"A violência sofrida pelas meninas de Castelo do Piauí, a 199 quilômetros de Teresina, é uma atrocidade – e deve ser punida. Dar tratamento jornalístico para uma história como essa é delicado, especialmente porque as quatro vítimas e os quatro agentes das agressões são adolescentes (e um homem de 40 anos foi preso).
Entra, nesse momento, uma particularidade que precisa ser considerada: a Constituição Brasileira prevê que os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm prioridade absoluta. Esse direito tem que ser respeitado por todas as instâncias, incluindo os meios de comunicação. Nesse sentido, o jornalismo é instituição central das democracias e tem responsabilidade sobre a promoção, proteção e garantia dos direitos humanos.
“Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.”
Uma cobertura sensacionalista para casos que envolvem adolescentes como
agentes de violência funciona a favor da audiência sem limites, trabalha contra
a compreensão da situação e, portanto, não colabora para a busca de soluções ou
para a implementação adequada de políticas públicas. As matérias que exploram
esses casos de forma irresponsável se aproveitam da comoção social, servem ao
medo e aos interesses de quem se ancora em promessas mágicas para o fim da
violência, que é uma teia complexa composta por diversos elementos.
A veiculação de informações sem contexto e, que não proponham uma reflexão,
é potente motor para justiceiros e linchamento, ou seja, para a produção de mais
violência. São notícias que reforçam a sensação de medo e o estereótipo de que
os jovens com menos de 18 anos são os principais responsáveis pelo estado da
segurança pública no país, o que está bastante distante da dimensão real. Não se
pode ignorar que eles são as principais vítimas de homicídios no país (mais de
70% do total) e que das 56
mil vítimas fatais, 77% são jovens negros. É um dado fundamental para a
compreensão de todo o quadro.
Com a movimentação na Câmara dos Deputados para votar com pressa a PEC171,
que reduz a maioridade penal para 16 anos, é ainda mais imprescindível que o
jornalismo assuma sua responsabilidade como peça-chave nos mecanismos que levam
as sociedades a patamares mais consistentes de desenvolvimento humano e social.
Por exemplo, é muito relevante informar que dos 21 milhões de
adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida, de
acordo com dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Significa
que a imensa maioria dos meninos e das meninas que cometeram atos infracionais
praticou tráfico ou crimes contra o patrimônio. Não usaram violência e já
cumprem pena pela infração. Outro índice importante para considerar é que o
sistema penal de adultos não recupera. Tem
taxa de reincidência de 47%, segundo a Pnad. Expõe pessoas a situações tão
degradantes que saem de lá sem nenhuma perspectiva. A
Fundação Casa registra taxa de reincidência de 15%.
O principal de tudo isso é que a violência não vai diminuir reduzindo a
maioridade penal – ou aplicando pena de morte e “justiça com as próprias mãos”.
As respostas para enfrentar um problema tão complexo passam mais por garantir
direitos e menos por políticas de encarceramento em massa.
Direitos
Outro ponto importante para abordar em reportagens que tratam desse tema é
que existe um grande Sistema
de Garantia de Direitos. Se houve um caso gravíssimo como no Piauí, é porque
esse sistema falhou. Faz parte do papel do jornalista investigar em que ponto o
Estado deixou de proteger, promover e garantir os direitos desses adolescentes,
tanto das vítimas e quanto dos agressores. O jornalismo existe para fiscalizar
políticas públicas em todos os níveis.
De acordo com uma pesquisa feita pela ANDI – Comunicação e Direitos, as reportagens
que tratam de adolescentes em conflito têm uma evidente tendência ideológica:
centram-se em crimes graves, como se todos os jovens envolvidos em atos
infracionais cometessem homicídios e estupros; focam na punição e não na falta
de direitos, no abandono do Estado; colocam a pretensa impunidade como discussão
principal, como se não tivéssemos uma legislação específica (ECA) para punir
esses casos; ignoram o contexto de produção do fenômeno, como se fosse
irrelevante as condições de vida dessas pessoas; tratam apenas do ato em si e
não dos desdobramentos do caso, reforçando a sensação de impunidade; limitam-se
à questionar a legislação vigente; tendem à nítida defesa da redução da
maioridade penal como solução para a violência.
