domingo, 6 de setembro de 2015

DOIS POETAS, A VIDA BESTA E A VIDA LÁ FORA


Drummond e Emílio Moura se despedem no Bar do Ponto

Por Sebastião Nunes

– Um dia, no futuro, pouca diferença haverá entre ir ou ficar – disse o Poeta Maior, olhando o movimento da Avenida Afonso Pena. – Por enquanto, quem quiser se tornar conhecido, ou crescer de alguma forma, terá de ir para a capital federal.

            O bonde passa cheio de pernas:
            pernas brancas pretas amarelas.
            Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
            Porém meus olhos
            não perguntam nada.

            – Creio que é só uma opinião, Carlos – discordou o Poeta Menor. – Se todos pensassem assim, os estados se esvaziariam de seus talentos.
            – Mas não se esvaziam, Emílio? – argumentou o Poeta Maior. – Compare a produção artística e científica de Minas com a de São Paulo e do Rio. Mesmo São Paulo, só cresceu recentemente. Onde estão os talentos pernambucanos, gaúchos, cearenses, baianos? Na capital federal, é lá que estão.
            O Poeta Menor fitou o vazio da parede em frente. O que seria aquilo desenhado na parede? O que seria aquilo?
            Não olhes: é a noite
            completa que tomba.

            Não olhes: é a estrada
            que, súbito, acaba.

            Não olhes: é o anjo,
            teu anjo que chora.

            Não olhes.

            “Mas se é apenas o meio da tarde! Estarei ficando louco?”, pensou o Poeta Menor. E sacudiu a cabeça, desalentado e desnorteado.
            O Poeta Maior não percebeu e continuou:
            – Você é o poeta da dúvida, Emílio. Talvez você nunca saia daqui. Talvez o seu destino seja ficar escondido aqui, como se estivesse em Dores do Indaiá.

            Casas entre bananeiras
            mulheres entre laranjeiras
            pomar amor cantar.

            Um homem vai devagar.
            Um cachorro vai devagar.
            Um burro vai devagar.

            Devagar... as janelas olham.
            Eta vida besta, meu Deus.
           
A VIDA LÁ FORA

            Pernas subiam e desciam a Avenida. Braços desciam e subiam. Cabeças sacudidas, ombros, ternos, gravatas. Os dois poetas, o Maior e o Menor, ficaram em silêncio, apenas olhando. Na noite anterior houvera uma baita festa de despedida, ali mesmo. Mais de 50 convidados para o bota-fora: poetas, contistas, críticos, romancistas, políticos, jornalistas.

            Como captar da vida
            o que rápido, foge
            entre dúvidas? Como
            reter o que, mal surge,
            já se desfaz: é sombra
            algo vago, já neutro
            réstia pálida, eco
            de nada, de ninguém?

            – Sinto que você tem razão, Carlos – disse o Poeta Menor. – O problema é sair. Como escolher entre isto e aquilo? Entre aqui e lá? E por quê?

            O poeta municipal
            discute com o poeta estadual
            qual deles é capaz de bater o poeta federal.
           
            Enquanto isso o poeta federal
            tira ouro do nariz.

            – Eu escolhi, Emílio, é por isso que estou indo embora – disse o Poeta Maior. – Não estou cabendo aqui. Não que eu seja grande, não que eu seja maior que você ou os outros. Mas eu quero crescer. E só no embate cotidiano de uma cidade realmente grande, cosmopolita, posso crescer.
            – Compreendo, Carlos – disse o Poeta Menor. – Te conheço muito bem, mais do que a mim mesmo, que sou um poço de dúvidas. O que levamos aqui um mês pra decidir, na capital se decide em um dia, ou menos.
            – É mais ou menos isso – disse o Poeta Maior. – É como se o tempo fluísse em outra velocidade, outro ritmo, aqui é sempre com enervante lentidão.

            Viver não dói. O que dói
            é o tempo, essa força onírica
            em que se criam os mitos
            que o próprio tempo devora.

            Viver não dói. O que dói
            é essa estranha lucidez
            misto de fome e de sede
            com que tudo devoramos.

            Viver não dói, o que dói
            ferindo fundo, ferindo
            é a distância infinita
            entre a vida que se pensa
            e o pensamento vivido.

            Que tudo o mais é perdido.

            Os dois se levantam e se abraçam. Durante dias, meses e anos haviam dito tudo o que precisavam dizer. Serão amigos para sempre. Nada e ninguém será capaz de separá-los. Durante o resto da vida continuarão a se encontrar, a dedicar poemas um ao outro, a escrever longas cartas confessionais: do Rio para BH, de BH para o Rio.

            – Adeus, Carlos – disse o Poeta Menor. – Boa viagem e boa sorte.
            – Até logo, Emílio – disse o Poeta Maior. – Boa sorte pra você também.

            Um se foi e o outro ficou. Um cresceu no “embate cotidiano” de uma grande cidade, cheia de vida, agitação, conflitos – o outro ficou por ali mesmo, cigarrinho de palha atrás da orelha. Mas não foi apenas encontrar outros poetas federais que tornou o Poeta Maior o que prenunciava desde os primeiros versos. Nem foi só ficar entre poetas estaduais e municipais que tornou o Poeta Menor aquilo que seria até o fim.
            A alma de um era forjada em ferro. A do outro, em dúvidas. (Fonte: aqui).

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Dia desses, o turista vindo da metrópole 'interpelou' o poeta interiorano: 

- E aí, como vai essa vidinha mansa, insossa, calma, sossegada?

- Ótima, especialmente porque estou impregnado das angústias do mundo. Descarrego tudo na escrita. Estar impregnado das angústias do mundo é instigante.

- Como assim, açambarcar as angústias do mundo, encalhado nessa vidinha mansa, insossa, calma, sossegada? 

- É que a internet trouxe o mundo para a minha casa. Tô ligado no mundo, meu jovem, full time!

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