sábado, 13 de junho de 2015

O DOMÍNIO DA ALEMANHA SOBRE A EUROPA


"A Alemanha já controla o continente europeu"

Por Olivier Berruyer (entrevistando Emmanuel Todd)

(Sobre o entrevistado: Emmanuel Todd, nascido em 16/5/1951, é cientista político, demógrafo, historiador, sociólogo e ensaísta francês. Ele se formou no "Institut d'Etudes Politiques de Paris" e obteve doutorado em História pela Universidade de Cambridge, Inglaterra. Formou-se Engenheiro de Pesquisas no Instituto Nacional de Estudos Demográficos - INED -; suas investigações em ciências humanas evidenciaram que os sistemas familiares exercem papel fundamental na história, na formação religiosa e nas ideologias políticas. Sua tese de doutorado discorre sobre a antropologia da família, explorando esses conceitos que buscam elucidar a história através da interpretação dos elementos característicos de cada família. Em 1976, previu o “colapso iminente” do comunismo europeu oriental na obra “La chute finale: Essais sur la décomposition de la sphère Soviétique”).

Olivier Berruyer (OB): Emmanuel Todd, como você vê a crise atual com a Rússia?
Emmanuel Todd (ET):
Há alguma coisa estranha, irreal, no atual sistema internacional. Alguma coisa não faz sentido: todo mundo dedicado a atacar uma Rússia que mal chega aos 145 milhões de habitantes, que se reergueu, é verdade, mas em relação à qual ninguém pode supor que volte a ser potência dominante, em escala mundial, nem mesmo em escala europeia. A força da Rússia é fundamentalmente defensiva. Manter a integridade de seu território imenso já é problemático, com população tão reduzida, comparável à do Japão.

A Rússia é uma potência de equilíbrio: seu arsenal nuclear e sua autonomia energética fazem com que possa desempenhar o papel de contrapeso aos EUA. A Rússia pode permitir-se acolher Snowden e ajudar a defender as liberdades civis no Ocidente. Mas a hipótese de uma Rússia que devore a Europa e o mundo é absurda.

OB: No início de sua carreira você interessava-se muito mais pela URSS – chegou a prever a desintegração iminente. Hoje, a Rússia não tem mais o nível hegemônico daquele tempo, e embora a Rússia seja mais democrática que a URSS, é tratada com ainda mais desconsideração. Por exemplo, quando a URSS interveio na Tchecoslováquia, em 1968, com seus tanques, houve protestos, mas rapidamente, em semanas, a histeria acabou. Hoje, quando não acontece nada nem semelhante, além de uma população que vota democraticamente na Crimeia a favor de ser reintegrada à casa da mãe russa, tem-se a impressão de que estaria acontecendo drama terrível, que justificaria até fazermos guerra à Rússia para devolver a Crimeia, contra a vontade dos crimeanos, à Ucrânia. Por que o tratamento tão diferente?
ET
:
Essa questão não diz respeito só à Rússia, diz respeito a todo o Ocidente. O Ocidente, com certeza massivamente dominante, está hoje contudo, em todos os estados que o compõem, inquieto, ansioso, doente: crise financeira, estagnação ou baixa nos ganhos, aumento das desigualdades, ausência total de perspectivas e, no caso da Europa continental, crise demográfica. Se nos colocamos no plano ideológico, essa fixação contra a Rússia parece ser a procura de um bode expiatório, melhor, como a criação de inimigo necessário para manter alguma qualquer mínima coerência no Ocidente. A União Europeia nasceu contra a URSS; não vive sem o adversário russo.

Mas também é verdade que a Rússia impõe ao mundo ocidental alguns problemas de “valores”. Contudo, ao contrário do que sugerem as asneiras antiputinistas e russofóbicas do "Jornal Le Monde", o problema do Ocidente é o caráter positivo e útil de vários valores da cultura e da história russa.

A Rússia não acompanhou o mundo ocidental na trilha do “liberalismo total”. Lá, se manteve e reafirmou-se um determinado papel para o Estado, e, também, uma determinada ideia nacional. É país que está começando a reerguer-se, inclusive em termos de fecundidade, de diminuição da mortalidade infantil. O desemprego é baixo.

Sem dúvida: os russos são pobres e ninguém na Europa ocidental inveja o sistema russo, também no nível das liberdades. Mas ser russo hoje é pertencer a uma coletividade nacional forte e protetiva, é a possibilidade de se projetar mentalmente para um futuro melhor, é estar andando para alguma coisa. Quem pode dizer a mesma coisa da França?

