico de agorafobia: eram uns 200 metros ermos numa rua vazia e triste, do dia dos namorados de 2004, como me lembrou Jaime há pouco. Para lembrar que as parcas existem, é o mesmo dia em que outro poeta e amigo, Fernando Brant, também se foi, anos depois.
“– Muitas vezes/ a cor da pele/ é uma grande parede.// Daí/ o abraço frouxo./ o beijo mal dado/ e o sorriso amarelo.”
 “Talvez/ você possa ser/ até um arco-íris/ ou uma fresta/ de luz.// Que vare/ de ponta a ponta/ meu coração/ e me acorde/ para mais/ uma tempestade.”
Em suas nuvens costuradas Adão sonhou a vida inteira com essa tempestade.
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Nota: o cartão póstumo da ilustração me foi cedido pelo escritor e amigo comum Jaime Prado Gouvêa.  -  (Fonte: aqui).

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