Da série Fábulas Requentadas: Ali Babá e os 400 mil ladrões de seu irmão
Por Sebastião Nunes
Kassim estava irritadíssimo. Sentado no imponente trono de ouro, diamantes, rubis, esmeraldas, topázios, ametistas e águas-marinhas, o Imperador dos Ladrões vomitava cobras e lagartos em cima de auxiliares diretos e indiretos:
– Cambada de velhos-ricos idiotas! Só porque sou multimultimultibiliardário, acham que tenho de ficar esfolando a bunda nessa cadeira cravejada de joias, como qualquer reizinho da Idade Média. Quem me dera ser um simples vaga-lume, pairando livremente no firmamento!
Sim, Kassim tinha dessas ambiguidades. Embora espumasse de ódio por qualquer ninharia, mandando degolar amigos íntimos ao menor escorregão, nunca perdia a deixa para uma citação pseudoliterária da pior qualidade.
O problema não era tanto o espinhoso trono, mas a quantidade de ladrões reunidos em sua quadrilha. Nos primórdios das aventuras furta-afana-abafa-surrupia, mal conseguira meia dúzia de malucos dispostos a partilhar os déficits da contabilidade mambembe. Agora, quando possuía uma caverna super-hiper-camuflada, super-hiper-equipada e super-hiper-enormérrima, o bando crescia como formigueiro na primavera. Segundo o último balanço, eram 166.667 homens, 133.333 mulheres e 100.000 jovens aprendizes, totalizando 400.000 ladrões, todos da mais refinada extração, sem contar o harém particular, privilégio de lideranças fortes como a sua, constituído de 365.000 belíssimas odaliscas, ou seja, 1.000 gostosuras para cada dia do ano.
PAUSA PARA EXPLICAÇÕES
A idade para ingressar na quadrilha oscilava entre a mínima de 20 anos e a máxima de 65, para homens. Para mulheres, entre 18 e 55 anos. Aos 75, eram os homens compulsoriamente aposentados, recebendo o percentual que lhes cabia das infinitas riquezas, percentual escrupulosamente contado, medido e pesado pelo honestíssimo tesoureiro-mor. As mulheres se aposentavam aos 65, podendo daí em diante curtir numa boa a vida de esplendor que sem dúvida desfrutariam, com sua parcela também contada, medida e pesada, escrupulosamente, pelo tesoureiro-mor.
PAUSA PARA NOVAS EXPLICAÇÕES
O referido tesoureiro-mor, que acumulava os cargos de ministro da fazenda e presidente do banco central, era o milésimo centésimo nomeado nos escassos 11 anos em que Kassim reinava sobre os ladrões. Desse total, os 1.099 primeiros haviam sido enforcados em galhos de tamareira, depois de apanhados com a boca na botija, perdão, com a mão metida em um dos milhares de sacos de joias e moedas de ouro. Seus esqueletos nus brilhavam ao sol do Golfo Pérsico, pois Kassim não era besta de morar no deserto. Com exemplos tão clamorosos, nem era preciso exigir de um tesoureiro honestidade total, integral e absoluta. Sua única alternativa estava na longa fileira de ossadas penduradas, rebrilhando de brancura e balançando ao vento.
PAUSA PARA EXPLICAÇÕES FINAIS
365.000 odaliscas era o máximo que qualquer potentado oriental, ou mesmo ocidental, também dados a estripulias eróticas, jamais reunira. Salomão, o Sábio, contava com apenas 200 amantes, menos de uma por dia do ano. Harum-Al-Rachid, o Favorito de Alá, reunira nos tempos de maior fausto apenas 1.460 jovenzinhas em flor, quatro para cada dia do ano. John F. Kennedy e Mick Jagger, conhecidos garanhões, nunca passaram de oito por noite, totalizando 2.920 cada um. Fica evidente que, possuindo 1.000 odaliscas por noturnália (de sono ou de vigília, sabe-se lá), Kassim jamais, ainda que fosse um Hércules do sexo, um Aquiles do erotismo ou um Napoleão das guerras vulvo-penianas, jamais, repetimos, chegaria a conhecer, biblicamente falando, um centésimo do cobiçado e alvoroçado rebanho.
VOLTANDO À IRRITAÇÃO REAL
O que mais irritava Kassim, como dissemos, não era tanto o trono duro, mas o número excessivo de ladrões que o cercavam. 400.000 ladrões! E isso para um homem da maior honestidade, que pautara toda a sua vida pela retidão moral e pelo perfeito cumprimento das leis, nos menores detalhes. Isso, sim, era profundamente irritante. Ladrão, sim, mas ladrão honestíssimo, estimado e paparicado por todos, no Senado, da Câmara dos deputados, na FIESP, no STF e nas Procuradorias Gerais de Justiça, pois era evidente que em seu reinado mais-do-que-moderno tais aberrações (perdão, tais entidades) eram não só necessárias como indispensáveis ao bom andamento dos furtos (perdão, dos negócios) nacionais e mesmo supranacionais.
ALI BABÁ ENTRA NA HISTÓRIA
Foi quando, depois de rebolar o traseiro para lá e para cá pela milésima vez, tentando adequar o conteúdo ao continente, Kassim se lembrou do irmão mais novo, que atendia pelo codinome de Ali Babá, veja você que idiotice. Mais que depressa, chamou o primeiro-tenente, Abracadabra, e o segundo-tenente, Salamaleque, disposto a bolar um plano muito, mas muito inteligente, que permitisse aos três se safarem com sua parte da riqueza (nem um rubi a mais, honestidade acima de tudo), deixando o resto da quadrilha com enorme fortuna e sob a competente liderança do irmão.
E foi o que fizeram. Depois de muito confabular, decidiram cooptar o querido Ali, que morava no Brasil, com breve, eloquente e amorosa carta de fraternal saudade. Que colou, como sempre acontece nas histórias de fadas e bruxas.
VISITANDO A CAVERNA CENTRAL
Ali Babá chegou do Brasil, parou diante da caverna, percebeu a tropelia dos ladrões e se escondeu. Ouviu as palavras mágicas, que decorou, com vírgula e tudo: “Em nome da família, da propriedade, de Deus e da Lambança Geral.” Quando o bando se afastou, depois que todos os 400.000 ladrões entraram e depositaram as novas riquezas honestamente adquiridas, Ali Babá se aproximou, recitou as palavras mágicas, a porta se abriu e ele entrou.
Ficou embasbacado? Nem por isso. Com sua super-hiper-calculadora eletrônica, multiplicou os sacos pelo valor médio, dividindo tudo por 400.000. E concluiu que no Brasil os negócios eram muito melhores. Para isso, contava com pelo menos 70% de todos os candidatos nas próximas eleições gerais para todos os cargos de todos os altos e baixos escalões. Além dos convidados para as diversas mordomias (perdão, para os diversos órgãos), do primeiro ao trigésimo terceiro escalão.
Filosoficamente, concluiu: se antes do golpe os negócios no Brasil já eram excelentes, causando inveja em todo o mundo pela competência larapial, manipulativa e contorcionista da Câmara, do Senado e do Judiciário, depois então nem se fala. Era de se babar de gozo. E Ali Babá riu, com seus botões dourados, do magnífico trocadilho que acabara de produzir sem qualquer esforço intelectual.
Na moral desta fábula ilustrada, ilustres membros da Câmara, do Senado e do Judiciário da quadrilha de Kassim partilham o butim arrecadado no último assalto federal. (Fonte: AQUI).
(Ilustração: colagem sobre desenho de Albert Robida e foto do salão dos tesouros).
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