A Rússia está em vias de se tornar, sem que esse seja algum tipo de projeto, uma verdadeira ameaça para os que, no ocidente, fazem ares de nos governar, perdidos na história, que falam de valores ocidentais, mas que, como diz, acho, Basile de Koch, “em matéria de valores, só reconhecem os bursáteis”. Mas já não se trata de conflito entre Oriente e Ocidente, tradicional, regressivo, no sentido psiquiátrico, no qual os EUA seriam o motor.

A crise atual tem tudo a ver com a intervenção europeia na Ucrânia. Se se escapa do delírio ‘jornalístico’ das mídias ‘ocidentais’, que parecem ter regredido a 1956, em plena guerra fria ameaçando esquentar, e observamos a realidade geográfica dos fenômenos, o que se vê, muito simplesmente, é que o conflito acontece numa zona tradicional de enfrentamento entre Alemanha e Rússia.

Desde o início, tive a sensação de que os EUA, dessa vez, talvez por medo da desmoralização depois que a Crimeia quis voltar à Rússia, acompanharam os passos da Europa ou, mais, da própria Alemanha, porque é a Alemanha quem controla a Europa. Veem-se sinais contraditórios vindos da Alemanha. Às vezes, a Alemanha parece mais pacifista, numa linha de retirada, de cooperação. Outras vezes, ao contrário, aparece fortemente contestatária, ou enfrenta declaradamente a Rússia. O vigor dessa linha dura aumenta dia a dia.

Steinmeier levou Fabius e Sikorski a Kiev. Mas Merkel vai sozinha, em visita ao novo protetorado ucraniano. E não é só nesse enfrentamento, que a Alemanha caminha na frente. No espaço de seis meses, também nas últimas semanas, quando já estava em virtual conflito com a Rússia nas planícies ucranianas, Merkel humilhou os ingleses, ao impor-lhes Juncker, com grosseria inacreditável, como presidente da Comissão Europeia. Evento ainda mais extraordinário, os alemães começaram a afrontar os EUA, servindo-se de uma história de espionagem pelos norte-americanos.

É absolutamente inacreditável, se se conhecem as relações muito íntimas entre as atividades de informação e inteligência norte-americanas e alemãs, desde a guerra fria. Parece também hoje, que os serviços alemães de informação, BND, também espionam, muito normalmente, os políticos norte-americanos. Ainda que soe chocante, eu diria que, consideradas as ambiguidades da política alemã, sou absolutamente favorável a que a CIA monitore os responsáveis pela política alemã. Espero também que os serviços de informação franceses façam seu serviço e participem da vigilância sobre uma Alemanha cada vez mais ativa e aventurosa no plano internacional.

O que se deve considerar é que essa agressividade antiamericana da Alemanha é fenômeno novo, que temos de considerar. O estilo é fascinante. O modo como os políticos alemães falaram dos norte-americanos manifesta profundo desprezo. Já há importante fundo antiamericano além-Reno. Pude avaliá-lo quando do lançamento da edição alemã do meu livro "Depois do Império". Acho que aquele fundo antiamericano explica o sucesso excepcional da edição em alemão. Já houve até um momento em que o governo alemão zombou das reprimendas norte-americanas em matéria de gestão econômica. Contribuir para o equilíbrio da demanda mundial? E depois, o que mais?

A Alemanha tem seu projeto, de poder, mais do que de bem-estar: comprimir a demanda na Alemanha, pôr a ferros os países endividados do sul, pôr uns amendoins ao sistema bancário francês que controla o Eliseu etc..

Num primeiro momento, quando a Crimeia foi tomada, estive mais sensível ao restabelecimento da Rússia: potência que não quer mais se deixar atropelar e que é capaz de tomar decisões. Hoje, constato que a Rússia é, fundamentalmente, uma nação em estabilização, e só em estabilização, por mais que tantos pintem a Rússia como um lobo-mau.

Mas a verdadeira potência emergente, antes da Rússia, é a Alemanha. A Alemanha fez um caminho prodigioso, das dificuldades econômicas que tinha quando da reunificação até o restabelecimento econômico e, na sequência, a tomada de controle sobre todo o continente, nos últimos cinco anos. Tudo isso está aí para ser reinterpretado

A crise financeira não apenas demonstrou a solidez da Alemanha. Ela também revelou a capacidade da Alemanha para usar a crise da dívida para baixar a crista de todo o continente.