A cobertura mais completa do caso de Castelo do Piauí foi feita pelo
jornalista Orlando Berti, em um jornal local chamado O Olho. Berti é professor da Universidade
Estadual do Piauí, mestre e doutor em comunicação social e vice-presidente da
Rede Brasileira de Mídia Cidadã. É um repórter com olhar social. Por isso,
conseguiu fazer uma série de reportagens sem cair no sensacionalismo.
Ao ler os textos de Berti, é possível entender que Castelo do Piauí é uma
cidade com rara presença de políticas públicas. Não tem delegado, há poucos
policiais, existe apenas uma escola de Ensino Médio na área urbana e nenhuma na
zona rural [*]. Além da história de vida das vítimas, o jornalista procurou
compreender de onde vinham os agressores e descobriu características muito
similares ao perfil do adolescente internado na Fundação Casa. De maneira geral,
adolescentes que praticam crimes contra a vida:
- são pessoas em total abandono pelo Estado e pela família;
- são dependentes de drogas;
- não estão na escola;
- têm baixa escolaridade;
- suas famílias (nos casos em que têm) vivem em situação de miséria;
- sofreram abusos e violências;
- foram testemunhas de crimes hediondos;
- praticaram trabalho infantil.
“Os cuidados tomados na série de reportagens foram, principalmente, em não
afrontar as famílias”, conta Berti. “O clima de vingança na cidade é latente.
Falar do assunto é tabu. (...). A cidade é a tal capital da Cachaça, não tem delegado, são
poucos policiais, muita evasão escolar, muitos e muitos problemas sociais.
Quisemos incomodar e, que bom, incomodamos.”
São contextos em que a própria vida vale nada. E muitas vezes, a Fundação
Casa acaba sendo a única chance de sobrevivência, gostemos ou não. É essa a
realidade da segurança pública no Brasil voltada aos adolescentes.
A esse quadro soma-se a dificuldade de investigação e de Justiça, que
muitas vezes buscam encontrar rapidamente um culpado e acabam por produzir
injustiças – baseadas no preconceito e no racismo institucional dessas
entidades. Essa caçada, quando unida ao jornalismo, culpa inocentes, que ficam
estigmatizados para sempre, como no caso do menino acusado de assassinar o
ciclista na Lagoa, exaustivamente abordado pela mídia.
Sendo assim, a luta por diminuir a violência passa por garantir direitos e
não por encarcerar por longos períodos adolescentes que nunca tiveram
oportunidade de valorizar a própria vida.
Não se trata de não punir. Trata-se de uma maneira de punir que leve a alguma chance de futuro e de paz. E de tentar prevenir para não ter que remediar.
Não se trata de não punir. Trata-se de uma maneira de punir que leve a alguma chance de futuro e de paz. E de tentar prevenir para não ter que remediar.
O que reduz a violência é o amplo acesso a direitos.
* Fonte: Ministério da Educação/2010."
(De Maria Carolina Trevisan, jornalista, integrante do coletivo Jornalistas
Livres, coordenadora de projetos da ANDI, pesquisadora do Núcleo de Estudos
Sobre o Crime e a Pena da DireitoGV e Jornalista Amiga da Criança. Texto intitulado "As meninas do Piauí: a tragédia de um jornalismo justiceiro" - aqui.
A mídia piauiense divulgou opiniões diversas, algumas estapafúrdias, sobre as quais me permito silenciar. Ao que consta, a notória revista Veja estaria a pregar veementemente a redução da maioridade penal, aproveitando-se do clamor popular que a tragédia do estupro coletivo despertou. Os fatos observados em Castelo do Piauí são deploráveis, mas igualmente deplorável é a atitude dos que se aproveitam da tragédia para defender suas bandeiras, como se o puro e simples encarceramento dos envolvidos tivesse o condão de dar fim à triste realidade).
A mídia piauiense divulgou opiniões diversas, algumas estapafúrdias, sobre as quais me permito silenciar. Ao que consta, a notória revista Veja estaria a pregar veementemente a redução da maioridade penal, aproveitando-se do clamor popular que a tragédia do estupro coletivo despertou. Os fatos observados em Castelo do Piauí são deploráveis, mas igualmente deplorável é a atitude dos que se aproveitam da tragédia para defender suas bandeiras, como se o puro e simples encarceramento dos envolvidos tivesse o condão de dar fim à triste realidade).
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