quarta-feira, 8 de junho de 2016

A LAVA JATO E OS DEDOS (UMA VISÃO SINGULAR SOBRE SEUS PROPÓSITOS)


Depois dos anéis

Por Daniel Afonso da Silva

A operação Lava Jato vem se afirmando como vetor de modernização do estado de direito brasileiro. Seu objetivo interior consiste em desconjuntar estruturas seculares improcedentes e incompatíveis com a adequação positiva do país no presente estágio da globalização. O custo político, econômico e humano desse processo já ultrapassou dimensões calculáveis.
Terra arrasada.
Ninguém mais espera Godot.
Entusiastas inveterados entoam “adeus passado” sem o menor espanto em assistir muitos outros sentirem na carne, na pele e no bolso – e talvez seja necessário que o sintam – o peso do império das leis lhes retirando os anéis.
Resta saber se após a retirada dos anéis sobrarão dedos.
Virou notório notar que a operação dispõe de forte influência jurídica anglo-saxônica. Todos os juízes na proa do processo em Curitiba tiveram algum nível de formação na paisagem judiciária informada pela common law. A common law que sustenta o estado de direito vis-à-vis do estado predador. O estado eficiente vis-à-vis de estados estacionários. O estado provedor de crescimento econômico vis-à-vis de estados avessos ao mercado.
Como também parece assente, as raízes profundas dessa common law já vão entradas em anos. Pelos idos de 1215, a Carta Magna inglesa estabeleceu o princípio de que todos os ingleses deveriam ser iguais perante a lei. Doravante a Coroa não mais poderia cobrar impostos sem o consentimento do Grande Conselho, o futuro Parlamento. O desdobramento desse princípio foi a criação do habeas corpus e a ampliação da quantidade de burgos (cidades) representados no Parlamento. Como consequência, as tensões entre o monarca e os parlamentares viraram rotineiras, crescentes e explosivas. Essa querela – por dispersas razões e sentidos – duraria séculos. Ao menos do 13 ao 17. Seu desfecho seria a decapitação do rei e a consolidação da soberania do Parlamento na chamada revolução gloriosa.
Esse ruidoso processo e o que veio depois com a abolição da tortura e a declaração da ilegalidade da escravidão na Inglaterra naturalizariam três grandes princípios matriz do estado de direito britânico, a saber:
  1. a casa e a propriedade como castelo e reino privados, supremos e intocáveis, de cada inglês.
  2. a liberdade absoluta para se fazer o que se bem entender desde que não cause dano a si e a outrem.
  3. o imperativo de cada qual cuidar de sua própria vida.
Esses princípios adentraram no imaginário coletivo dos ingleses.
Mas, ao menos desde o século 18 ficou evidente que a manutenção desses princípios dependeria da integridade dos juízes e de legislações garantidoras de moralidade política. Uma vez garantida essa manutenção, o sucesso econômico aconteceria ao natural.
Para corroborar e atualizar a importância desses princípios no sucesso econômico das nações, no influente Legal determinants of external finance saído em The journal of finance de julho de 1997, Rafael La PortaFlorencio Lopez-de-SilaneAndrei ShleiferRobert W. Vishny1 argumentam, bem antes do Why nations fail de James Robinson e Daron Acemoglu, que em países onde vige a common law costuma existir
a) maior proteção a investimentos,
b) maior capacidade de atração de investidores externos,
c) menor custo na instalação de novas empresas no mercado interno,
d) tribunais mais eficientes e menos formalistas,
e) menor regulação de seus mercados de trabalho,
f) maior transparência na divulgação de informação de balanços e
g) melhores e mais rápidas respostas a casos de insolvência.
Mas para problematizar esse argumento-constatação, um dos mais importantes juristas britânicos do século 20, o recentemente falecido Tom Bingham, antigo presidente do Supremo Tribunal inglês, chama a atenção para a necessidade de se atentar para a qualidade desse estado de direito e prover mais que benesses econômicas aos seus súditos. Em seu incontornável The rule of law, ele sugere como essencial perceber que
  1. leis devem ser acessíveis, inteligíveis, claras e previsíveis,
  2. questões de direito legal e responsabilidade civil devem ser resolvidas pela aplicação da lei e não pelo exercício de arbítrio,
  3. leis de propriedade devem ser aplicadas igualmente a todos,
  4. ministros e funcionários públicos devem exercer seus poderes sem exceder limites,
  5. leis devem oferecer proteção adequada aos direitos fundamentais,
  6. leis devem conferir meios para civis incapazes resolver suas contendas,
  7. os procedimentos do estado devem ser justos.
No quesito “direitos fundamentais”, para ficar apenas num deles e por certo o mais importante, Tom Bingham ainda reconhece como essenciais o direito a vida, proteção contra a tortura, contra a escravidão e o trabalho forçado, direito a liberdade e a segurança, direito a julgamento justo, respeito a vida privada e familiar, liberdade de pensamento e consciência e religião, liberdade de expressão, liberdade de reunião, direito a se casar, proteção contra discriminação, proteção de propriedade, direito a educação, moradia, saúde, meio ambiente limpo.
Será nesse sentido que a operação Lava Jato está a nos levar?
Os dias e lustros dirão.
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(Fonte: aqui).

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Mas um dos perigos da politica de terra arrasada é exatamente o de se deformar certa máxima, que, ao fim e ao cabo, poderia ser expressa no seguinte:

"Entre mortos e feridos, escalparam todos."

No 'todos' acima, até os interesses nacionais estariam incluídos, para alegria dos conglomerados estrangeiros...

Alguns analistas, aliás, observam que bons propósitos, especialmente os inspirados na cultura saxã, podem restar comprometidos em razão da 'ausência de malícia' por parte de quem executa as medidas saneadoras, deficiência somente suprível por aqueles que, por exemplo, conhecem a fundo o comportamento do sistema econômico do país. Nos Estados Unidos, empresas pilhadas em malfeitorias têm seus dirigentes punidos criminal e civilmente, mas elas próprias, se estratégicas para o país, são preservadas, continuando a proporcionar empregos e a recolher impostos. E mais: quando existe o tal risco sistêmico, ou seja, o perigo de o fechamento de empresa(s) implicar dano incontornável ao segmento empresarial, aí mesmo é que serão buscados acordos de leniência. Não à toa, nos EUA, na época em que grandes bancos/financeiras foram 'chamados às falas' por serem os responsáveis pela hecatombe mundial de 2008/9, cunhou-se a expressão "grandes demais para quebrar". Já no Brasil, torce-se o nariz relativamente a acordos de leniência...

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