Se nos livramos da retórica arcaica da guerra fria, se paramos de sacudir o chocalho ideológico da democracia liberal e de seus valores, se se para de dar ouvidos ao blá-blá-blá europeísta, para observar a sequência em curso de modo a observar a sequência histórica em andamento, de modo bruto, quase como uma criança, em resumo, se se aceita ver que o rei está nu, contata-se que:

(1) ao longo dos últimos cinco últimos anos, a Alemanha tomou o controle do continente europeu no plano econômico e político; e que

(2) ao cabo desses mesmos cinco anos, a Europa já está virtualmente em guerra contra a Rússia!

Esse fenômeno simples é ocultado por uma dupla negação; dois países agem como ferrolhos para impedir que compreendamos a realidade do que se passa.

Primeiro, a França, que continua sem admitir que se pôs em estado de servidão voluntária, na relação com a Alemanha. Não pode fazer diferente, porque não admite plenamente o crescimento do poder da Alemanha e o fato de que não está no padrão que lhe permita controlar esse crescimento. Se há lição geopolítica a extrair da IIª Guerra Mundial, é que a França não consegue controlar a Alemanha; e que temos de reconhecer as imensas qualidades de organização e de disciplina econômica... e o não menos imenso potencial para a irracionalidade política.

Que a França recusa-se a ver a realidade alemã é uma evidência. Já há algum tempo venho falando de François Hollande como “vice-chanceler Hollande”. Pensando bem, de fato, ele é mais um simples “diretor de comunicação da chancelaria”. Hollande é nada. Alcança níveis excepcionais de impopularidade, que são efeito, em parte, do servilismo diante da Alemanha. François Hollande é desprezado como é, pelos franceses, porque é homem que obedece à Alemanha. Mas todas as elites francesas, jornalísticas e políticas, estão afundadas no mesmo processo de negação, de não ver.

OB: Você diz “A França afinal não pode controlar a Alemanha”: não há o que fazer ou caberia a outro fazer?
ET:
Qualquer outro faria. Da última vez, a tarefa recaiu sobre norte-americanos e russos. É preciso admitir que o “sistema Alemanha” é capaz de gerar uma energia prodigiosa. Como historiador e antropólogo, poderia dizer a mesma coisa do Japão, da Suécia, ou da cultura judia, basca ou catalã.

É fato: algumas culturas são assim. A França tem outras qualidades. Produziu ideias de igualdade, de liberdade, uma arte de viver que fascina o planeta, e está fazendo mais filhos que os países vizinhos, mantendo-se como país avançado no plano intelectual e tecnológico. É provável que ao final, se se tivesse mesmo de julgar, teríamos de admitir que a França tem visão mais equilibrada e satisfatória da vida.

Mas não se trata de metafísica ou de moral: falamos de relações internacionais de força. Se um país especializa-se na indústria ou na guerra, é preciso levar isso em conta e verificar como essa especialização econômica, tecnológica e de potência pode ser controlada.


OB: E qual o outro país que está em surto de negação?
ET:
Os EUA. A negação americana foi formalizada no primeiro estágio da emancipação da Alemanha, quando da guerra do Iraque em 2003 e da associação Schröder-Chirac-Putin; alguns estrategistas norte-americanos disseram naquele momento que “É preciso castigar a França, esquecer [o que fez a] Alemanha e perdoar a Rússia” (“Punish França, forget Germany, forgive Russia[1]). Por quê? Porque a chave do controle da Europa pelos EUA, herança da vitória de 1945, estava em os EUA controlarem a Alemanha.

Decretar a emancipação alemã de 2003 seria decretar o início da dissolução do império americano. Essa estratégia de avestruz instalou-se, calcificou-se e parece hoje impedir que os norte-americanos vejam corretamente a emergência da Alemanha, nova ameaça contra eles, segundo minha avaliação, mais perigosa, no tempo, para a integridade do império americano, que a Rússia, exterior e distante do império.

A Alemanha tem papel complexo, ambivalente, mas é um motor dentro da crise: frequentemente a nação alemã aparece como pacifista; e a Europa, controlada pela Alemanha, como agressiva. Ou o contrário. A Alemanha tem dois chapéus: a Europa é a Alemanha, e a Alemanha é a Europa. Pode, portanto, falar a várias vozes. Quando se conhece a instabilidade psíquica que caracteriza historicamente a política externa alemã, sua bipolaridade, no sentido psiquiátrico, na relação com a Rússia, é muito inquietante.

Sei que estou falando muito duramente, mas a Europa está à beira da guerra contra a Rússia, e não temos tempo para mesuras e meias palavras. Populações de língua e de cultura e de identidade russas são atacadas na Ucrânia oriental, com aprovação, apoio e sem dúvidas, agora, já também com armas da União Europeia.

Penso que os russos sabem que estão, de fato, em guerra com a Alemanha. O silêncio deles quanto a isso, como no caso dos franceses e norte-americanos, não é recusa a ver a realidade. É boa diplomacia, porque os russos precisam de tempo. O autocontrole deles, o profissionalismo, como diriam Putin ou Lavrov, merecem admiração.

Até o momento, nessa crise, a estratégia dos norte-americanos tem sido correr na retaguarda dos alemães, para que ninguém veja que eles já não controlam a situação na Europa. Esses EUA, que não mais controlam e agora têm de aprovar as aventuras regionais dos ex-vassalos, tornaram-se um problema, o problema geopolítico nº1, hoje.

No Iraque, esses EUA já tiveram de cooperar com o Irã, seu inimigo estratégico, para fazer frente aos jihadistas subvencionados pela Arábia Saudita. A Arábia Saudita tem, como a Alemanha, estatuto de aliado sênior; a traição, nesse caso, então, não foi decretada...

Na Ásia, os Coreanos do Sul, por ressentimento contra os japoneses, começam a conversar com os chineses, rivais estratégicos dos EUA. Por todos os cantos, não só na Europa, o sistema norte-americano se fende, derrete-se ou coisa pior.

A potência da hegemonia alemã na Europa merece portanto análise mais detalhada, numa perspectiva dinâmica. É preciso explorar, projetar, prever, para orientar-se nesse mundo que está nascendo. É preciso aceitar ver esse mundo como o vê a escola estratégica realista, por exemplo, de Henry Kissinger, quer dizer, nada de considerar valores políticos: só puras relações de força entre sistemas nacionais.

Se se pensa desse modo, constata-se que a Rússia não é o problema do futuro; que a China ainda não é grande coisa em termos de poder militar. No nosso mundo econômico globalizado, podemos pressentir a emergência de um novo cara a cara entre dois grandes sistemas: a nação-continente norte-americana e esse novo império alemão, império econômico-político que as pessoas insistem em ainda chamar de “Europa” só por hábito. É interessante avaliar a relação de força potencial entre os dois.

Não sabemos como terminará a crise ucraniana. Mas temos de fazer o esforço de nos projetar até depois dessa crise. O mais interessante é tentar imaginar o que uma vitória do “ocidente” produzirá. Porque se chega, por aí, a uma descoberta espantosa: se a Rússia fracassar, ou se ela apenas ceder, deixar de resistir, a desproporção das forças demográficas e industriais, entre o sistema alemão (com a Ucrânia já acrescentada) e os EUA levarão, muito provavelmente, a uma transferência do centro de gravidade dentro do ocidente, e ao naufrágio do sistema norte-americano.

Hoje, o que os EUA mais têm a temer é que a Rússia fracasse.

Mas uma das características da situação é que os atores são incompetentes e bem pouco conscientes do que fazem. Não falo só de Obama, que nada compreende da Europa, nasceu no Havaí e viveu na Indonésia, para ele só existe a área do Pacífico.

Mas falo dos geopolitólogos norte-americanos clássicos, de tradição “europeia”, que também estão completamente ultrapassados. Penso em particular em Zbigniew Brzezinski o qual, já muito envelhecido, permanece como teórico do controle sobre a Eurásia, pelos EUA. Obcecado contra a Rússia, ele não viu que a Alemanha se aproximava. Não viu que os militares norte-americanos, ao estender a OTAN até os estados do Báltico, até a Polônia (...) estavam, de fato, recortando um império para a Alemanha; de início, só império econômico, mas agora já império político.

A Alemanha começa a entender-se com a China, o outro grande exportador mundial.

Será que, em Washington, ninguém se lembra de que, nos anos 1930s, a Alemanha oscilou por muito tempo entre a aliança chinesa e a aliança japonesa, e que Hitler começou por armar Chang Kai-Chek e formar seu exército?

A extensão da OTAN para o leste pode, no fim, trazer uma espécie de versão B do pesadelo, para Brzezinski: a reunificação da Eurásia, independente dos EUA. Fiel às suas origens polonesas [Zbig] só temia uma Eurásia sob controle russo. Agora está exposto ao risco de passar à história como mais um daqueles poloneses absurdos que, de tanto que odeiam a Rússia, promoveram a grandeza da Alemanha.


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